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3. SER "OUTRO" SEM DEIXAR DE SER "EU"

"(...)construí dentro de mim várias personagens distintas entre si e de mim, personagens essas a que atribuí poemas vários que não são como eu, nos meus sentimentos e idéias, os escreveria.

Assim têm estes poemas de Caieiro, os de Ricardo Reis e os de Álvaro de Campos que ser considerados. Não há que buscar em quaisquer deles idéias ou sentimentos meus, pois muitos deles exprimem idéias que não aceito, sentimentos que nunca tive. Há simplesmente que os ler como estão, que é aliás como se deve ler" [22] .

Estas palavras de Fernando Pessoa, extraídas do prefácio às Ficções do Interlúdio, são pródigas por exemplificarem uma atitude deveras reiterada durante sua atividade poética: a constante afirmação de seus heterônimos como personagens ao mesmo tempo diferentes de si mesmo - quer nas idéias, quer nos sentimentos - e coerentes cada um na biografia que o autor lhes atribui.

Para tanto, o poeta define seu "fazer poético" como a aplicação da imaginação e da inteligência, em detrimento do temperamento e sentimento, pois, segundo ele, não cabe ao poeta fazer-se mostrar nos seus escritos: "o mau dramaturgo é o que se revela" [23] . Aliás, a referência à dramaturgia faz-se relevante por aludir a um dos epítetos que o escritor atribui a si mesmo, o de "poeta dramático": "Desde que o crítico fixe, porém, que sou essencialmente poeta dramático, tem a chave da minha personalidade, no que pode interessá-lo" [24] .

À guisa de explicitarmos o que Pessoa entende por um escritor dramático, comentaremos as palavras de Pessoa ao referir-se, no prefácio às Ficções do Interlúdio, à Shakespeare. É este dramaturgo, na opinião de Pessoa, um "supremo despersonalizado", que esboça seus personagens à despeito de sua personalidade. Ao comentar a respeito de Hamlet, afirma Pessoa: "não seria legítimo ir buscar a esse personagem uma definição dos pensamentos de Shakespeare, a não ser que o personagem fosse falho, porque o mau dramaturgo é o que se revela [25] ".

Portanto, numa primeira observação percebemos que Fernando Pessoa aspirava exercer a atividade criativa ao ponto de construir "outros", cada um com uma data de nascimento, carreira, grau de escolaridade e "filosofia", e a estes permitia que se expressassem de acordo com a história de cada um, e sem influências de seu criador, já que afirma que, nos seus "sentimentos e idéias", não escreveria como seus heterônimos. Assim, num primeiro momento parece-nos que Pessoa atribui foros diferentes a si e aos heterônimos criados por ele: estes expressavam em sua poesia o que sentiam e pensavam, mas não aquele, pois a si cabia o mister de pôr em prática a criatividade, tanto para criar quanto sustentar os seus "eus".

No entanto, um mergulho um pouco mais profundo na bibliografia pessoana, bem como em alguns textos em prosa do autor, nos fizeram perceber que tal postura "segregadora" do escritor não se sustenta de fato. Vimos, nos heterônimos de Pessoa, ao invés da expressão de "sentimentos e idéias" totalmente dessemelhantes de si, uma tentativa de cada qual exprimir alguns dos sentimentos que englobam o todo complexo e contraditório do escritor.

Ao longo da análise, pretendemos ressaltar que os heterônimos nos fornecem algumas pistas para compreendermos o que o escritor tinha como o ideal de literatura que levaria ao progresso a pátria portuguesa de princípios do século XX, ao mesmo tempo que funcionavam como escape de um mundo opressor que o literato tinha poucas chances de mudar objetivamente.

Acreditamos que um modo razoável de pensarmos as semelhanças entre as reflexões de Pessoa e de seus heterônimos é a análise do ensaio do escritor a respeito de Shakespeare. Pessoa principia a discutir as tragédias do poeta pelo viés da histeria: após afirmar que a base do gênero lírico é a histeria, explicita que ela assume diferentes formas mentais, dependendo do temperamento com o qual coincide. Assim, conclui que a histeria que acometeu Shakespeare foi um misto de histeria física e mental, resultando na capacidade do dramaturgo de "viver em imaginação os estados mentais da histeria, o poder, portanto, de projetá-los para o exterior em pessoas separadas" [26] .

Partindo dessa assertiva, Pessoa define Shakespeare como tendo sido um histérico na mocidade e na vida adulta, sendo que em plena vida adulta também foi um histérico-neurastênico em grau menor, além de ter tido frágil constituição e vitalidade deficiente. À constatação clínica, segue-se a apresentação de sua causa, qual seja, o desapreço que os contemporâneos de Shakespeare votavam a ele. Pessoa afirma ser provável que o fato do poeta - que tinha genialidade em muito superior àquela de seus contemporâneos - haver se humilhado a praticar "as mesmas artes de homens inferiores a ele, mas em mais elevada posição", tenha causado nele a patologia:

"Se apenas o senso do desapreço paira como uma sombra sobre as mais negras tragédias da maturidade de Shakespeare, é impossível afirmá-lo; mas não é possível que tal desapreço tivesse sido o único na causa da melancolia que se revela diretamente em Hamlet, que escorre nas frases de Otelo e Rei Lear" [27] .

Neste ensaio observamos que Pessoa atribui ao desapreço que o dramaturgo de Otelo sofria a causa pela sua histeria, e descobre este componente histérico da personalidade do poeta justamente através de suas peças. É certo que Pessoa afirma ser "impossível afirmar" se o desapreço é a única causa da melancolia dos personagens, mas não é menos certo que, na opinião de Pessoa, esse desapreço sofrido pelo dramaturgo foi uma das características que moldaram seus personagens. Seguindo as reflexões de Pessoa, podemos começar a concluir que Shakespeare, que - como Pessoa afirma no prefácio às Ficções do Interlúdio - se despersonalizara completamente, não era tão dessemelhante dos personagens que criou. Assim, podemos começar a pensar que também Fernando Pessoa, que se afirmava um poeta dramático que criara personagens distintas dele, também não era totalmente diferente dos personagens que criara [28] .

Contudo, acreditamos poder ir um pouco mais longe na aproximação entre Fernando Pessoa e Shakespeare, isto porque nos parece que quando Pessoa define o dramaturgo, ele define-se a si mesmo. Também Pessoa definia-se como um histérico, como podemos notar na célebre carta do escritor ao crítico Casais Monteiro, na qual aquele define a gênese dos seus heterônimos: "a origem dos meus heterônimos é o fundo traço de histeria que existe em mim" [29] . Se ele possuía um grau de histeria semelhante àquele que atribuiu à Shakespeare, não  é bastante compreensível pensarmos que também a criação de seus heterônimos estaria vazada daquela mesma melancolia que o escritor nota nos personagens das tragédias de Shakespeare?

No entanto, a semelhança não pára neste ponto. Ao refletir a respeito do objetivo de Shakespeare com a escrita de suas tragédias, Fernando Pessoa elenca três fatores que poderiam ter influenciado o dramaturgo, sendo que o fator mais relevante para nossa análise é o seguinte: "tensão do sofrimento extremo ... impelindo (a tristeza) para a expressão como se para uma toca, para a objetividade como se para a evasão de si mesmo..." [30] . Portanto, a literatura representaria, para Shakespeare, a fuga do desprezo que os contemporâneos votavam a si, desprezo que não parece ter sido muito diferente daquele votado ao poeta e prosador português.

Já dizia João Gaspar Simões, em conferência pronunciada no ano de 1977, que o criador dos heterônimos apenas começou a ficar conhecido em Portugal a partir de 1929 (o escritor contava, então, com 41 anos), quando começou a colaborar na revista Presença, na qual Simões era um dos diretores: "Com efeito, foi nas páginas da revista Presença que em Portugal se consagraram pela primeira vez honras ao poeta do "Orpheu" [31] , pois até então Pessoa não passava de uma "desdenhada figura do modernismo português" [32] . Opinião, aliás, endossada por Arnaldo Saraiva, ao afirmar que o Diário de Notícias - a folha mais conhecida de Portugal - jamais fizera qualquer menção à Fernando Pessoa enquanto ele vivia, apesar do pai do escritor haver contribuído nas páginas do jornal ao longo de dezesseis anos [33] .

O desapreço do público e da crítica deve ter sido, pois, um dos fatores deflagradores da angústia do escritor português e da conseqüente dedicação à literatura com o objetivo de evadir-se de si. No entanto, este fator está longe de ter sido o último, como tencionamos salientar a partir de agora.

Uma questão bastante importante é salientada por Joel Serrão ao discorrer a respeito da inquietação do escritor. Segundo o crítico, o escritor tomava o destino de "gênio", com que os deuses o haviam contemplado, como uma dádiva, ao mesmo tempo que como uma pesada condenação que o perseguiria pelo resto de seus dias.

A poesia "Passagem das horas", de seu heterônimo Álvaro de Campos, contribuirá para que compreendamos a ambigüidade de seus sentimentos frente à sua posição de gênio:

"Trago dentro do meu coração,

Como num cofre que se não pode fechar de cheio,

Todos os lugares onde estive,

Todos os portos a que cheguei,

Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,

Ou de tombadilhos, sonhando,

E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero." [34]


O gênio é, portanto, um ser extremamente contraditório: ávido por "engolir" todo o mundo, com o coração abarrotado de experiências, ao mesmo tempo que na dúvida entre supor se o mundo é demasiado grande ou demasiado pequeno para caber em si: "Não sei se a vida é pouco ou demais para mim/ Não sei se sinto de mais ou de menos, não sei" [35] .

O desespero que acomete o homem de gênio coloca-o, na opinião de Fernando Pessoa, na mais destacada das categorias de indivíduos. Em texto no qual analisa a literatura de Antonio Botto, o escritor propõe uma diferenciação entre o homem vulgar (aquele em que os sentidos sobrepõe-se à inteligência) e o homem superior (que vive dos sentidos e da razão, já que despertou em si o pensamento abstrato). Desses homens superiores, o escritor não tem dúvidas ao eleger o melhor: "o artista é a forma mais alta de homem superior... o artista, ... é do tipo dos Deuses, cujo mister é criar" [36] .

Então, o artista nada menos é que um deus, que juntamente com a glória de haver sido escolhido pelos deuses como criador, recebe o peso de ter de conviver com o restante da humanidade: "Assim", diz ele ao referir-se ao amigo Mário de Sá-Carneiro, "ao gênio caberá, além...da mágoa de conhecer a universal ignorância, o sofrimento próprio, de se sentir par dos Deuses sendo homem, par dos homens sendo Deus..." [37] .

Contudo, mesmo sabendo que terá de viver num mundo ignorante, o poeta mostra que nunca poderá baixar à condição de "indivíduo vulgar", já que foi tocado pelos Deuses. E, completa ele, o único modo de aceitar a vida é sendo um homem vulgar:

"Torna-me humano, ó noite, torna-me fraterno e solícito.

Só humanitariamente é que se pode viver.

Só amando os homens, as ações, a banalidade dos trabalhos,

Só assim - ai de mim! -, só assim se pode viver.

Só assim, o noite, e eu nunca poderei ser assim!" [38]
Porém, a compreensão da genialidade como condenação devia-se também à crença do poeta de que a genialidade encontrava-se no limiar entre a sanidade e a loucura, sendo que a loucura seria "normalizada pela diluição no abstrato, tal como um veneno que, mediante mistura, se converte num medicamento" [39] . Portanto, o tratamento para este gênio angustiado seria a literatura, ou ainda mais, a construção dos heterônimos - máscaras nas quais o poeta projetaria a sua insânia (afinal, nada mais abstrato do que isso): "a 'loucura' de Pessoa é uma projeção-máscara mediante a qual procura fundamentar, a partir da criatura, a genialidade do seu criador" [40] - assertiva que também nos ajuda a notar que, ao esconder-se atrás de suas criaturas, o que o escritor fazia era afirmar com veemência a sua posição de gênio criador, ou seja, escondido ele se mostraria.

Estas constatações nos levam ao encontro de alguns objetivos da máscara. A possibilidade de descoberta de si mesmo, a possibilidade de salvação de si mesmo e o intuito "salvador" (do escritor mascarado) de tirar os indivíduos da alienação. Discutamos, pois, estes objetivos com mais vagar:

Nas palavras de Joel Serrão, "a fenomenologia da máscara permite-nos entrever algo acerca desse desdobramento dum ser que quer parecer aquilo que não é e que acaba por descobrir-se, ao dissimular-se, mediante a sua dissimulação" [41] .

"Descobrir-se pela dissimulação" - a partir daí somos levados à outra assertiva formulada por Fernando Pessoa em dois versos, inscritos no livro de poesias "Mensagem": "A busca de quem somos/ Na distância de nós" [42] . Assertiva que nos permite volver à Shakespeare, dramaturgo que tanto o escritor admirou e com o qual comparou-se.

A peça "Como lhe aprouver" [43] , do dramaturgo inglês, enfoca bastante bem o quanto a utilização da máscara coopera para o auto-conhecimento. Rosalinda, a protagonista do drama, é obrigada pelo tio a partir da casa dele, sob a ameaça de perder a vida caso não o fizesse. Como teria que cruzar uma densa floresta para encontrar-se com o pai, a moça decide vestir-se à moda masculina para não ser abordada por nenhum ladrão. Porém, a fantasia que até então seria apenas um disfarce perante os outros, acaba tornando-se um disfarce perante si mesma quando a moça vê na floresta o nobre Orlando, que a conhecera durante um torneio e por ela apaixonara-se.

Rosalinda, que antes de conhecer Orlando combinara com a prima "brincar de se apaixonar" [44] , apenas descobre-se verdadeiramente apaixonada por ele após um longo período de convivência com o moço, período no qual ela continuara vestida de homem. Durante este período, aliás, algo curioso ocorre: a moça, que atribuíra a si o nome de Ganimedes, pede que Orlando lhe fale como se ela fosse Rosalinda. Assim, fingindo que aquele homem era Rosalinda (e na verdade o era), o moço expressa sua paixão pela moça sem constrangimentos. Ao mesmo tempo que Rosalinda, transformada no confessor daquele que a amava, transforma-se numa terceira pessoa que observa de fora o amor que Orlando dedicava à ela, percebe que o amor do moço era digno de reciprocidade e descobre-se também apaixonada por ele. 

Acreditamos que agora podemos observar mais claramente o que o escritor português quis dizer quando propôs afastar-se de si para compreender-se. Para tanto, o disfarce de homem usado por Rosalinda transformou-se, em Fernando Pessoa, nas máscaras que ele tanto bem individualizou e que, no entanto, continuavam tendo um pouco dele. Afinal, o momento crucial em que Rosalinda se descobre apaixonada é quando, ainda fingindo-se de pastor, desmaia após receber do irmão de Orlando, Oliveiro, um lenço com o sangue do moço. Neste momento, as palavras de Oliveiro à Rosalinda nos deixam perceber que os sentimentos da criadora influenciavam a criatura: "Coragem, rapaz. Vós, um homem! Não tendes o coração dum homem." [45]     

No entanto, segundo Joel Serrão, a utilização da máscara também denota o intuito do mascarado de proteger-se da realidade na qual vive. Serrão cita Hölderlin, para o qual "nas boas épocas os exaltados são raros. Mas quando os grandes, os puros objetos tornam-se defeituosos, o homem apodera-se não importa do que para se forjar algum fantasma e fecha os olhos para poder se interessar por eles e consagrar-lhes a vida" [46] .

Nas palavras de Hölderlin, o momento histórico apresenta-se como o deflagrador da necessidade de fuga do real. Afirmação extremamente coerente, se levarmos em conta que nas primeiras três décadas do século XX (época contemporânea à criação dos heterônimos), o mundo enfrentou a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Esta época foi especialmente difícil para Portugal, fragilizado interna e externamente. Externamente devido à iminência de perda de suas colônias ultramarinas, e interiormente devido à proclamação da República, em 1910 e às crises inerentes a ela - entre elas o esfacelamento do partido republicano.

No entanto, o movimento empreendido por Fernando Pessoa não resumiu-se apenas à fuga do real. As criaturas do poeta também serviam para esboçar qual era a alternativa de Humanidade proposta por ele. Temos a partir daqui o terceiro vértice do nosso triângulo: Fernando Pessoa também desejava empreender uma reforma política.

As propostas do escritor no âmbito político espalham-se pelas centenas de textos teóricos escritos por ele. Então, caminharemos por alguns desses textos no objetivo de estabelecermos a trajetória social que tanto influiu na construção das criaturas desse inigualável criador.

No ano de 1917, Pessoa publica "Ultimatum", segundo Serrão a primeira reflexão teórica do escritor a respeito do caminho que Portugal deveria abrir. O "Ultimatum", nome que faz alusão ao Ultimatum que os ingleses deram a Portugal em 1890, tratava-se de uma proposta de "transformação de todos os valores" [47] .

O escritor do ensaio propunha que Portugal rompesse com a tradição cultural dominante no Ocidente Europeu, ruptura que implicava num projeto de recuperação da Pátria decadente. E, para fazer com que Portugal galgasse os degraus rumo ao renascimento, propunha a existência do "Quinto Império", império este cujas características analisaremos tomando como ponto de partida a poesia "Quinto Império" [48] .

"Vibra, clarim (...)

Vibra chamando, e aqui convoca

O inteiro exército fadado

Cuja extensão os pólos toca

Do mundo dado!


Aquele exército que é feito

Do quanto em Portugal é o mundo


...
Aqui! Aqui! Todos que são.

O Portugal que é tudo em si," [49]


"(É a Hora!) Aqui" [50] . Este é o grito de convocação para uma revolução cultural, grito que ecoa nos quatro cantos de Portugal, desse grande Portugal que é todo o mundo. Esta constatação remete-nos a um momento histórico no qual aquele país, que no século XX estava passando por tantos percalços, era um dos mais importantes do universo: o período do Renascimento, mais especificamente os anos dos descobrimentos. Daí a pensar que o período em questão "é o grande ato cosmopolita da História" [51] .

Percebemos claramente nas palavras do escritor que ele atribui àquela época a capacidade de ter incutido o cosmopolitismo no ânimo português, pois independente dos descobrimentos haverem ocorrido a quatro séculos, Portugal continuava em princípios do século XX sendo o mundo. Porém, se isso dava-se de fato, o que fazia com que o país se encontrasse decadente naquele momento? Talvez porque nem todos tivessem consciência dessa intrínseca característica cosmopolita do país.

Neste caso, quem ainda restava consciente da grandeza portuguesa? A assertiva de Pessoa pode nos ajudar a responder este questionamento:

  "Os sensacionalistas portugueses são originais e interessantes porque, sendo estritamente portugueses, são cosmopolitas e universais" [52]

Portanto, este grupo de intelectuais, os Sensacionalistas, são aqueles que vivem o cosmopolitismo na prática, daí a originalidade dos mesmos [53] .

Em posse dessa afirmação, retornemos aos textos que estamos analisando. Pudemos observar que Pessoa ressalta o momento dos descobrimentos como um momento essencialmente cosmopolita. Considerando que a época em questão correspondeu ao apogeu de Portugal, então existe uma clara relação entre este apogeu e o cosmopolitismo. Deste modo, ao apresentar os sensacionalistas como essencialmente cosmopolitas, Pessoa coloca-os como os arautos de uma nova possibilidade de grandeza do país.

 Cientes da grande importância deste movimento literário que propunha uma reforma cultural e política em Portugal, discorreremos brevemente a respeito do "Sensacionalismo", do qual pertenciam, entre outros, Pessoa, Mário de Sá-Carneiro e Álvaro de Campos [54] .

A corrente Sensacionalista postulava, nas palavras de Pessoa, a reunião em si de tudo o que houvesse de original das correntes anteriores. Estas influências seriam, então, sintetizadas e o resultado desta sintetização seria transcendido. A proposta geral da corrente era, portanto, "ser de todos os tempos, de todos os espaços, de todas as almas, de todas as emoções e de todos os entendimentos" [55] .

A inspiração para esta arte desnacionalizada, que acumularia dentro de si todas as partes do mundo, fora "o milagre grego". Segundo o escritor, "Da Grécia Antiga vê-se o mundo inteiro, o passado com o futuro, a tal altura emerge, dos menores cumes das outras civilizações, o seu alto píncaro de glória criadora" [56] .

"Grécia Antiga" pressupõe paganismo... A partir destas considerações começamos a compreender mais claramente as escolhas temáticas e estilísticas dos heterônimos Alberto Caieiro e Ricardo Reis. Porém, mais do que isso, Joel Serrão vê na proposta de instauração de um novo paganismo uma contestação de Pessoa à política da Europa Contemporânea [57] - daí a aproximação entre a individualidade destas criaturas e a do criador das mesmas.

Fernando Pessoa acreditava firmemente que na própria definição do cristianismo residia a razão de seu fracasso. Isto porque, na opinião do escritor, o cristianismo tratava-se de uma teoria igualitária e individualista, para a qual cada alma tinha especial importância, já que possuía qualidades de livre arbítrio, aspiração ao divino e capacidade de imortalidade. Tais características remetem-no à Revolução Francesa, que tinha aquele mesmo caráter de liberdade, igualdade e fraternidade. Daí suas palavras virulentas ao referir-se ao Humanitarismo, um dos pressupostos da religião cristã [58] :

"O Humanitarismo é o último baluarte da doctrina [sic] cristã (...) o mal cristão existe ali, em toda a plenitude da sua maleficência." [59]

Joel Serrão vê nesta postura a incapacidade psíquica que minava o escritor e o fazia execrar qualquer forma de amor humano. Nas palavras do crítico, o escritor afligia-se diante da idéia - tida por ele como mentirosa - de que Deus poderia eliminar os males da sociedade e instituir a paz e a felicidade eterna. Assim, uma vez observada a impossibilidade de felicidade na Terra, importava ao poeta adotar uma metodologia que a excluísse definitivamente dos horizontes. Por esse motivo o poeta execrava quaisquer soluções políticas ou sociais de cariz humanitário. [60]

Da descrença na salvação divina brota o anti-humanitarismo do escritor, princípio que, como o próprio nome diz, leva como pressuposto a negação do humanitarismo. Na apregoação deste pressuposto, o escritor nos faz remeter a sua crítica à Revolução Francesa. Ora, uma vez que o escritor negava com veemência o princípio da igualdade, observamos claramente que ele desejava nada menos que abalar os alicerces da democracia, democracia que era, assim como o humanitarismo, um dos produtos do cristianismo: "o humanitarismo e a democracia, produtos cristãos, filhos pródigos do cristismo" [61] .

Uma vez que o princípio democrático era apontado como um dos males da sociedade, o escritor anti-humanitarista apresenta os moldes para uma reforma social, reforma que seria empreendida "por um movimento não coletivo, isto é, por um impulso puramente individual" [62] . E quem mais poderia exercer esta força individual se não o homem de gênio  - que representava a negação do cristianismo, religião de caráter místico que não mais teria lugar naquela sociedade de princípios do século XX?

Nesta sociedade sonhada por Fernando Pessoa, apenas ao homem de gênio - indivíduo hábil que correspondia à soma de vários outros - seria dada a autoridade de pensar, já que, na opinião do escritor, seria necessário desaparecer o conceito "de que a qualquer indivíduo é lícito ter opiniões sobre a política (como sobre qualquer outra coisa), pois que só pode ter opiniões o que for média [ou seja, os indivíduos hábeis]" [63] .

Neste sentido, também a forma de governo deveria obrigatoriamente ser diferente, já que a República democrática - forma de governo que acabara de ser instaurada em Portugal - pressupunha a liberdade de expressão, algo que na opinião de Pessoa fazia-se contraproducente.

Serrão aponta que Fernando Pessoa opunha-se à Monarquia, vigente em Portugal até 1910, e também esperava esperançosamente pela República. No entanto, seu sonho de Republica mostrara-se em vão quando ela internara-se por caminhos democráticos em detrimento de investir na construção do nacionalismo, e os caminhos democráticos nada teriam a ver com a tendência nacionalizante pressuposta nela [64] . Tal fato fica mais compreensível ao observarmos que o escritor via o homem como um animal irracional que, ao estar em meio a um grupo de indivíduos, deixava o instinto sobrepor-se à razão.

Da crença de que a sociedade seria uma aliança de instintos vinha a constatação de que o princípio democrático com o qual se identificava a república portuguesa fazia ouvidos moucos às teorias científicas propagadas a partir de meados do século XIX [65] .

É devido a este motivo que a república ideal do poeta do "Quinto Império" era a república grega, a "democracia antiga dos pagãos", cujas bases eram de um lado a aristocracia, e de outro a escravidão. O escritor via nestes dois estamentos totalmente diferenciados a vacina contra as doenças sociais, e por esse motivo advogava por um contínuo afastamento, pela arte, de ambos os estamentos. Aos artistas caberia, portanto, instaurar a barreira do "requinte emotivo", barreira esta que o povo jamais conseguiria transpor.

Tal postura algo elitista pode ser melhor compreendida se observarmos que o escritor traçava uma relação de causa e efeito entre o fim do Renascimento - ou, como ele diz, a "época dos descobrimentos" - e o início da decadência dos portugueses, já que ao fim do Renascimento a coletividade suplantara os indivíduos. Portanto, a reconstrução da nação portuguesa deveria ser realizada por uns poucos indivíduos e não pelo todo, e a estes indivíduos o escritor denomina "Inteligências", as quais segundo Serrão procuram "impor os seus direitos e imprimir o rumo do progresso" [66] .

Já observamos que a literatura teria papel fundamental na segregação social - e conseqüente possibilidade de progresso - proposta pelo escritor. Portanto, Pessoa traz para sua poesia um dos mitos mais caros aos portugueses, o Sebastianismo. Ora, o rei D. Sebastião morreu em combate exatamente no final do Renascimento (século XVI), época na qual o império Português começava a entrar em crise. Portanto, o retorno do rei implicitava que o "milagre grego" voltaria a exercer em Portugal o papel importante que exercera na época daquele rei. Mais ainda, a poesia "Quinto Império" nos deixa entrever que o escritor propõe uma continuidade entre Portugal e a Grécia, continuidade esta que, como apregoa o movimento sensacionalista, pressupunha a transcendência de suas características peculiares [67] :

"Transcende a Grécia e a sua história

Que em nosso sangue continua!

Deixa atrás Roma e a sua glória

E a Igreja sua!


...

Não foi para servos que nascemos

De Grécia ou Roma ou de ninguém.

Tudo negamos e esquecemos:

Fomos para além." [68]
E caberia à poesia - já que ela seria a anunciadora do regresso de D. Sebastião, e de um "Quinto Império" que faria com que Portugal voltasse a ter um papel decisivo no concerto mundial - a dar uma orientação para a nação portuguesa. E esta orientação seria vazada, tal qual afirma Serrão, por uma incrível aventura de criatividade [69] , que propunha nada menos que romper com a estagnação do psiquismo nacional, psiquismo que, nas palavras de Pessoa "precisa ser trabalhado e percorrido em todas as direções por novas correntes de idéias". [70]

E que melhor exemplo de "corrente de idéias" que o Sensacionalismo, que propunha a um só tempo a mistura de todos os movimentos literários e a transcendência dos mesmos através da originalidade?

Ademais, que melhor exemplo de originalidade se não a criação dos heterônimos?

Realmente, se Fernando Pessoa atribui à literatura o papel de propor um rumo para Portugal, é observável que tal tarefa caberia em sua maioria (talvez em sua totalidade) ao movimento sensacionalista. E uma vez que, segundo o próprio Fernando Pessoa, tanto ele quanto seus heterônimos se inscrevem no âmbito do Sensacionalismo, então nota-se claramente que o escritor resolveu tomar diretamente para si o encargo de "romper com a estagnação do psiquismo nacional".

E um dos cruciais aspectos deste rompimento, em nossa opinião, é a "conscientização" de que tudo é mais complexo do que aparenta ser. Ilustraremos nosso ponto de vista através de dois exemplos: a constatação de Pessoa de que o conceito de "individualidade" inexiste, já que cada indivíduo "é um agrupamento de psiquismo subsidiários" [71] ; e a notação de que a escrita não é (e nunca será) o espelho das sensações.

Pessoa reflete que, já que a individualidade é inexistente, então nenhum artista deve exprimir apenas uma personalidade. Neste sentido, as máscaras apresentavam-se como a tentativa do poeta encerrar todas as virtualidades de sua intuição poética, ou seja, pressuporia uma ausência de unidade e o desejo do poeta expressar-se por inteiro através dos seus vários eus [72] . E tal anseio de "unidade" através da literatura é bastante bem expresso neste trecho da poesia "Passagem das Horas":

"Sentir tudo de todas as maneiras,

Viver tudo de todos os lados,

Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo,

Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos

Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo."
Já que o indivíduo é a soma de vários psiquismos, o que o faz um amálgama de desejos e crenças muitas vezes contraditórios, nada mais sensato do que dividir-se em vários para tudo sentir e tudo expressar. Apenas assim ele poderia, ao mesmo tempo, "Ter todas as opiniões/ Ser sincero contradizendo-se a cada minuto" [73] .

No entanto, esta ânsia por "sentir tudo" e "ter todas as opiniões" transforma-se em angústia frente à impiedosa barreira que cerceia a livre passagem entre as sensações e as palavras. Tal fato, que em certo momento leva o escritor a fazer amargas reflexões sobre a condição humana - "cada um de nós, na sua vida realizada e humana, não é senão a caricatura da sua própria alma (...). Somos sempre a tradução para o grotesco daquilo que quisemos ser, e que, por isso, intimamente e verdadeiramente somos" [74] -  é bastante discutido por ele em suas teorizações a respeito do movimento Sensacionalista.

Segundo o escritor, para o Sensacionalismo a única realidade seria a sensação. Seguida a ela estaria o ato de pensar, que tratava-se do desejo de "transmitir aos outros aquilo que se julga que se sente" (o que atesta a impossibilidade da transmissão do que se sente). Daí, a constatação de que "Sentir é compreender. Pensar é errar". No entanto, o escritor considerava a arte a intelectualização da sensação, sendo que uma sensação intelectualizada seguiria dois processos sucessivos: (1) "a consciência dessa sensação", sendo que o "fato de haver consciência de uma sensação transforma-a já numa sensação de ordem diferente", e depois (2) "uma consciência dessa consciência". Do primeiro processo decorreria a emoção artística, do segundo, a possibilidade dela ser expressa. Consequentemente, a expressão artística é resultado de uma série de transformações sofridas pela sensação primeira, esta sim a única realidade existente. [75]

As palavras serviriam para expressar o máximo possível do sentimentos do poeta. No entanto, como as palavras são apenas "a consciência da consciência" da sensação (e a sensação é a única verdadeiramente real), a própria manifestação dessas palavras transformaria o indivíduo num fingidor. Árduo paradoxo, que todavia Fernando Pessoa teve que correr o risco de enfrentar, já que era poeta.

Inerente a esta constatação está uma afirmação reiterada algumas vezes pela crítica pessoana com a qual tivemos contato, qual seja, a de que o escritor não defendeu sistematicamente uma doutrina, já que, em suas próprias palavras "na vida é tudo fluido, misturando, incerto, mau de analisar sumariamente e impossível de analisar até o fim" [76] - reflexão plausível para um escritor que tão profundamente refletiu acerca da fragilidade da linguagem para expressar as sensações e da fragilidade do conceito de individualidade.

No entanto, malgrado a não sistematização de uma doutrina coerente em seu todo, a leitura das empolgantes páginas deixadas por este escritor nos fizeram vislumbrar que ele propôs com bastante pertinácia uma minoração para os conflitos com os quais os "homens de gênio teriam de debater". Elementos decisivos para esta minoração ser levada a cabo foram os heterônimos, e os movimentos empreendidos por eles - a fuga do real, a utilização da máscara como auto-conhecimento e a proposta de uma reforma política - ajudam-nos a compreender que estas criaturas não eram nada alheias aos conflitos pelos quais passava o poeta naquele princípio do século XX. Portanto, as criaturas em questão não eram tão diferentes de seu criador quanto o escritor afirmara na carta a Casais Monteiro.

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