Ana səhifə

Literatura portugues


Yüklə 1.49 Mb.
səhifə27/29
tarix25.06.2016
ölçüsü1.49 Mb.
1   ...   21   22   23   24   25   26   27   28   29

José Cardoso Pires (1925-1998) esteve desde sempre ligado à ficção de implicação social, por vezes aliando as concepções neo-realistas às existencialistas (O Anjo Ancorado, 1958), e notabilizando-se por um estilo seco e enxuto que maneja com extrema sobriedade, desde O Hóspede de Job, 1963, a Balada da Praia dos Cães, 1982.

Pássaros pontilhando a ramaria, o horizonte do mar por cima da copa das árvores e entre o céu e a linha de água uma luzinha fria a caminhar para o crepúsculo. Um petroleiro? Elias demora-se a olhar. Tempo ao tempo. Só no dia seguinte começará o inventário dos sinais e dos palpites, confiado como sempre no Velhaco das Algemas. Tempo ao tempo. Mais depressa se apanha um assassino que um morto, porque, como dizia o outro, o morto voa a cavalo na alma e o assassino tropeça no medo.

Balada da Praia dos Cães

Mais recentemente, Alexandra Alpha, 1987, e De Profundis - Valsa lenta, 1997 dão conta de um insanável gosto de ficcionar a realidade mais próxima e comum no que ela, através da percepção do ficcionista, pode revelar de inverosímil, excepcional e inacessível ao olhar humano.

José Saramago (1922), embora só comece a publicar muito mais tarde, em poesia, crónica e conto, só com os romances Levantado do Chão, 1980, e Memorial do Convento, 1982, atinge uma popularidade que não deixa de crescer, no plano nacional e internacional. Ficcionaliza momentos particulares da história e da cultura de Portugal (O Ano da Morte de Ricardo Reis, 1944, História do Cerco de Lisboa, 1989) ou entrevê períodos de distopia ucrónica (Jangada de Pedra, 1986) e inlocalizável (Ensaio sobre a Cegueira, 1995, Todos os Nomes, 1997) que dão conta de uma reversão do homem ao seu confronto necessário, e nem sempre afortunado, com a comunidade, numa escrita particularíssima que põe em relevo uma frase longa e progressivamente elaborada por uma instância autoral que emerge e não se demite do seu papel de seleccionar e de julgar, assim fundamentando a ideia da criação literária.

 

Aqui têm, disse o escritor. A mulher do médico perguntou, Posso, sem esperar a resposta pegou nas folhas escritas, umas vinte seriam, passou os olhos pela caligrafia miúda, pelas linhas que subiam e desciam, pelas palavras inscritas na brancura do papel, gravadas na cegueira. Estou de passagem, dissera o escritor, e estes eram os sinais que ia deixando passar. A mulher do médico pôs-lhe a mão no ombro, e ele com as suas duas mãos foi lá buscá-la, levou-a devagar aos lábios, Não se perca, não se deixe perder, disse, e eram palavras inesperadas, enigmáticas, não parecia que viessem a propósito.



Ensaio sobre a Cegueira



Augusto Abelaira (1926), ficcionista de renome durante os anos sessenta (Cidade das Flores, 1959, As Boas Intenções, 1963), correspondeu aos anseios de uma geração que propunha a renovação social e política num contexto cultural de consciencialização e responsabilidade, no qual a arte e a literatura ocupavam lugar determinante. Bolor, 1968, é um romance que manifesta a desagregação dos sentimentos e a oscilação das convicções, numa escrita narrativa profundamente inovadora que o seu autor continuaria a desenvolver subsequentemente, questionando a lógica da comunicação e da sucessão do tempo, e por isso mesmo afirmando a fidelidade a valores fundamentais como o amor e a criatividade (O Bosque Harmonioso, 1982, Outrora Agora, 1996).

Agora, ele (ele, o Jerónimo) ali à varanda, trinta anos depois, a gozar o sol, os olhos no mar («la mer, toujours recommencée»). Mas lá em baixo, acinzentado, na avenida paralela à praia, um automóvel chega e, a curva rápida, sem hesitações, enfia-se entre dois carros -, manobra fulminante, milimétrica. O Jerónimo tê-lo-ia arrumado mais devagar, avaliando, atento, o estreito espaço disponível - daí a curiosidade com que espera o aparecimento do herói (será certo que a civilização chinesa, ao contrário da europeia, não celebrou os heróis guerreiros, considerava-os até seres inferiores? Esparta, modelo secreto da civilização ocidental. Herói sem penacho na cabeça, como Heitor, o do capacete fulgente. Telefonar à Marta (esqueci-me de pagar o telefone, o aviso ficou em cima do frigorífico).



Outrora Agora

Maria Velho da Costa (1938), revelação romanesca fulgurante com Maina Mendes, 1969, centrado na figura feminina que assume a ancestralidade, a rebeldia, o prazer, a criação e a dor como lugares de afirmação do ser, prolonga esta temática em Casas Pardas, 1977, que evidencia o seu modo poliédrico de compôr textos em registos diferenciados de discurso, porém de orgânica composicional sempre segura e coesa, e veiculando uma pungência de sensibilidade que confere ainda mais acutilância ao seu rigor formal (igualmente afirmado posteriormente em Missa in Albis, 1988, ou Dores, 1995).

Ah, digo-lhe que há um descontentamento que contenta, o tagarela, o que pode dizer-se com justeza e ouvir-se com gravidade, há festins de descontentamento e que bodo temos tido a esta vocação de carpidores que logo nos toma quando não estamos de partida. Creio mesmo que a saudade é amargor de paragem, não de distância. E isso me bateu ontem, de novo, cada vez mais certamente, no cais de Alcântara com as gaivotas adormentadas como pequenos patos, quietas no baloiço das águas, que reles somos quando não temos para onde ir.

Maina Mendes


Almeida Faria (1943): Muito jovem, publicou dois excelentes romances, Rumor Branco, 1962, e A Paixão, 1965 que revelam um talento seguro na arte de narrar, praticando simultaneamente inovações espectaculares, de desarticulação discursiva e de hibridez de modalidades, na escrita romanesca. A sua carreira posterior tem-se mantido regular, sublinhando os efeitos intertextuais (nomeadamente incluindo textos da arte e da comunicação em geral) e uma aguda ironia que afirma uma vocação satírica na observação de costumes e de ambientes político-sociais, nomeadamente na transição do 25 de Abril (Lusitânia, 1980, O Conquistador, 1990).

 

A morte os aflorou, com sua negra asa, com seu mistério fino e arrepiante e cavo, e então os homens viram quão sós e só entregues a si mesmos estavam e ao seu nada; mas o perigo passou, ou pensam que passou, e as bocas, ainda há pouco pejadas de desgraça, unem-se já para soltar um uivo ou um soluço, o uivo de cada cão que escapou à tormenta e sente o sabor da morte ainda em cima, o soluço de alívio e também de tristeza daqueles que se livram dum infinito túnel.



A Paixão

António Lobo Antunes (1942) foi a grande revelação do final da década de oitenta, com dois romances de grande êxito: Memória de Elefante e Os Cus de Judas, que traçam, numa escrita desenvolta e de prodigiosos efeitos metafóricos, uma visão deceptiva da guerra colonial e da geração que de forma contrafeita lhe deu corpo. De produção romanesca regular a partir de então, tem alcançado grande projecção internacional e mantém uma aguda consciência crítica do ambiente contemporâneo e da memória nacional do passado recente, com Auto dos Danados, 1985, ou Manual dos Inquisidores, 1996, ou mesmo do passado português mais glorioso, em gesto simultâneo de homenagem e de libelo acusatório e dolorido (As Naus, 1988).

 

Não são só os ratos, aliás, que moram connosco no sótão. Possuímos um jardim zoológico completo de formigas, melgas, traças, centopeias, aranhas, grilos, carunchos, que presumo alimentarem-se da mesma falta de comida do que nós, sem contar as borboletas que se esmagam contra as lâmpadas, no verão, e se reduzem de imediato a um pozinho escuro de verniz. E há os pombos. E as rolas. E os barcos, como lesmas, no Tejo. E os vizinhos em camisola interior, incapazes de voar, crucificados nos craveiros das varandas. E tu e eu, cada vez mais transparentes e magros, a prepararmos o pequeno almoço de meio grama de heroína da injecção da manhã.



Auto dos Danados



Mário Cláudio (1941), firmando-se de início como poeta e cultivando vários géneros literários, é sobretudo conhecido como ficcionista desde a publicação de Um Verão Assim, 1974, reafirmando-se com Damascena, 1983, e sendo reconhecido como um dos grandes vultos da ficção portuguesa contemporânea a partir da sua Trilogia da Mão (com volumes sobre Amadeo Souza-Cardoso, Guilhermina Suggia e Rosa Ramalho). O pendor para as formas literárias de reconstituição, aliando a capacidade de evocação de ambientes e figuras a uma muito pessoal subjectividade de deformação criativa, acentua-se em muitas das suas obras posteriores, como A Quinta das Virtudes, 1990, ou As Batalhas do Caia, 1995.

 

Fora Cândida Branca fruto de certo romance, fugacíssimo e intenso, entre um cocheiro de mala-posta, casado e pai de outras duas raparigas, e uma vendedeira de doces, da aldeia de Irivo, no fojo de Penafiel. Haviam-se avistado seus progenitores, na romaria da Senhora Aparecida, por uma longa jornada ardente, dessas que fazem desfalecer os próprios milheirais. E, no meio das espigas, engendrara-se a pequena, crescendo à sombra, depois, da doceira, a qual acharia, mais tarde, um rapaz de quinta, disposto a recebê-la, por consorte.



A Quinta das Virtudes



Maria Gabriela Llansol (1931) é um caso ímpar na ficção contemporânea, de jorrante, inesperada e original criatividade. De estilo muito próprio, a sua forte personalidade afirmou-se desde 1957, com as narrativas de Os Pregos na Erva, consolidando-se com O Livro das Comunidades, 1978, e com todas as suas obras posteriores, de que poderemos salientar A Restante Vida, 1978, e Um Beijo Dado mais tarde, 1990, e Lisboaleipzig, 1994 e 1995. Aliando a subjectividade enunciativa a um forte pendor mítico de implicação lírica, que funda numa visão da vida e do mundo de tipo religioso herético, sensualista e naturalista, a sua ficção caracteriza-se por uma hibridez de registos e de convocação, temporal e espacial de entidades, que no entanto assume uma coesão que lhe é dada por uma marca discursiva persistente e inconfundível.

 

O texto é a única forma de identificar o sexo e a humanidade de alguém porque, ó poeta estranho, o sexo de alguém, é a sua narrativa. A sua, ou a que o texto conta, no seu lugar. Assim o sexo será como for o lugar do texto.



Quando se deseja alguém, como tu desejas Infausta, e ela deseja Johann, é o seu lugar cénico que se deseja,
os gestos do texto que descreve no espaço
e chamar-lhe
precioso companheiro;
de mim, direi que fui uma vez enviado,
trouxeste a frase que nunca antes leras,
o meu corpo a disse, e não reparaste que ficaste com ela escrita.

Lisboaleipzig 2

 Mário de Carvalho (1944) e Luísa Costa Gomes (1954), embora de idades distanciadas, são duas personalidades literárias afirmadas durante os anos oitenta mas confiimadas mais ou menos pelos finais da década, o primeiro com A Paixão do Conde de Fróis, 1986, e a segunda com O Pequeno Mundo, de 1988. Ligado às reconstituições histórico-paródicas, Mário de Carvalho produziu uma obra de teor complexo com o seu recente Um Deus Passeando na Brisa da tarde, 1994, romance sobre os alvores e implicações do cristianismo e possibilidade da sua releitura actual, e Luísa Costa Gomes deu-nos, em Olhos Verdes, 1994, uma singular obra de simulação e crítica da publicidade e das solicitações mediáticas. Praticando ambos uma escrita de recorte sintáctico clássico, e assumindo uma temática colhida no comum ou mesmo no vulgar, salientam-se pelo modo como lhe incutem cambiantes inesperados e sentidos de intensa acutilância reflexiva e crítica.

 

A chouto rápido, os dois cavaleiros prosseguiam agora pela charneca, já muito apartados da carreteiro, desandando para as bandas da raia. Contornaram um pinheiral em redondo, hesitaram à vista do plaino nu que a pequena elevação da praça dominava e lançaram-se num galope acelerado, a descoberto, obliquando contra a Espanha. Em pouco se sumiam, deixando como sinal do percurso uma mó de poeira que se ia tornando mais e mais ténue deste lado de cá.



Mário de Carvalho, A Paixão do Conde de Fróis

Os interesses dele eram as empresas, os utilitários, a carpintaria artística e o espaço. Futebol via de vez em quando. Tinha teorias sobre as coisas e ambicionava partilhá-las com outros. Explicava-se com clareza, embora não se pudesse considerar que fizesse sempre todo o sentido. O que o intrigava sobremaneira era o espaço, o espaço que permeava tudo, o ar vazio entre a secretária e a cadeira, entre o rosto e a mão, entre o chão e o tecto. Disse que tinha a certeza de que todos os espaços vazios tinham um significado profundo.

Luísa Costa Gomes, Olhos Verdes

Muitos outros romancistas e poetas enriquecem a nossa literatura e tornam difícil a sua sinopse. Os contemporâneos são isso mesmo: o excesso em relação ao olhar do crítico, o transbordar da vida e da sua continuidade inesgotável em relação ao crivo do historiador.

Fiquemos, ainda, pois, com poetas como Egito Gonçalves, Nuno Júdice, Vasco Graça Moura, António Franco Alexandre, João Miguel Fernandes Jorge, Paulo Teixeira - e o mesmo diremos dos escritores de ficção: Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta, Hélia Correia, Alexandre Pinheiro Torres, Eduarda Dionísio e tantos outros.

São todos estes, aliás, aqueles de que não chegámos a falar e os que nem sequer nomeámos, que dão sentido ao que aqui se escreveu, para que fique incompleto, e fazer sentir o quanto a literatura é viva e desmedida, porque ela é antes de mais leitura e tempo, e não fixidez, e não cabe afinal em nenhuma página:

O tempo não podia correr numa ilha sem lugar e sem sombras.


mas abolido o tempo, a história deixava de existir.
ao princípio era a ninfa e o silêncio da máquina do mundo.
era o silêncio no mais puro momento da sua glória inteligível.

Vasco Graça Moura, Concerto Campestre, 1993


O profundo silêncio das flores
é um lugar de ausência. Vazia moldura
para o vôo das aves, linha oscilante
de ligeira névoa
que nada revela do que talvez esconda.

Egito Gonçalves, E no entanto Move-se, 1995


«Epístola para Dédalo»

Porque deste a teu filho asas de plumagem e cera
se o sol todo-poderoso no alto as desfaria?
Não me ouviu, de tão longe, porém pensei que disse:
todos os filhos são Ícaros que vão morrer no mar.
Depois regressam, pródigos, ao amor entre o sangue
dos que eram e dos que são agora, filhos dos filhos.

Fiama Hasse Pais Brandão, Epístolas e Memorandos, 1996

Começo onde a memória dói.
Coisas antigas do susto de viver
terrores dos rostos dos outros
nem sei. Digo isto. Um espírito de meditação
nasceu da loucura, nunca soube de
tais coisas foram feitos os meus dias
de puros sons quebrados por sons puros. (...)

Joaquim Manuel Magalhães, António Palolo, 1978

«Post-Scriptum»

Que rumor consegue ainda magoar-te,


deixar-te inquieto e só à volta das palavras?
Que rumor pode levar-te a escrever assim,
circunspecto e árido,
escassos versos?

Luís Filipe Castro Mendes, Modos de Música, 1996

«Poema»

O mar, e por cima de nós os ramos


do crepúsculo, e os remos do sol que
se afundam no mar do horizonte.

Nuno Júdice, O Movimento do Mundo, 1996

Com os gravetos encalhados o vento desenha

na parede o gráfico do teu sopro Com as mãos

perdidas desfazes a imagem à espera

que a parede se abra Será a última

parede do labirinto?

Manuel Gusmão, Mapas. O Assombro a Sombra, 1996

A profunda harmonia entre ela e o mundo - uma harmonia difícil, instável, porque ela insistia sempre em viver com rigor, com uma atenção que não afrouxava nunca, mesmo quando dormia - o rigor, por exemplo, com que domava ou desmanchava os sonhos, obrigando-se a lembrá-los, obrigando-os a saltar por dentro de arcos incendiados, as flores imaginadas formando finalmente um ramo, as flores de sombra, de sol, de areia, domar o vento, aprender a cavalgar o vento, pôr um risco de azul a contornar o mar, a dura acrobacia do seu corpo, ao mesmo tempo solto e geométrico, os difíceis exercícios interiores, os saltos mortais de olhos vendados sobre um fio de arame estendido entre o possível e o impossível.

Teolinda Gersão, Os Guarda-Chuvas Cintilantes, 1984


Imagem e Tempo na obra de Maria Gabriela Llansol

Maria João Cantinho

 

“Ana de Peñalosa não amava os livros: amava a fonte de energia visível que eles constituem quando descobria imagens e imagens na sucessão das descrições e dos conceitos”.


   Maria Gabriela Llansol, O Livro das Comunidades, p. 75.

“Écrire, c’est rentrer dans l’affirmation de la solitude où menace la fascination. C’est se livrer au risque de l’absence de temps, où règne le recommencement éternel.(...)Écrire, c’est disposer le langage sous la fascination et, par lui, demeurer en contact avec le milieu absolu, là où la chose redevient image(...).”


   Blanchot, L’Espace Littéraire, p. 31.

“(…)Exercitaremos os pés por entre as imagens e as mãos sobre a escrita.”


   Maria Gabriela Llansol, O Senhor de Herbais, p. 37.

 

É trivial, ao falar-se da obra de Maria Gabriela Llansol, aludir a uma certa estranheza1 e a uma complexidade que recobre toda a sua obra, contribuindo para uma resistência, por parte dos leitores. De uma forma aparente e muito superficial, podem tomar-se os seus textos como um exemplo de aleatório e, mesmo, de um absurdo. Mas, à medida que se penetra a estranha e complexa mundivisão llansoliana, é fácil, ainda, incorrer no risco de a tomar como um ‘estilo’ ou um ‘modelo’ aplicável em todas as circunstâncias. Por essa razão, só a concentração e a atenção ao desenvolvimento da sua obra e da transversalidade dos temas e figuras, conceitos que a percorrem, permitem levar a cabo uma circunscrição dos pontos que configuram a sua escrita como a apresentação, em si, não apenas do mundo, como de um método, cujas directrizes são esquivas, mas passíveis de serem vislumbradas.



O que coloca a grande dificuldade da interpretação do seu universo literário é, com efeito, a sua ilegibilidade, como o nota Rui Magalhães2, ao relembrar essa desintegração do equilíbrio a que o texto narrativo e convencional nos habituou. Sem querer radicalizar a noção de leitura e de texto, o certo é que o texto llansoliano possui esse dom (o dom poético), que resulta do abandono da literatura para mergulhar no abismo - já não da literatura - mas da própria escrita, no que ela contém de perigosa implosão. E é nesse limiar de perigo, entre o exprimível e o inexprimível, que se sustenta o texto llansoliano. É precisamente nesse umbral da literatura, confinando com o segredo, que leva Silvina Rodrigues Lopes3 a definir a literatura llansoliana de «literatura mística»4, por se encontrar numa relação indissociável da epifania. Não se trata apenas de os seus livros serem habitados por figuras (e não personagens, como se verá adiante) de místicos, mas de um trabalho de escrita que opera sobre a palavra, no sentido de as tornar “opacas”. Elas são arrancadas ao seu contexto habitual, para entrarem no círculo de uma nova significação, o que as torna estranhas. São, dizendo de outro modo, consumidas e transformadas numa outra matéria, adquirindo uma nova significação.

Circunscrever o campo em que se move a escrita llansoliana, leva-nos a referir determinados critérios que parecem aplicar-se-lhe, descobrindo-lhe uma natureza e uma energia peculiares, que movem e impulsionam o texto. Esses critérios, ou melhor, palavras que caracterizam a sua escrita, não são mais claros e evidentes pelo facto de serem nomeados, mas permitem encontrar focos de luz irradiantes e vestígios que esboçam uma estética llansoliana. São essas palavras a visão, a possessão, o vazio, a errância, a pobreza, a rebeldia, a comunidade, entre outras. Mas essas mesmas palavras encerram desde logo e em si um segredo. Quando é pensável a leitura crítica sobre a obra, imediatamente vem à memória o noli me legere de Blanchot5. Ressalte-se o precário do texto, a zona obscura em que ele se encerra, guardando em si o sentido. A resistência abre-se nessa incandescência da imagem; se, por um lado, ela (imagem-escrita) apela ao jogo das faculdades, para usar o termo kantiano; por outro, essa imagem fecha-se sobre si própria, transformando-se num interdito.

Deste modo, o paradoxo suscitado não é um impeditivo da leitura, mas confirma, antes, uma exaltação dessa tarefa da participação na compreensão e decifração (caso seja possível falar nestes termos). Acresce, ainda, o facto de vislumbrar, pela crítica e pelo trânsito entre a leitura e a escrita, o reconhecimento de uma “escrita laboratório” que M.G.L. reconhece no seu diário, Um Falcão no Punho, p. 60: “Musil e eu interessamo-nos pelo pensamento que se desenvolve e suspende na escrita; a literatura como comércio, abandonámo-la neste cruzar de prados onde nos encontrámos por uma circunstância fortuita (...) Liga-nos a aquiescência de que almejar com a escrita não é o mesmo que esbanjar no vazio a palavra.”6 . Não, a palavra não é, de modo algum, esbanjada, ou objecto de um jogo fortuito, mas é, se é que se pode defini-la assim, “reconvertida” pela sua incorporação numa nova ordem de significação. E o perigo da escrita está nessa tarefa de lutar contra a ordem de significação convencional (e meramente comunicacional da narrativa), integrando-a numa nova constelação ou ordem. O efeito que daí resulta é, justamente, essa estranheza e ilegibilidade a que já se aludiu anteriormente. A escrita não se inscreve num horizonte pré-determinado de sentido, mas abre o espaço fundante, o Lugar. É exemplo particular desta escrita laboratorial O Livro das Comunidades, todo ele dividido, não em capítulos, como seria de esperar, mas em Lugares e em que cada Lugar abre, a partir de si próprio, um espaço de epifania, criador e novo, onde a imagem se dá como cena fulgor.

Este aspecto laboratorial reveste-se de um método que se apoia em determinados conceitos, de importante apresentação e sem os quais o leitor permanece num estatuto de indecibilidade relativamente ao texto da autora. Porquê, em primeiro lugar, falar de um método, já que essa palavra traz ressonâncias indossoluvelmente ligadas a determinados “modos de fazer”, que podem incorrer no risco de uma receita ‘pré-fabricada’ ou um modelo a priori, aplicável a todas as suas obras? Antes de mais, seria de ressalvar a extrema originalidade com que Llansol percorre o seu caminho, tacteando obviamente as suas obsessões, mas sem nunca abandonar esse efeito de subversão em que se tropeça, a cada passo.

É preciso frisar que, para M.G.L., só a escrita interessa. A escrita como experiência, busca e mergulho em si mesma e isso implica romper com os cânones literários e os géneros impostos convencionalmente. No seu universo não é possível falar-se de unidade ou de narratividade, ainda que a coerência do texto seja a sua linha decisiva. Desengane-se o leitor, mesmo o mais atento, se experimentar na leitura llansoliana a desconcertante “experiência” do fragmento desconexo ou de um labiríntico universo. Recorde-se Maurice Blanchot, ao afirmar que “a essência da literatura é escapar a toda a determinação essencial, a toda a afirmação que a estabilize ou a realize: nunca lá está”7. Deste ponto de vista, Llansol, não se encontra preocupada com a literatura - e jamais perfilharia a ideia mallarmiana do Livro8 - e tão pouco com o acto da escrita em si, despojado, teórico ou reflexivo, se ele não não se encontra indissociavelmente ligado à vida e à própria morte. Poder-se-ia dizer que a escrita de Llansol não é do passado - mesmo que constituída por figuras míticas e históricas - nem do presente, mas inscreve-se na ordem do devir, em que a sua lei é apenas a da pura metamorfose. Por opção, a escrita de M.G.L. não é capaz de fixar-se numa unidade ou num ponto determinado, mas exerce-se pela via de da errância, desenhando-se caprichosamente como um pensamento nómada e anárquico, que faz do entrosamento dos saberes, das conexões e desconexões, das passagens entre as figuras, que se delineam transversalmente na sua obra, o espaço transcendente da comunicação e expressão da linguagem.

Eis o modo como a própria autora afirma essa energia criadora que impulsiona a sua escrita: “Detenho-me no modo de separar tantas razões, num único lamento, no modo de separar uma parte do todo, como se fosse a resolução desta operação a determinar o aparecimento do dom, em toda a sua claridade e nobreza, e, por si só, arrastasse o prosseguimento do texto”9. A irradiação do sentido nasce, pois, desta desintegração do todo e a construção - já não à maneira de um tecido homogéneo e unitário - do texto processa-se mediante a lei desse “encontro inesperado do diverso”, unicamente (podemos arriscar dizê-lo) resultante da lei da metamorfose. Por isso, a autora acrescenta imediatamente que “São estruturas materiais que permitem a transformação da matéria em matérias mais leves, até que eu veja como todo o lugar tem várias formas de evoluir no nosso rosto sem o murchar”. Aqui surge o que parece, justamente, a “pedra de toque” do método llansoliano: “Nunca compreendi o que era estar no tempo, o que era mudar, o que é agir. Sinto-me bem a moldar a metamorfose.”10 Por outras palavras, a autora segue o seu caminho, não em relação ao incognoscível, mas ao imperceptível e é, justamente neste ponto que concordo com as afirmações de Rui Magalhães, ao definir essa subtil diferença que faz toda a distância entre a literatura mística e a escrita metódica de Llansol.

Avessa aos conceitos de escrita narrativa e ao próprio conceito de representação, no sentido de mimesis realista - que lhe parece pueril e inexperiente, como a autora o afirma em Um Beijo dado mais tarde - ela deve ser entendida como “experiência”, naquilo que de mais radical contém. É, aliás, de acordo com essa radicalidade que se encontram conceitos como os dedos que escrevem e tocam a labareda, como em S. João da Cruz, ou o lápis sonhante, aquele que não representa, mas faz nascer o sonho, desenhando-o pela escrita.

Arriscaria, nesta concepção de uma escrita-limite, fundadora e fundante do real, afirmar a presença de uma imanência da escrita ao corpo, imanência que faz deflagrar a distinção entre sujeito e objecto, numa operação designada por “mutação libidinal e afectiva”11. O objectivo que esta mutação procura levar a cabo é a reunião, mediante a travessia da escrita, “entre o que tem andado dividido: a liberdade de consciência e o dom poético.”. Esse dom poético12 jorra do “encontro inesperado do diverso”, resultante de um processo de fulgurização, no sentido em que “a matéria prima do texto é o confronto/adequação dos afectos e da língua, sobre um solo de um lugar que é sempre um corpo e uma paisagem falando-se”13. O confronto ou combate, entre os afectos e a língua, concentra em si a possibilidade do enfraquecimento da linguagem e da descoberta da sua falha, no sentido de Agamben14, permitindo a desagregação das regras convencionais, dissolvendo a unidade da linguagem isto é, pondo em causa os cânones da representação e da narratividade. Desliza-se, assim, de um tempo/espaço de sucessão narrativa para um espaço fulgurizado, onde o tempo histórico e cronológico, sucessivo, é anulado, fundando o lugar, criando uma epifania, a que MGL chama cena fulgor.

Desde logo, a fulgurização ou o processo de irradiação que Maria Gabriela Llansol confere à escrita, dissolvendo a unidade do texto, remete para o seu carácter fragmentário, que atinge todos os aspectos do que seria uma suposta unidade do texto-narrativa. As partes (que supostamente seriam as partes de um todo) transformam-se em fragmentos e adquirem uma autonomia que lhes permite funcionar por si, transformando-se em elementos que, após sofrerem uma descontextualização de uma ordem de sentido anterior, adquirem uma nova ordem de significação. Cada fragmento adquire, nessa nova ordem, um novo sentido que nasce, precisamente, dessa constelação a que se chama “o encontro inesperado do diverso”. (v. subtítulo de Lisboaleipzig 1).

O processo de desfiguração da ordem comum é também o momento da recusa do contínuo narrativo (mas não do romance, como há de ver-se), de estilhaçamento e que se dá pela produção de imagens que apresentam a realidade de uma outra forma, descontínua e fragmentária. Assim, se à narratividade corresponde o processo metafórico (que supõe a analogia entre universos que se encontram, ou epistemológica ou rectoricamente ligados), na escrita de Maria Gabriela Llansol, o procedimento do “encontro inesperado do diverso”, possibilita a abertura para uma ordem não antecipável, não previsível, portanto. A escrita llansoliana, deste ponto de vista, cumpre-se nesse apontar rilkeano para o “Aberto”, de que o poeta fala, na sua oitava elegia, nas Elegias de Duíno.

A metáfora, ao invés do movimento de abertura, aproxima aquilo que há de comum, enquanto a imagem rompe com o comum, o “esperado”, instaurando o efeito, tanto da estranheza, quanto da ilegibilidade dos textos llansolianos. O afastamento do procedimento metafórico é visível em Maria Gabriela Llansol, no texto Um Beijo dado mais Tarde: “Mas a metáfora é uma pequena fuga ao sentido, uma pequena chama que só permite a compreensão passageira do que está a ler.” (v. p. 24). Como o nota com acutilância Silvina Rodrigues Lopes15, equacionar o campo da metáfora e circunscrever-lhe o método, são actos que não podem fazer-se senão no campo da dualidade e, para compreender a escrita llansoliana, “temos de sair da dualidade. Temos de admitir que participamos de vários mundos que funcionam diferentemente”. Mundos, acrescente-se, “para os quais a verdade é diferente”, pois o campo de sentido de cada um desses fragmentos circunscreve, em torno de si, um campo de fulgor ou imagético, com as suas próprias regras e sentido, funcionando autonomamente. De outro modo dizendo, a metáfora possui um poder de estabelecer analogias, permitindo movimentos de deslocação e de derivação das forças significativas, mas é incapaz de quebrar as “linhas de significação dominantes, nunca ela pode conduzir ao outro.”16 Embora no caso da metáfora se possa claramente identificar a rejeição do seu procedimento, por um desvio, no caso do símbolo, é preciso confirmar a sua operacionalidade na escrita llansoliana, delimitando-lhe, no entanto, a sua função. Todo o texto de Maria Gabriela Llansol é inequivocamente simbólico e essa carga simbólica, uma vez que se renuncia às categorias de personagem, de narrativa, liga-se essencialmente ao Lugar e à Figura.

 

Da Narratividade à Textualidade

Uma figura aparece frequentemente nos textos de Maria Gabriela Llansol e essa figura é também uma imagem que reenvia para a questão do uso da linguagem e da sua instrumentalização. Ela é a da rapariga que temia a impostura da língua. Essa figura suscita importantes reflexões e prende-se com o discurso lapidar da autora: “____escrevo,/para que o romance não morra./Escrevo, para que continue,/ mesmo se, para tal, tenha de mudar de forma (...)”17

Chamo, desde logo, a atenção para o facto de a autora defender veementemente a necessidade do romance, como um jogo em que o dom poético assegure a liberdade de consciência, pois foi o romance que “veiculou o sonho da fraternidade universal dos homens.”18 Ora, a imagem ou a figura da rapariga que temia a impostura da língua, reenvia para uma exigência de ordem, tanto ontológica, como estética e ética, supondo a existência de uma linguagem capaz de fazer nascer o dom poético. O imperativo ético que aqui se encontra subjacente concentra-se na ideia de “dar a cada objecto o lugar que lhe pertence” e que é “uma regra de justiça imanente” (v. Um Beijo dado mais tarde, p. 18). Esta linguagem opera uma deslocação dos dispositivos discursivos, exigindo uma linguagem que ultrapasse todos os condicionalismos que a “prendem” à narratividade, isto é, já não se instala num plano discursivo, mas procura dizer o inominável. E essa linguagem, fruto de uma deslocação da narratividade para a textualidade, é o “desmascaramento” da impostura da língua, colocando-se num plano de transcendência, operando uma mutação de estilo, frásica e vocabular, “abrindo caminho à emigração das imagens, /dos afectos,/e das zonas vibrantes da linguagem.”19 Tal linguagem está “para lá do terceiro excluído e do princípio da não-contradição” (v. idem).

Como o observa Rui Magalhães (v. O Dom do Método), “o pensamento de Llansol pode ser considerado, essencialmente como realismo”. E disso dá conta a própria autora, ao afirmar : “Sem provocação, diria: a textualidade é realista, se se souber que neste mundo, há um mundo de mundos, e que ela [textualidade] os pode convocar, para todos os tempos, para lá do terceiro excluído e do princípio de não-contradição” (v. Lisboaleipzig 1, p. 121). Só a textualidade permite o acesso ao dom poético e assegura a liberdade de consciência. O dom poético é “a imaginação criadora própria do corpo de afectos”, deslocando o espaço da linguagem para uma geografia de “criação improvável e imprevisível” cujo centro irradiante é a imaginação criadora que assume a forma do fulgor, intensificando a linguagem, procurando nela “zonas vibrantes” (v. p. 121). Essa zona de fulgurância da linguagem, designada por textualidade, é a escrita.

 

A Cena Fulgor: Imagem e Figura



Já nos referimos à cena fulgor, mas ainda não foi esclarecido em que consiste a sua natureza e como procede a autora - qual o seu método - para chegar à sua construção. Naturalmente que a cena fulgor é o resultado da desagregação, levada a cabo pela autora, do contínuo narrativo, bem como da suspensão dos elos habituais a que fomos habituados na leitura e interpretação da linguagem. É a própria M.G.L. quem escreve (v. Lisboaleipzig, p. 140): “Os meus textos (...)são tecnicamente construídos sobre o que chamei cenas fulgor porque o que me aparece como real é feito de cenas, e porque surgem com um carácter irrecusável de evidência.” E, noutro lugar, a cena fulgor aparece deste modo: “O real é um nó que se desata no ponto rigoroso em que uma cena fulgor se enrola e se levanta” (v. p. 128).

Dois conceitos saltam imediatamente à vista: real e evidência, aparecendo conjuntamente, para dar conta da cena fulgor. Ou seja, de outro modo dizendo, uma cena fulgor irrompe ou emerge como o “real”, em toda a sua evidência irrecusável. Poderíamos acrescentar, como uma “presença que se faz imagem”, com o perigo que isso comporta. Há o perigo da cegueira do olhar, diante dessa evidência (v. p.140), e esta intensidade convoca imediatamente uma manifestação da realidade como epifania ou manifestação de uma transcendência. A possibilidade dessa manifestação verifica-se sempre na proximidade daquilo a que a autora chama o “ponto voraz, e que é simultaneamente a fonte de luz intensa que ilumina a cena fulgor, e o lugar onde ela se anula” (v. p. 140). O perigo está no modo como a cena se aproxima da luz jorrante ou do ponto voraz. Encontramo-nos aqui diante da presença latente de toda uma literatura mística (que perpassa os textos da autora) que se aproxima de uma concepção muito peculiar do estatuto e função da imagem/apresentação20. E, justamente por isso, como o defende o autor (v. p.145), “A escrita de Maria Gabriela Llansol é, desde o início, uma escrita surpreendente, que desassossega transmitindo a ideia de não nos deixar cair na tentação do óbvio ou do uso. O gosto pela incerteza tem como consequência a possibilidade de ver as cenas em fulgor, e essa é uma forma de compreensão. É o incerto que é luminoso.” Desta forma, a cena fulgor emerge como uma composição (apresentação) de elementos, que circunscreve, a partir de si, um lugar. Mas este deve ser entendido, não no seu sentido habitual, um local ou uma zona meramente geográfica, mas como uma “ruptura” ou instauração de uma fractura no espaço. A lógica deste procedimento determina, justamente, que, à luz da concepção das cenas fulgor, todo O Livro das Comunidades se divida em lugares ou apresentação dessa evidência imagética. Nesses lugares, que podem ser caracterizados como “encontros inesperados do diverso”, não há distinção entre animais, plantas e seres humanos. Llansol admite a existência de uma comunicação universal entre todos os seres, humanos e não humanos e a possibilidade do reconhecimento dessa comunicação, em que “tudo comunica por sinais, por regularidades afectivas, por encanto amoroso, por perigo de anulação.” (v. Lisboaleipzig, p. 142). A possibilidade do reconhecimento dessa comunicação universal não pode, com efeito, fazer-se pela via discursiva, mas pela inflexão (operada pela cena fulgor) para uma linguagem pré-discursiva, regulada pelo reconhecimento, pela correspondência entre os seres, isso a que a autora chama uma “relação preferencial”. Poderíamos aqui relembrar Agamben ou Walter Benjamin, sobre uma linguagem nomeadora e adâmica, como, ainda, algumas concepções renascentistas, que defendiam uma relação espontânea (Ficino ou Leão Hebreo), mas parece que é, ainda, de ter cuidado ao estabelecer tais comparações. A autora fala de uma relação que é longamente “preparada” pelo encontro inesperado do diverso. O que leva a pensar na técnica de fragmentação e da “reconstrução” da História, pois a cena fulgor subtrai à História as suas personagens, para as inserir numa outra ordem de significação, transmudando-as em Figuras.

A figura é indissociável da cena fulgor. Trata-se de um elemento da cena fulgor que se opõe, em tudo, tanto ontologica como semioticamente, à personagem da qual ela nasce. Se a cena fulgor é o logos do lugar; da paisagem ou da relação, criando um “redobramento do espaço e do tempo” (v. p. 128), as figuras “nada mais são do que personagens históricas ou míticas; plantas ou animais; um dispositivo de companheiros que tomam parte na mesma problemática” (v. p. 129). Mas aquilo que elas possuem em comum “é a técnica visual da sobreimpressão, a sua arte de ver o mundo sobreimpresso, impelindo a deslizar umas sobre as outras paisagens afastadas que o poder nunca alcançaria submeter ao seu domínio.” (idem) E é aqui que a questão do tempo aparece como axial para compreender a estrutura da textualidade llansoliana. As figuras deslizam, por assim dizer, de um tempo cronológico e sucessivo, histórico, para uma uma dimensão a-histórica, suspendendo o curso do espaço e do tempo físicos, numa transversalidade de vários mundos, lugares ou ordens de realidade. São, como a autora o diz, em Onde vais Drama-Poesia?: “É minha convicção que as figuras (que, no meu texto, são muitas vezes pessoas históricas do passado e, enquanto tais, culturalmente identificáveis) vêm do futuro” (v. p.201). Arrancadas à sua dimensão de personagens e àquilo que, na história é efeito de poder, fragmentadas e descentradas, desviadas de uma determinada ordem de significação, conduzem a uma nova significação, que já não é da ordem do representável, mas sim da apresentação ou do desvelamento de uma nova realidade: “Porque todos são rebeldes a querer dobrar o tempo histórico dos homens, com o desejo intenso que eles se encaminhem para uma nova terra, bafejada por um céu novo.” (v. p. 129).

É difícil não ler aqui o desejo de uma “ordem que há-de vir”, uma promessa que aparece sob os termos de “uma nova terra, bafejada por um céu aberto” ou, ainda, em O Senhor de Herbais, na sibilina frase: “o que o texto tece advirá ao homem como destino” (v.p. 210). Manuel Gusmão21 parte da análise dessa frase e do confronto com o texto benjaminiano22, que fala da “pequena parcela messiânica” que aqueles que vieram antes de nós têm para nos passar, para nos mostrar como a escrita llansoliana nos convoca a reaprender a linguagem. Como o autor o afirma, “Um tal enunciado pode ser considerado como um princípio ou um “programa” poético e estético, uma «lei» imanente a esta textualidade.” É o texto quem tece, através das múltiplas vozes que o atravessam e que ele contém. Mas estamos longe, aqui, de um texto à maneira de um tecido, no seu sentido medieval, como uma teia acabada, ou uma tecelagem definitivamente terminada, um ergon. Pelo contrário, esse texto vai-se tecendo de múltiplos modos, todos eles moventes, com a sua energia própria, como Manuel Gusmão o diz: como energueia. A atestar essa ideia da pluralidade movente dos textos, o autor cita o “palimpsesto transparente”, como aparece no Livro das Comunidades, p. 57: “Leio um texto e vou-o cobrindo com o meu próprio texto que esboço no alto da página mas que projecta a sua sombra escrita sobre toda a mancha do livro. Esta sobreposição textual tem por fonte os olhos, parece-me que um fino pano flutua entre os olhos e a mão e acaba cobrindo como uma rede, uma nuvem, o já escrito. O meu texto é completamente transparente e percebo a topografia das primeiras palavras. Concentro-me em São João da Cruz quando o texto fala em Friedrich N.”

Várias vozes, sobrepondo-se, indissociabilidade entre escrita e leitura, a “construção” de um sujeito que aparece como um “processo” e não uma consciência, definem a metáfora têxtil supracitada e são aspectos que nos remetem, de imediato, para esse “advir” do texto que, além da construção da frase e do próprio texto, gera uma experiência da linguagem enquanto escrita e leitura indissociáveis23, assim como da vibrante relação entre “forma de vida” e experiência do mundo. Este “advir” - e essa parece ser condição essencial do texto llansoliano - não pode confundir-se com o acontecer, que se define pela marca da sua singularidade e pontualidade. Ele reveste-se de uma condição muito peculiar, dizendo de uma vinda ou de uma chegada, lembrando o texto de Gershom Scholem24, em que “cada segundo era a porta estreita pela qual podia entrar o Messias.”. Trata-se, por isso, de uma condição utópica (ou, talvez, atópica), esta que se encontra suposta no texto llansoliano. Advir, como se concebe aqui, supõe a convocação desse “reaprender” da escrita/leitura que se encontra patente na ideia de legente. Advir é o “caminhar” do texto como destinação do homem e como doação de sentido mútua.

Existe, assim, como vimos, um sopro claramente messiânico que atravessa os textos de Maria Gabriela Llansol. Uma ordem, criada pela textualidade e pela técnica da sobreimpressão de um determinado modo de ver dessas figuras, que recusa claramente a continuidade da história e do progresso, que nega obviamente a impostura da língua.25 Não vemos nessa imagem da rapariga que temia a impostura da língua senão o tenaz desejo da autora de fracturar a linguagem e a representação, de aceder à “imagem viva”, para alcançar a comunicação com o silêncio26 e as suas múltiplas formas: “_________o encontro inesperado do diverso/ é assistir o belo a comunicar com o silêncio;/ a fraccionar a imagem nas suas diversas formas; /ajudá-las a levantar o véu para que se mostrem mutuamente na beleza própria(...)”. Mas o que é a beleza das coisas? Será essa beleza da ordem do estético? Estas formulações adquirem sentido à luz da “desconstrução” da narratividade e da representação, operadas pela escrita de Maria Gabriela Llansol. Em O Senhor de Herbais, a autora afirma: “A beleza da cor e das formas é a santidade das coisas” (v. p. 48). Longe de ser uma caracterização estética, a beleza é de um outro plano, ontológico, da ordem da revelação, como o refere Giorgio Agamben. Desse ponto de vista, a imagem é o próprio ritmo que permite apresentar o fulgor da beleza e das formas, pois é ela que traz, pela luz reveladora e pelo silêncio que nela se inscreve, o estilhaço da beleza das cores e das formas, a sua santidade, podemos agora acrescentar.

Como o nota Rui Magalhães27, “o belo pode ser a santidade apenas na medida em que não depende de nenhuma estética, mas de uma energia criadora”, uma energia movente, que cria a partir de si e se auto-apresenta, manifestando-se na multiplicidade das suas formas. Como o autor o afirma, “O belo é o que permite criar(...)criando ele mesmo.” Não se está, aqui, a falar do belo como ideal ou categoria estética, mas como materialidade pura, corporeidade. O dom poético consiste em dizer, mais do que a beleza das coisas, a sua santidade, aquilo que, em última instância, é o menos evidente, mas o que o que se oferece ao olhar, no seu desvelamento ou apresentação, essa outra vida, silenciosa e secreta. Certeiramente o entende Silvina Rodrigues Lopes, ao defender a ideia de que todo o texto llansoliano procura criar as condições de visualização do imperceptível. Esse imperceptível é, obviamente, a transcendência e, por isso, se compreende a importância extrema do ver, sublinhado pela autora (v. Exercícios de Aproximação, p. 213). O texto llansoliano situa-se nesse vaivém constante entre imanência/transcendência. O acto de ver/escrever procura alcançar esse imperceptível, tentando transformá-la em imanência, pela suspensão do contínuo e instauração do lugar como epifania ou apresentação da transcendência. É pela subversão dos códigos de espaço e tempo (convenientes à narrativa), que a linguagem retira, em Maria Gabriela Llansol, a sua força epifânica.

 

Tempo e escrita; Tempo e espaço

Questões como estas são pertinentes: afinal de que tempo estamos a falar? E como se relaciona o Tempo com a escrita? Questão ainda mais complexa: é possível estabelecer uma relação directa do tempo com a imagem?



Em “O Devir como simultaneidade” (v. Falcão no Punho, p. 132), Llansol afirma: “Como ser civil conheço o presente, o passado, e o futuro. Mas como escritor tenho um olhar que toca sobretudo o espaço, livre de tempo. Nele não há poder, que é sempre o poder de escolher e de chegar à morte. Aqui, parece esboçar-se uma distinção entre espaço e tempo, estabelecendo uma diferenciação entre o primeiro, que é do domínio da escrita e do corpo, e o tempo, que se relaciona com a história e o poder. Esta diferenciação é apenas aparente, quando se retoma a escrita llansoliana à luz da concepção de Lugar, como ela aparece no Livro das comunidades. O que, desde logo, esta aparente diferenciação nos leva a pensar é na sobreposição dos tempos, em simultaneidade ou numa multiplicidade de tempos. Silvina Rodrigues Lopes28 defende que o «“o devir como simultaneidade” corresponde a um espaço trans-histórico de grande complexidade que compreende o “real” e o “irreal” indescerníveis, como na proposta de Bergson». Tal significa que a imagem assume, na escrita llansoliana, a apresentação da cadeia de conexões entre os actuais e a ruptura resultante da actualização do virtual. A escrita, mediante a imagem, faz-se “abertura de possíveis”, assumindo o inesperado e o descontínuo. A desintegração dos tempos/do tempo é operada, assim, pela escrita, e a cena fulgor resulta desse enfraquecimento do contínuo, até que os seus elementos, disseminados, perfaçam a nova ordem espacio/temporal. O tempo que a escrita abandona é o tempo comum, tal como a luz comum. O fulgor sobrevém do “tempo-duração, que a escrita concebe e fomenta”29, por uma relação de descontinuidade, intensificando o fragmento, que é visto como um todo. Veja-se o que Llansol escreve no Livro das comunidades e que pode ser visto como uma chave desse procedimento de ruptura: “se eu me concentrar num fragmento do tempo/ não é hoje, nem amanhã/ mas se eu me concentrar num fragmento do tempo,/agora,/esse fragmento revelará todo o tempo.” (v. p.67). A imagem descobre/revela o fragmento como um todo e, por isso, podemos afirmar que cada cena fulgor é construída como um fragmento do tempo, que se apresenta como totalidade simultânea. Como José Augusto Mourão o aponta30, na cena fulgor ou na imagem que concentra o redobramento do tempo e do espaço, “não se trata de deslocar o sentido, mas de construir uma iconografia dos pontos luminosos, dos momentos de júbilo”. Dessa iconografia nasce a imagem, que podemos considerar trans-histórica, emanando da imaginação, enquanto poder de construir fulgurantes intuições que extravasam o contexto da representação, assinalando e intensificando a mais vívida passagem entre a liberdade da consciência e o dom poético.

Por outro lado e em relação à questão do tempo, é necessário frisar a relação da escrita de Maria Gabriela Llansol com a teoria do “eterno retorno”. Ela verifica-se frequentemente na sua obra, mas exprime-se com veemência no fragmento anterior, como na passagem nietzschiana, em que a autora diz: “Semivivos que me cercais, e me encerrais numa solidão subterrânea, no mutismo e no frio do túmulo; vós que me condenais a levar uma vida que mais valia chamar morte, voltareis a ver-me, um dia. Depois de morto terei a minha vingança: sabemos voltar, nós, os prematuros. É um dos nossos segredos. Voltarei vivo, mais vivo do que nunca.” (Livro das Comunidades, p. 59). O modo como se rompe a historicidade, na obra llansoliana, deve bastante à teoria do eterno retorno. Tanto do ponto de vista heideggeriano como deleuziano, o eterno retorno é, fundamentalmente, uma ruptura da continuidade temporal que define o tempo na sua sucessão passado-presente-futuro e a instauração do tempo como presente ou, para usar a expressão de Walter Benjamin, de “instante dialéctico”31, o qual abre um campo imagético, a que chamamos, no caso llansoliano, a cena fulgor ou o Lugar, onde é abolido o tempo como sucessão. Como nos chamou a atenção Manuel Gusmão, o confronto com Benjamin alarga-se à concepção de redenção da história e pode-se, aqui, aludir, mesmo, à imagem do anjo da história32, enquanto paralelismo de intenção. Abolir o tempo como sucessão corresponde, também, à redenção dessas figuras/personagens “vencidas” da história. Não assistimos à contínua acumulação de ruínas e de morte, diante da impotência alucinada do anjo, mas estamos diante de um gesto de “reparação”, como lhe chama o autor, citando a passagem: “O que sabíamos é que a história vive de quantos morrem. É um texto enlouquecido que se alimenta do sangue ambicioso e prazenteiro dos vivos. Por isso, os tirámos do tempo”33. Este gesto de deflagração do continuum do tempo, é também o que, benjaminianamente, poderíamos designar por redenção, mediante a fulgurização da escrita. Todavia, essa “redenção” processa-se por uma série de operações de sobreposição dos tempos, cuja expressão mais adequada encontramos no “devir como simultaneidade”. Essa expressão, “o devir como simultaneidade”, além do reenvio para uma concepção cíclica do tempo e de um apelo à sobreposição temporal (passado, presente e futuro) configura, ainda, a sugestão de “uma materialização de formas como única manifestação do devir”. Como defende Silvina Rodrigues Lopes34, trata-se de uma “Dupla afirmação de matéria e tempo”, em que a palavra condensa o que de essencial se passa nas metamorfoses do humano. Isto é, as palavras assumem uma função nomeadora e poética, suspendendo também a continuidade do espaço, definindo uma geografia peculiar, um “antes da narrativa”, se assim é possível falar-se. Nesta definição apresenta-se uma recusa da linguagem enquanto visão instrumental da palavra. A palavra de que aqui se fala é “anterior” às relações de poder e de instrumentalização, enquanto forma de comunicação. É da ordem da nomeação, fazendo deflagrar o dizer poético que, em tudo, se opõe à ordem da narratividade. O “dom poético”e a fulgurância da linguagem, em Maria Gabriela Llansol, nasce, não apenas dessa suspensão dos elos de sucessão passado-presente-futuro, que funda uma imagem dialéctica capaz de apresentar a sobreposição dos tempos na durabilidade do “instante-imagem”, como igualmente é fruto da suspensão da linguagem, enquanto ela se coloca sob a dimensão das relações de poder. A cena fulgor contém em si a concentração da imagem, liberta dos condicionalismos do tempo e do espaço físicos, da linguagem enquanto forma de poder. A partir deste combate entre a narratividade e a palavra, instaura-se também o poder fragmentário e errante do “dizer poético” em Llansol. Contra a identidade e continuidade do género da narrativa, pela desconstrução do contínuo espaço/tempo físicos, Maria Gabriela Llansol caminha no sentido de uma desconstrução do “literário” e ela segue o espaço-tempo da errância, que é, justamente, o da palavra continuamente sujeita ao devir35 e à metamorfose. A mobilidade plástica das suas imagens, fragmentárias, a anulação das fronteiras e dos géneros e a possibilidade de estabelecer “passagens” - que lhe advém da errância - dá a ver a hipótese de uma infinitude de pontos de vista, pois a “imagem” é, também, “aberta” à construção que o legente opera sobre ela.

Tanto no que se refere à interpretação, como à transmissão e à passagem - que se efectua, constantemente entre as figuras, os lugares, os tempos, as palavras- , o pensamento llansoliano da errância combate, com todas as suas forças, o “fechamento” da totalidade, isto é, da realidade que se encerra sobre si mesma e, assim, se deixa petrificar. Extravasando os dois grandes modelos nos quais pode ser identificado o modo como o narrativo se concretiza - o mito e a história - Maria Gabriela Llansol ultrapassa as dicotomias estéticas e éticas, estabelecendo entre essas dicotomias passagens que nos fazem pensar no modo como Nietszche havia preconizado a sua ética. É antes nesse contacto com o vivo (e da aceitação da vida) e o orgânico que se concentra todo o poder do “dom poético”, confinando a palavra com a vida, anuladas (como já se referiu anteriormente) todas as distinções entre o mundo humano, animal e vegetal.

É evidente, em Maria Gabriela Llansol, uma inseparabilidade entre significação e ética. Mais uma vez se denota o desejo de mover a escrita segundo o princípio da verdade. Não existe um domínio ético e exterior à escrita, mas ela é própria energia movente, a torrente que a move. Define-se, assim, pela passagem, a lei (frágil) que traça, por um movimento de imanência, a possibilidade de fulgurização da escrita, numa procura de reunir o que o pensamento discursivo separa. Poderíamos encontrar no modelo de Bataille de experiência interior esta busca permanente de Llansol, em que a escrita transporta consigo o poder do vivo e é levada ao mais alto grau de experiência do desassossego. Quando falo aqui de desassossego, refiro-me à experiência do “inacabamento” e da indefinição do humano, referida por Manuel Gusmão36. Falar de definição do humano, de um modo próximo ao Ecce Homo, seria tomar isso como um dado, um ergon, o que se coloca nas antípodas do pensamento e da escrita llansoliana. É sempre no quadro da plenitude do movimento dialéctico das categorias e das dicotomias que se expande e constrói o texto llansoliano. Do que nos é legítimo falar é de “abertura”, sempre que nos referimos ao universo da sua escrita. Uma abertura que é constituída, a um tempo, pela multiplicidade das figuras, dos Lugares, das metamorfoses e pela pluralidade dos mundos que, na transparência do “palimpsesto”, se encontra subjacente.

A vibração deste universo é cósmica, definindo o que a ressonância musical pode comportar em si de universalidade, mas não deve confundir-se com totalidade ou acabamento. Universalidade no sentido de compossibilidade de mundos, que podem surgir e existir simultânea e alternativamente. Em Llansol, já não é possível determinar um “exterior” à ética ou à comunicação, não é possível diferenciar o que há de ontológico ou de estético, na sua visão, nem distinguir interior de exterior, pois tudo se comunica, na transversalidade dos mundos, nessa aprendizagem ou convocação da “fala”, intensificado pelo poder onírico, tal como, também em Hermann Broch37, o símbolo e o “dizer poético” “nasce da confusão das águas da vida e do sonho.”




.
1   ...   21   22   23   24   25   26   27   28   29


Verilənlər bazası müəlliflik hüququ ilə müdafiə olunur ©atelim.com 2016
rəhbərliyinə müraciət