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Literatura portugues


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[26] III. O Livro de Cesário Verde


O Livro de Cesário Verde foi editado por Silva Pinto, o ami­go dedicado, meses após a morte do poeta, em Abril de 1887. Esta edição princeps, bem impressa e em papel de linho, com uma tiragem limitada a duzentos exemplares e destinada apenas a ofertas, era constituída por vinte e dois poemas e apresentava-se dividida em duas secções, intituladas Crise Romanesca e Naturais. Incluía ainda uma Dedicatória e um Posfácio do editor, ambos dirigidos a Jorge Verde, o irmão mais novo de Cesário e único sobrevivente. Só em 1901, com a segunda edição, «reimpressão textual da pri­meira edição» (um verso de O Sentimento dum Ocidental apre­sentava, contudo, uma variante), O Livro de Cesário Verde entrava no circuito comercial e, a partir de então, foi várias vezes reeditado.

Embora nas várias reedições d’O Livro se tenha respeitado sempre a estrutura inicialmente estabelecida, desconhece-se ainda hoje exacta­mente se Silva Pinto, ao editar a obra, obedeceu a indicações expressamente deixadas por Cesário nesse sentido, pois o poeta poderia, entretan­to, ter ido organizando para publicação o Livro com que sonhava e que aparecera anunciado em 1874; ou, se, pelo contrário, a selecção de poesias e a sua distribuição por secções resulta inteiramente da interpre­tação crítica de Silva Pinto. Em defesa da primara hipótese podem [27] citar-se as afirmações do editor, em 25 de Agosto de 1886, num jornal do Porto: «Devo a Jorge Verde — o querido irmão do poeta —, a oferta de todos os manuscritos. Entre estes está o plano do Livro; — será fielmente executado, nas variantes e nas supressões, em tudo».

Se para alguns estudiosos da obra de Cesário Verde, entre os quais o Luís Amaro de Oliveira, estas palavras de Silva Pinto constituem garantia da existência de um livro organizado pelo autor, ou, pelo menos, de um espólio com a indicação das poesias seleccionadas para publicação, outros, porém, como o Prof. Joel Serrão, baseando-se em afirmações e documentos aparentemente contraditórios, continuam a considerar Silva Pinto não só o editor, mas também o organizador d’O Livro de Cesário Verde, cuja unidade estrutural reflectiria unicamente o critério do seu primeiro editor.

Entretanto, compreendeu-se que o conhecimento das poesias publi­cada, em jornais e revistas, e excluídas d’O Livro de Cesário Verde, contribuiria vantajosamente, como é óbvio, para o estudo da evolução poética de Cesário; por essa razão, acrescentaram-se ao Livro as «poesias dispersas», embora respeitando integralmente a estrutura da obra editada por Silva Pinto, incluindo a Dedicatória e o Posfácio. A ordenação cronológica destas composições e das que foram incluídas n’O Livro, como já foi realizada, nem sempre se baseia, porém, como seria desejável, na data da elaboração dos poemas, visto que um incêndio ocorrido na quinta de Linda-a-Pastora destruiu, segundo se pensa, todos os manuscritos de Cesário e também a sua biblioteca.

Assim, a análise do primeiro «folhetim de versos» de Cesário, constituído por três composições poéticas — dois sonetos, a Forca e Num tripúdio de Corte rigoroso, e uma poesia em redondilha maior e em quadras, Ó áridas Messalinas —, leva-nos a «concluir que Cesário, Verde, ao estrear-se como poeta, embora já revele nítida influência de João Penha na escolha do soneto de final inesperado e desconcertante, tão ao gosto do poeta d’A Folha, ao cultivar a redondilha e a quadra denuncia ainda a sugestão do metro e da estrofe tradicionais, como, aliás, é natural num jovem autodidacta de dezoito anos.

No entanto, se o cinismo e a ironia que caracterizam a chave de ouro dos sonetos excluídos d’O Livro de Cesário Verde (Lágrimas, Proh Pudor, Manias, Heroísmos) se mantém ou até se acentuam, durante esta primeira fase poética, no final grotesco e chocante de cada um dos poemas, igualmente banidos d’O Livro (Impossível, Eu e Ela, [28] Lúbri|ca, Cinismos, Arrojos), a redondilha só reaparecerá posteriormente, em Sardenta, publicada em 1878, e na última poesia de Cesário, aquela que deixou inacabada, Provincianas. Portanto, o conhecimento das «poesias dispersas» não só testemunha a preferência de Cesário pelo verso decassílabo, antes que cultive o alexandrino, o qual se distingue pelo rigor geométrico e pela preocupação de sobriedade, como o próprio poeta reconhece («E apuro-me em lançar originais e exactos, / Os meus alexandrinos ... »), mas também evidencia a predilecção pela quadra, estrofe que se adapta à notação impressionista, esquemática, e ao ritmo digressivo dos seus poemas.

Mas, nas várias tentativas para encontrar a sua individualidade poética, Cesário tema, nesta primeira fase, um género de poesia que posteriormente abandonará por completo, e que anuncio já os processos simbolistas: a composição intitulada Responso, incluída n’O Livro de Cesário Verde, na secção Crise Romanesca. Contudo, o visualismo expresso neste poema manter-se-á na obra de Cesário, mas não como fuga à realidade. Pelo contrário, o autêntico Cesário, aquele que todos hoje recordamos, não fantasia, evoca raramente e, quando imagina, recria a realidade, transfigurando-a para a tomar mais real; por outras palavras, a transfiguração da realidade não é um pretexto para fugir ao concreto, mas o único processo de captar a essência da própria represen­tação do real. Por isso, Cesário, o poeta-pintor («pinto quadros por letras, por sinais»), aquele que foi simultaneamente considerado um realista e um pamasiano, é também reivindicado pelos Surrealistas como seu antecessor, como já se referiu, pois foi o primeiro a tentar deliberadamente traduzir nos seus versos «certo espírito secreto», corri­gindo, assim, pela visão transfiguradora, a objectividade de naturalis­ta, e reconstituindo, por meio de imagens e de analogias audaciosas, que dão um sentido profundo ao mundo concreto, uma super-realidade. Por isso, as ruas da Lisboa que ele cantou aparecem já iluminadas do Sol pintado por Van Gogh, mestre de impressionistas: «E o sol estende, pelas frontarias, / Seus raios de laranja destilada.»

E a evolução poética de Cesário Verde, obtida por meio da assimila­ção original da lição de Baudelaire-Fradique Mendes, processa-se efectivamente no sentido de procurar a («perfeição do fabricado» e simultaneamente transmitir o «ritmo do vivo e do real», através dos «instantâneos», colhidos em deambulação pelas ruas de Lisboa, numa primeira e original «cinematização» da vida citadina, cuja alma [29] pre|tende captar, numa ânsia desesperada de sobrevivência, vencendo o Tempo e a Morte: «Se eu não morresse nunca! E eternamente / Buscasse e conseguisse a perfeição das coisas!»

Mas Cesário não foi só o poeta da cidade; atraído pela vida campestre (campo / cidade constituem um binómio fundamental na sua obra) e conhecendo-a bem devido à sua experiência de lavrador, Cesário, através do prosaísmo lírico que caracteriza esta última fase poética, renovou o conceito de Bucolismo, transmitindo-nos uma visão antiliterária da Natureza: «Ah! O campo não é um passatempo / Com bucolismo, rouxinóis, luar.» E, antecipando-se ao Saudosismo de António Nobre, evoca com ternura o ambiente familiar e as tarefas quotidiano («Fecho os olhos cansados, e descrevo / Das telas da memória retocadas» [...] «Então recordo a paz familiar, / Todo um painel pacífico de enganos!») e exalta a vida simples das aldeias portuguesas («Uma aldeia daqui é mais feliz, / Londres sombria, em que cintila a corte! ...»), opondo aos produtos artificiais e corruptos da civilização e dos grandes centros urbanos, o que é natural, espontâneo, rude: «Anglo-saxónios, tendes que invejar! / Ricos suicidas, com parai comparai convosco! / Aqui, tudo espontâneo, alegre, tosco, / Facílimo, evidente, salutar!».

Assim, Cesário, vulgarmente apenas conhecido como o poeta de Lisboa, herdeiro do talento descritivo de Tolentino, regressa à Natureza, anunciando A Cidade e as Serras, de Eça de Queirós, e Os Simples, de Guerra Junqueiro.




Texto 123

REIS, Carlos. Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea. Lisboa: Universidade Aberta, 1990. p. 130-137.

[130] 5.6 O Primo Basílio: configuração da personagem


Vejamos então quem é esta mulher — ou, noutros termos, como se representam ficcionalmente e sob a égide do método naturalista, os vícios da «burguesinha da Baixa». Trata-se, antes de mais, de uma personagem caracterizada nos termos de uma omnisciência narrativa que permite ao narrador perscrutar os pontos mais delicados da formação, psicologia e evolução social e cultural, enquanto elementos relevantes para explicarem o seu comportamento de pessoa adulta. Apresentada em função da sua educação e hábitos culturais Luiza surge como consumidora regular e atenta de Literatura romântica (novelas e romances), oscilando entre o culto de um imaginário de coloração medieval e um sentimentalismo de encenação cosmopolita. Se na juventude fora Walter Scott, a Escócia e os seus castelos carregados de mistério, quando adulta, Luíza opta por outras leituras:
Agora era o moderno que a cativava: Paris, as suas mobílias, as suas sentimentalidades. Ria-se dos trovadores, exaltara-se por Mr. de Camors; e os homens ideais apareciam-lhe de gravata branca, nas umbreiras das salas de baile, com um magnetismo no olhar, devorados de paixão, tendo palavras sublimes. Havia uma semana que se interessava por Margarida Gautier: o seu amor infeliz dava-lhe uma melancolia enevoada: via-a alta e magra, com o seu longo xale de caxemira, os olhos negros cheios da avidez da paixão e dos ardores da tísica; nos nomes mesmo do livro — Júlia Duprat, Armando, Prudência, achava o sabor poético de uma vida intensamente amorosa; e todo aquele destino se agitava, como numa música triste, com ceias, noites deliran­tes, aflições de dinheiro, e dias de melancolia no fundo de um coupé, quando nas avenidas do Bois, sob um céu pardo e elegante, silenciosamente caem as primeiras neves.131
Tendo «uma assinatura, na Baixa, ao mês» (p. 18), Luiza revela-se-nos a personagem que depende da leitura para preencher os seus ócios; para mais, essa leitura contempla sobretudo, como se vê, uma novelística de ambientes cosmopolitas, desencadeando na personagem o desejo de tornar palpável esse mundo que a fascina.
Para mais, na existência quotidiana de Luiza acumulam-se os motivos de tédio, apenas episodicamente cortado por breves acontecimentos que vêm reacender uma imaginação romanesca, já de si com tendência para o exacer­bamento e para a morbidez; não esqueçamos que esta é a personagem que, na juventude, encontrava na Sintra romântica cenários que deleitavam a sua sentimentalidade. O narrador lembra: «Logo ao entrar os arvoredos escuros e murmurosos do Ramalhão lhe davam uma melancolia feliz»! (p. 20)
Casada com um homem prático e pacato (Jorge, a quem os condiscípulos chamavam «proseirão» e «burguês»), Luiza resume agora a sua existência praticamente ao pequeno mundo da sua casa, dos seus serões, da sua rua atravessada por pequenas curiosidades, do Passeio Público e pouco mais. Ora as figuras que povoam esses cenários são tudo menos a imagem de requinte e [131] de luxo que povoa o imaginário de Luiza a partir da leitura dos romances de Dumas Filho e Paul Féval; figuras que são o conselheiro Acácio e o seu monótono formalismo, Dona Felicidade e a sua mescla de beatice e frustração sentimental, Julião Zuzarte e o seu azedume, Ernestinho Ledesma e a sua excitação de dramaturgo em vésperas de estreia. Uma estreia que, por sinal, traz a casa de Luiza, num dos serões em que Ernestinho resume a peça, o tema do adultério, fulcro de uma intriga com todos os ingredientes cultivados pelo dramalhão romântico.
Uma outra personagem, Leopoldina, merece, entretanto, uma referência especial, pela forma como age sobre Luiza. Porque, para Luiza, Leopoldina encerra os mistérios de uma vida marcada por sucessivas aventuras (e corres­pondentes desencantos), mas comporta um excesso que também não cessa de a fascinar:
Às vezes na sua consciência achava Leopoldina «indecente»; mas tinha um fraco por ela: sempre admirara muito a beleza do seu corpo, que quase lhe inspirava uma atracção física. Depois desculpava-a: era tão infeliz com o marido! Ia atrás da paixão, coitada! E aquela grande palavra, faiscante e misteriosa, donde a felicidade escorre como a água de uma taça muito cheia, satisfazia Luiza como uma justificação suficiente: quase lhe parecia uma heroína; e olhava-a com espanto como se consideram os que chegam de alguma viagem maravilhosa e difícil, de episódios excitantes. Só não gostava de certo cheiro de tabaco misturado de feno que trazia sempre nos vestidos. Leopoldina fumava. (p. 26)
O facto de Leopoldina fumar aparece como uma dessas notas de transgressão que a «burguesinha da Baixa» representada por Luiza não consegue assimilar. De qualquer forma, o contacto com Leopoldina (com as suas sucessivas experiências amorosas, com os poemas delico-sentimentais que confidencia à amiga) constitui um factor que pesa nos comportamentos da protagonista, impulsionando-a para o adultério, logo que se encontram reunidas duas Condições fundamentais: a ausência de Jorge (que suscita o tédio do ócio) e a chegada de Bazilio, como que aportando também de uma «viagem maravi­lhosa e difícil de episódios excitantes» (o Brasil, a digressão pela Terra Santa).
Antes, no entanto, de observarmos como se desenrola a acção d’O Primo Bazilio, em concordância com os princípios doutrinários do Naturalismo, Sintetizemos o que de relevante se encontra no espaço que enquadra Luiza. E lembremos também que, num romance naturalista, o espaço desempenha um papel quase sempre decisivo, na forma como determina o comportamento das Personagens. Neste caso, espaço é todo o conjunto de elementos exteriores à personagem, sejam eles de natureza física, social ou cultural. O lugar físico onde vive Luiza (a casa, a rua) tende a oprimi-la pelo que tem de acanhado; mas essa opressão consuma-se apenas porque Luiza também vive, imagina­riamente e em relação contrastiva, num outro «espaço»: o dos romances e novelas que lê (que integram um verdadeiro espaço cultural), estímulo e desafio para a tentativa de encontrar na vida real incidentes e emoções que o espaço social desmente: o espaço social povoado pelas miúdas obsessões de Dona Felicidade e pelos olhares agrestes de Juliana.
[132] 5.7 A intriga do adultério
A acção do romance, consumada fundamentalmente na intriga do adultério, é constituída por um conjunto de acontecimentos cuja finalidade é demonstrar uma tese: a de que a mulher burguesa, ociosa e excessivamente influenciada por leituras românticas, é levada ao adultério.
De um ponto de vista puramente funcional, esta intriga sustenta-se num triângulo de personagens: Luiza, Bazilio e Jorge. É quando este parte e chega Bazilio que estão criadas as condições para a eclosão do adultério, tal como é sugerido por um passo do capítulo III:
Ao crepúsculo, ao ver cair o dia, entristecia-se sem razão, caía numa vaga sentimentalidade: sentava-se ao piano, e os fados tristes, as cavatinas apaixonadas gemiam instintivamente no teclado, sob os seus dedos preguiçosos, no movimento abandonado dos seus braços moles. O que pensava em tolices então! E à noite, só, na larga cama francesa, sem poder dormir com o calor, vinham-lhe de repente terrores, palpites de viuvez. (p. 58)
Ora Bazilio não traz à vida de Luiza apenas a possibilidade de preencher, com as excitações da ligação amorosa, os seus ócios; acontece assim também porque Luiza vê nele a materialização de uma série de imagens, até então puramente literárias, e que agora se tornam palpáveis.
Que vida interessante a do primo Bazilio! pensava (p. 70), logo depois do reencontro.
E prossegue:
Como desejaria visitar os países que conhecia dos romances — a Escócia e os seus lagos taciturnos, Veneza e os seus palácios trágicos; aportar às baias, onde um mar luminoso e faiscante morre na areia fulva; e das cabanas dos pescadores, de tecto chato, onde vivem as Grazielas, ver azularem-se ao longe as ilhas de nomes sonoros! E ir a Paris! Paris sobretudo! Mas qual! Nunca viajaria decerto; eram pobres; Jorge era caseiro, tão lisboeta! (p. 70)
Momentaneamente, portanto, o adultério vem a representar para Luiza essa sobrecarga emocional de que a sua vida de burguesa pacata parecia caren­ciada. Todavia, o romance só pode funcionar como instrumento de moraliza­ção se o adultério aparecer aos olhos do público leitor — e em especial aos da mulher — como um desenlace sem justificação moral e de consequências negativas, a vários títulos. É já isso que se vai inferindo, quando a rotina se instala de novo e a ligação com Bazilio se torna difícil de sustentar:
Mas então!... E como uma pessoa que destapa um frasco muito guardado, e se admira vendo o perfume evaporado, ficou toda pasmada de encontrar o seu coração vazio, O que a levara então para ele? ... Nem ela sabia; não ter nada que fazer, a curiosidade romanesca e mórbida de ter um amante, mil vaidade­zinhas inflamadas, um certo desejo físico... E sentira-a, porventura, essa felicidade que dão os amores ilegítimos, de que tanto se fala nos romances e nas óperas, que faz esquecer tudo na vida, afrontar a morte, quase fazê-la [133] amar? Nunca! Todo o prazer que sentira ao princípio, que lhe parecera ser o amor — vinha da novidade, do saborzinho delicioso de comer a maçã proibida, das condições de mistério do «Paraíso», de outras circunstâncias talvez, que nem queria confessar a si mesma, que a faziam corar por dentro! (p. 224)
Com a partida de Bazilio — perseguido já pela chantagem de Juliana — parece encerrado o adultério. Falta, contudo, explorar as suas consequências e acen­tuar o castigo da adúltera, para que o romance cumpra, de facto, a função de morigeraçâo de costumes que o Naturalismo exige. Para tal desencadeia-se uma segunda intriga, verdadeiramente centrada na figura de Juliana.
5.8 O Naturalismo queirosiano: desvios e críticas
Vejamos quem é esta personagem e que motivos a inspiram. De Juliana tem-se dito, com razão, que «é um dos caracteres de maior relevo que Eça criou», «complexo e sórdido mundo anímico em que entram como ingredientes a revolta social contra a servidão, o impulso diabólico de domínio — combi­nado com o prazer sádico e lento da tortura da mulher bela, sã e ociosa, vantagens que a ela a vida lhe negou»132.
É tudo isso que o narrador representa, numa longa caracterização, das mais minuciosas e incisivas que a ficção queirosiana regista133. Nessa caracterização, alude-se expressamente a características psicológicas que vão interferir direc­tamente na chantagem exercida sobre Luiza: a curiosidade febril («era fácil encontrá-la, de repente, cosida por detrás de uma porta com a vassoura a prumo, o olhar aguçado», p. 79) e o desejo da vingança, nutrido em muitos anos de humilhações.
Ora a intervenção de Juliana n’O Primo Bazilio orienta a acção num sentido que de certa forma afasta o romance das preocupações científicas que o Naturalismo perseguia. É verdade que Juliana constitui uma figura psicologi­camente tão sórdida que a sua integração num romance naturalista pode ser entendida como o tributo de Eça a esse pendor para a devassa de vícios recônditos e desvios psico-somáticos de facto cultivados pelo Naturalismo; contudo, a chantagem exercida por Juliana acaba por fazer do romance — sobretudo a partir do momento em que Bazilio parte e Luiza fica só — um desfilar trepidante de incidentes que de algum modo afastam a história dos intuitos de profilaxia social que Eça certamente tinha em mente.
A questão que aqui se levanta não é nova. Logo na época em que foi publi­cado, O Primo Bazilio foi objecto de críticas insuspeitas — as de Ramalho Ortigão e Machado de Assis, por exemplo —, que justamente apontavam no romance alguns defeitos de construção que anunciavam já um princípio de incompatibilidade de Eça com o Naturalismo.
[134] A crítica de Machado de Assis ficou justamente célebre e suscitou uma reacção intempestiva de Eça (o texto conhecido pelo titulo de «Idealismo e Realismo», postumamente publicado nas Cartas inéditas de Fradique Mendes e mais páginas esquecidas), texto que o escritor deixou inédito. Nessa crítica — que visava também a segunda versão d’O Crime do Padre Amaro, publicada em 1876 —, Machado de Assis apontava em Eça um gosto excessivo pelo pormenor descritivo e por temas e situações algo chocantes, que denunciavam, afinal, uma interpretação superficial do Naturalismo; no caso d’O Primo Bazilio, o romance ressentia-se ainda de defeitos de construção traduzidos na deficiente articulação entre as duas intrigas (a do adultério e a da chantagem), afectando a lógica interna do romance e a demonstração de teses sociais. E Machado sintetizava aqueles defeitos de forma a um tempo lapidar e incisivamente critica, ao escrever:
Se o autor, visto que o Realismo também inculca vocação social e apostólica, intentou dar no seu romance algum ensinamento ou demonstrar com ele alguma tese, força é confessar que o não conseguiu, a menos de supor que a tese ou ensinamento seja isto: — a boa escolha dos fâmulos é uma condição de paz no adultério.134
Se é verdade que a crítica machadiana se exprime num tom talvez demasiado agreste, não é menos verdade que ela tem alguma razão de ser e, ao mesmo tempo, parece ter calado fundo num Eça que, reagindo embora, como se disse, acabou por rever processos de trabalho e mesmo, pode talvez dizer-se, acen­tuou no seu íntimo dúvidas e reservas quanto à efectiva pertinência sociocultu­ral do Naturalismo: desta época é uma carta de Eça a Ramalho Ortigão, carta escrita em Inglaterra, a 8 de Abril de 1878, em que declara:
Eu não posso pintar Portugal em Newcastle. Para escrever qualquer página, qualquer linha, tenho de fazer dois violentos esforços: desprender-me intei­ramente da impressão que me dá a sociedade que me cerca e evocar, por um retesamento da reminiscência, a sociedade que está longe.135
O que equivale a reconhecer não só a importância de que, para o método naturalista, se reveste a observação, mas também a sua falência, nas condições de ausência do pais em que o escritor, cônsul de Portugal em Newcastle, então vivia.
É cedo, no entanto, para abruptas mudanças de rumo. O que por agora deve ser sublinhado é que, do ponto de vista ideológico e apesar das deficiências de construção que se lhe possam notar, O Primo Bazilio encerra, de facto, sentidos e valores sintonizados com o movimento naturalista.
[135] 5.9 Ideologia e reforma de costumes
Analisemos romance do ponto de vista dessa sua vinculação ideológica. Mas adiantemos desde já que as coordenadas ideológicas que sustentam O Primo Bazilio hão-se ser deduzidas fundamentalmente a partir de duas fontes de informação: por um lado, os juízos do narrador, enunciados nos termos de uma sujectividade que naturalmente deixa transparecer valores e orientações culturais que configuram uma ideologia; por outro lado, os discursos das personagens, os seus comportamentos e procedimentos culturais, capazes também de ilustrarem um certo cenário ideológico com o qual o narrador «dialoga» e em função do qual afirma (ou reafirma) as suas propostas ideológicas.
Vejamos como juízos do narrador e características das personagens se articu­lam e insinuam relevantes significados ideológicos. No capítulo II d’O Primo Bazilio, a apresentação, pelo narrador omnisciente, da personagem Ernesti­nho Ledesma explana-se nestes termos:
Era primo de Jorge. Pequenino, linfático, os seus membros franzinos, ainda quase tenros, davam-lhe um aspecto débil de colegial; o buço, delgado, empastado em cera-moustache, arrebitava-se aos cantos em pontas afiadas como agulhas; e na sua cara chupada, os olhos repolhudos amorteciam-se com um quebrado langoroso. Trazia sapatos de verniz com grandes laços de fita; sobre o colete branco, a cadeia do relógio sustentava um medalhão enorme, de ouro, com frutos e flores esmaltados em relevo. Vivia com uma actrizita do Ginásio, uma magra, cor de melão, com o cabelo muito riçado, o artísico — e escrevia para o teatro. Tinha traduções, dois originais num acto, uma comédia, em calembours. (p. 42)
Não termina ainda aqui a caracterização de Ernestinho Ledesma, um nome por si só incapaz de evocar sentidos positivos. Já, no entanto, no passo transcrito se observa que a debilidade é a nota dominante de uma figura que imediatamente se identifica com um Romantismo sentimentalista e desre­grado: debilidade física, pelo aspecto, debilidade moral, pelo modo de vida, debilidade cultural, por uma produção dramática híbrida, oscilando entre a tradução, o plágio e a imitação; e não esqueçamos também que se este Ernestinho se consagra tão activamente ao Teatro é «porque era empregado na Alfândega, com bom vencimento, e tinha quinhentos mil réis de renda das suas inscrições» (pp. 42-43).
Ora Ernestinho Ledesma traz à vida de Luiza — precisamente ao serão em que nos é apresentado — a sentimentalidade e a temática adúltera de um drama, «Honra e Paixão» («a sua estreia séria»), destinado a cruzar-se com o per­curso, também adúltero, de Luiza.
Do ponto de vista ideológico, a mensagem do narrador é muito clara. Trata-se não só de denunciar o que de negativo existe no Romantismo destemperado de que se alimenta a burguesia lisboeta, mas sobretudo de evidenciar, a partir de um raciocínio tipicamente naturalista, que os meios e os hábitos culturais condicionam irrevogavelmente as personagens; e também que o romance será [136] um instrumento de moralização de costumes, na medida em que consiga alertar os leitores (e as leitoras) para vícios que Ernestinho, Luiza e Leopoldina muito bem documentam.
Estes vectores ideológicos reafirmam-se pelos termos em que o narrador comenta a vida sentimental e os hábitos culturais de Leopoldina, por exemplo, quando lê à amiga os versos que o amante lhe dedica:
E muito chegada para Luiza, com as narinas dilatadas pela delícia da sensa­ção, leu baixo, com orgulho, com pompa:
A ti
Farol da Guia, 5 de Junho
Quando cismo à hora do poente

Sobre os rochedos onde brame o mar...


Era uma elegia. O rapaz contava, em quadras, as longas contemplações em que a via a ela, Leopoldina, visão radiosa que deslizas leve, nas águas dormen­tes, nas vermelhidões do ocaso, na brancura das espumas. Era uma composi­ção delambida, de um sentimentalismo reles, com um ar tísico, muito lis­boeta, cheia de versos errados. E terminando dizia-lhe que não era «nos esplendores das salas» ou nos «bailes febricitantes» que gostava de a ver: era ali, naqueles rochedos,
Onde todos os dias ao sol-posto
Eu vejo adormecer o mar gigante.
— Que bonito, hem!

Ficaram caladas, com uma comoçãozinha. (p. 29)


É evidente, no comentário do narrador, uma atitude ideológica de reprovação, por aquilo que o «sentimentalismo reles» evidencia de fragilidade anímica, de enfraquecimento moral e de idealismo doentio; e é evidente também que o diminutivo «comoçãozinha» vem coroar, com inegável subtileza estilística, essa atitude de reprovação.
A partir do que fica exposto, é possível confirmar as fundamentais orientações ideológicas que regem o romance: trata-se de demonstrar que a intriga em que Luiza é conduzida ao adultério resulta da conjugação de uma série de factores determinantes: de temperamento, de formação cultural, de ambiente, etc. Perfilhando um ponto de vista omnisciente, o narrador vai enunciando, de forma relativamente metódica e em obediência a uma orientação finalística, o peso negativo desses factores, de modo a controlar toda a economia da intriga do adultério.
Mesmo a integração da «Honra e Paixão» na acção do romance, pelos termos em que se processa, vem reforçar a dinâmica pedagógico-reformista do romance. Trata-se, como se sabe, de uma acção dramática sentimental e empolada, centrada também numa questão de adultério; ora essa acção pesa consideravelmente no imaginário de Luiza, por causa do eventual castigo da adúltera. O atribulado sonho em que Luiza se vê como protagonista do drama [137] de Ernestinho136 constitui precisamente uma transferência, para o universo onírico da personagem, de traumas e culpas que o adultério suscita; contudo, no final do romance, já depois de Jorge conhecer o adultério, o que sobrevém não é a morte da adúltera, mas antes — de acordo com os gracejos dos amigos de Jorge, no início do romance e em sintonia também com a versão definitiva de «Honra e Paixão» — o perdão de Luiza pelo marido. A mudança de posição de Jorge constitui, de certo modo, uma resultante da irrefreável lógica cultural e moral que preside à sociedade lisboeta da Regeneração: como na Literatura, a moderação das conveniências burguesas acaba por se impor e por discreta­mente ocultar os males que atormentam aquela sociedade. Ou, se se preferir e numa outra óptica, aquela sociedade debilitada nos seus comportamentos morais vem a bater certo com uma Literatura (também) tão debilitada como o drama «Honra e Paixão».






Literatura Moderna e Contemporânea




FERNANDO PESSOA METALINGUÍSTICO: SER "OUTRO" SEM DEIXAR DE SER "EU"



Danielle Crepaldi Carvalho

Marlene Catarina de Freitas

Disponível no endereço eletrônico: http://www.unicamp.br/iel/site/alunos/publicacoes/textos/f00006.htm- capturado em 28/03/2008 - 21:17
APRESENTAÇÃO

"Falar é o modo mais simples de nos tornarmos desconhecidos. E esse modo imoral e hipócrita de falar a que se chama escrever, mais completamente nos vela aos outros e àquela espécie de outros a que a nossa inconsciência chama nós-próprios" [1] – essas palavras, as primeiras da crônica de estréia de Fernando Pessoa na coluna de crítica teatral do Jornal D' Arte, estão no cerne das indagações deste poeta moderno: a fragilidade da linguagem como meio de expressão dos complexos e contraditórios sentimentos do poeta. Desespero este que se mostra mais acentuado na medida em que, como veremos adiante, o poeta sabe que tem na literatura a única chave para a compreensão de si mesmo.

A compreensão da literatura como instrumento falho para a expressão da verdade dá a tônica para a criação dos heterônimos, escritores criados pelo escritor como, segundo o próprio Pessoa afirma, "personagens distintas entre si e de mim" [2] . No entanto, como pensarmos os heterônimos como expressões de sentimentos totalmente dessemelhantes daqueles do poeta, principalmente considerando que as contradições vividas pelo criador destes já abarcariam muitos eus: "há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente" [3] ?...

Sedentas por clarearmos esta indagação, caminhamos por alguma bibliografia deste escritor-filósofo, e o trabalho que se apresentará a partir de agora é uma humilde tentativa de apresentar ao nosso leitor alguns dos caminhos percorridos e conclusões chegadas.


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