Ana səhifə

Literatura portugues


Yüklə 1.49 Mb.
səhifə17/29
tarix25.06.2016
ölçüsü1.49 Mb.
1   ...   13   14   15   16   17   18   19   20   ...   29

[34] No seu prefácio à 5.ª edição do Amor de Perdição, em 1879, escrevia Camilo: “Se, por virtude da metempsicose, eu reaparecer na sociedade do século XXI, talvez me regozije de ver outra vez as lágrimas em moda nos braços da retórica, e esta 5.ª edição do Amor de Perdição quase esgotada.”

A menos de vinte anos do século XXI, não é a 5.ª mas a 50.ª edição da novela que se esgotou já.

Nem a moda do realismo que naqueles anos parecia a Camilo capaz de destronar pelo menos temporariamente a sua obra, nem alguma das outras modas literárias que de então para cá se suce­deram logrou fazer esquecer ou menosprezar a eterna história de Teresa e Simão. E a experiência dos que somos, em 1981, profes­sores de Liceu, prova-nos que, mesmo junto da juventude — tão distanciada hoje, ao menos na aparência, das lágrimas e da retó­rica —, o Amor de Perdição continua a ter uma audiência que outras leituras de clássicos portugueses nem sempre conseguem.

Muito se tem escrito sobre as razões da aceitação que a novela encontrou desde logo junto do público, aceitação que parece ter surpreendido o próprio Autor; a história da critica do Amor de Perdição e em grande parte a história da tentativa de explicação desse êxito, invulgar nas letras portuguesas.

Foi Camilo quem abriu o debate no prefácio da 2.ª edição, em 1863, ao indicar como factores preponderantes do êxito “a rapi­dez das peripécias, a derivação concisa do diálogo para os pontos essenciais do enredo, a ausência de divagações filosóficas, a lha­neza da linguagem e desartifício das locuções”.

Desde então, a crítica tem arriscado muitas explicações para o triunfo da novela: há quem fale na pureza da linguagem e quem sublinhe o valor exemplar deste livro, espelho onde se reflecte a sentimentalidade portuguesa. Propõem uns como razão do êxito a sinceridade confessional com que foi escrito, e outros a simpatia profunda com que o narrador comunga — levando o leitor a comungar também — no sofrimento dos heróis...

[35] Em lugar de aventarmos mais uma hipótese justificativa êxito da novela, tentaremos antes — e talvez venha a dar mesmo — observá-la nos seus elementos, reflectir sobre o modo como se gera, se avoluma, se desencadeia e fica a vibrar em esta tempestade ou sinfonia — que ambos os símiles nos perece adequados ao Amor de Perdição.

Fiel à sua tendência para esbater as fronteiras entre vida e ficção, Camilo mais uma vez partiu de um dado real para construir uma história inventada.

É indesmentível o facto verídico, inequívoco, o tom em que começa o livro, com a seca (voluntariamente seca) apresentação de um documento: “Folheando os livros de antigos assentamentos no cartório das cadeias da Relação do Porto, li, no das entradas dos presos desde 1803 a 1805, o seguinte...”

Não é o narrador que inventa: ele reproduz um texto que o leitor poderei compulsar.

A partir deste facto comprovado — a condenação de Simão António Botelho — se irá construir a narrativa. Depois, ao longo do livro, o narrador não descura a tarefa de ir informando o leitor sobre as fontes que lhe permitiram reconstituir a história inteira, de que o assento da prisão era quase o trágico remate. E essa informação parece não oferecer dúvidas, pois o leitor é a tempo prevenido de que este Simão Botelho condenado a degredo era com efeito um tio paterno do escritor. De maneira que tudo quanto da história dele lhe fosse narrado, traria pelo menos um selo de garantia — o da tradição familiar. Aliás, o subtítulo Memórias Duma Família podia, entre outras coisas, servir para corroborar o carácter autêntico da narrativa.

O autor mostra-se logo de início minuciosamente informado não só das circunstâncias em que decorreu a vida das duas últimas gerações anteriores à sua, mas também de dados genealógicos e biográficos mais antigos. Regista datas de nascimentos e mortes, mudanças, e outros sucessos; pormenoriza os cargos desempe­nhados pelos parentes, os estudos que efectuaram, as relações que tiveram e a fama que deixaram de si. Em certos momentos informa o processo — aberto com o registo da cadeia — com novas peças: um assento de baptismo e numerosas cartas, uma [36] delas reproduzida em nota de rodapé, as outras integradas no texto. Manter a aparência de rigorosa verdade histórica parece ser sua preocupação constante.

A medida em que essa aparência de verdade é ilusória pode hoje, graças a aturadas investigações, considerar-se em larga parte determinada, e provou-se que, feitas as contas, Camilo pouco sabia som exactidão sobre a sua família e mesmo sobre o caso daquele que institui protagonista da novela, seu tio Simão Botelho.

É evidente que, para aquilatar o valor literário do Amor de Perdição, pouco importa que se confirmassem ou não as aparên­cias da verdade. Demais sabemos que a verdade da obra de arte é de natureza muito diferente da verdade histórica.

Mas para os leitores fervorosos das primeiras edições essa aparência — a crença de que estavam lendo uma história aconte­cida anos atrás com pessoas de carne e osso, parentes próximos do novelista já famoso (e famoso não só pelo talento, mas pelo amor proibido que o levara à cadeia como seu tio...) — constituiu sem dúvida um factor poderoso no êxito da novela. Muitos anos depois da 1.ª edição, ainda Alberto Pimentel, nas suas Notas sobre o Amor de Perdição, ao desfazer a ilusão com base em estudos sérios de vários investigadores, se sentiu obrigado a con­solar o leitor da decepção sofrida, lembrando-lhe que a qualidade de um romance não depende da veracidade dos factos narrados...

Se, ao estudarmos a novela de Camilo, sublinhamos este aspecto que hoje pode parecer anedótico e circunstancial, é por­que ele não só corresponde a uma tendência bem marcada do homem e do escritor, como obedece a solicitações próprias da época, às quais Camilo, profissional das leiras em permanente relação com o público, não ficaria estranho.

A tendência peculiar a que várias vezes nos temos referido consiste na voluntária mistura de realidade e ficção em que o escritor se compraz, e que tem a sua expressão literária neste aproveitamento romanesco de casos vividos. Dir-se-ia que Cami­lo, sentindo as potencialidades dramáticas e líricas que latejam, mas não chegam a concretizar-se, nas situações do real, se aplica à tarefa de isolar do material bruto que a vida — ou a História —[37] fornece elementos privilegiados, aos quais se compraz em impri­mir novas formas, insuflando-lhes por obra do seu talento o sopro de vida, de outra nova vida, a da ficção, mais concentrada que a real; assim os arranca da massa informe do acontecer quotidiano, em que, sem chegar a realizar-se, iam passando e esquecendo.

Parece ser assim no caso de Simão Botelho. A prisão, a condenação a degredo aos dezoito anos (por razões que o assento da cadeia não menciona) eram sem dúvida factos dolorosos, mas que se sumiriam inexplicados no fluir do tempo, sem terem dado o rendimento dramático que prometiam.

Mas o novelista lê: degredado aos 18 anos. Juventude e degredo, juventude e sofrimento, juventude e decerto crime... Estas ideias chocando-se produzem a faísca que irá atear o fogo da novela. Porque se sofre e porque se peca nessa idade feliz? Para Camilo só pode haver uma razão esteticamente válida: por amor. E a história surge como num relâmpago:

“Amou, perdeu-se, morreu amando”.

O registo da cadeia dizia apenas “perdeu-se”. Camilo comple­tou a vida com a arte e criou um destino. À perdição juntou o amor e a morte, marcos da condição humana e obsessões mais tenazes do romancista. Assim nasceu de um segundo nascimento Simão Botelho, criatura de seu sobrinho. E com ele nasceu a mais amada das novelas de amor portuguesas.

Tendência bem característica, decerto, esta de querer dar a todo o custo credibilidade à ficção. Mas também solicitação de época, a que ele respondeu com desenvoltura.

Muito leitor de 1860 ainda se corre de ler novelas. Durante tanto tempo, primeiro a Real Mesa Censória, depois a Academia, a Igreja, o senso comum, a moral familiar condenaram as “patranhas” dos novelistas, sobretudo dos franceses, cronistas de vícios e heresias... O próprio Camilo subscreveu muitas vezes condenações análogas. Mas, mesmo aquele leitor que já se aven­tura para além do conspícuo e salutar romance histórico (escola de antigas virtudes) e entra nos meandros do folhetim estrangei­rado, aprendeu na cartilha romântica (às vezes tomada um tanto ao pé da letra), que a grande literatura é a que palpita ao ritmo do coração do autor, isto é, que quanto mais sentido e vivido, [38] mais alto na escala dos valores literários... Por outro lado, o jornalismo, que o surto das liberdades estimulava, habituara o leitor ao fait-divers, à crónica do quotidiano, ao relato do acon­tecimento real, pintado embora de cores românticas. De maneira que o caso verídico — ou apresentado como tal — tinha mais seguro êxito que a pura fantasia, tantas vezes condenada em nome da moral, da erudição sisuda e da estética romântica da sinceridade.

Posto isto, melhor aceitamos a simulação de verdade usada por Camilo. Com efeito, à data da composição da novela que levava o subtítulo ambicioso de Memórias Duma Família, o autor ignorava quase tudo da história dos seus ascendentes mesmo próximos, como prova uma carta escrita vinte anos depois de publicar o A. de P., e em que o romancista pede ao genealogista Visconde de Sanches de Baena que procure infor­mações sobre aspectos obscuros da vida da sua família — aspectos que ele expusera miudamente na novela, com visos de verdade histórica.

A investigação provou ter Simão Botelho sido preso por agressão e feridas graves na pessoa de um criado chamado Fer­reira, é condenado a degredo devido aos seus antecedentes de arruaceiro que traziam atemorizada a população de Viseu. De Teresa de Albuquerque e Baltasar Coutinho não há rasto em documentos, o que vale também para todas as outras persona­gens da novela, com excepção dos membros da família Correia Botelho e do desembargador Mosqueira.

Mas esta desmistificação de uma aparente habilidade de pro­fissional batido é por sua vez desmistificada, e toda a questão de verdade e ilusão volta a ser posta em causa, se nos lembrarmos das circunstâncias biográficas em que foi escrito o Amor de Perdição.

Preso por amor de Ana Plácido — ou por amor do seu fado — naquela mesma cadeia onde cinquenta e tantos anos antes dera entrada seu tio, Camilo compulsa os registos. E em quinze dias (“os mais atormentados da minha vida”) escreve esse “poema de revolta, obstinação e desespero” (cf. J. P. Coelho, Introdução ao Estudo da Novela Camiliana).

[39] Mas também poema de amor, impossível, remoto, que é já saudade antes de ter sido presença. O único amor talvez em que ele podia já acreditar.

E assim o amor que aparece como uma invenção, metido na história de Simão Botelho para explicar a perdição, confirma-se afinal à luz de uma verdade que não é a verdade histórica do jovem delinquente há muito sepulto, mas a verdade interior do homem maduro e vivido que a paixão identifica com a alma adolescente.

Não se pode pois desmascarar o artifício pelo qual Camilo deu foros de realidade a figuras quase apagadas da sua ascendência, sem se descobrir ao mesmo tempo a face de outra verdade — a verdade interior de uma experiência de amor inviável, de pecado e de penitência, que essa, sim, se exprime poderosamente em forma artística no Amor de Perdição.

No estudo que escreveu em 1890 para a edição comemorativa desta obra, após a morte de Camilo, Ramalho Ortigão, um tanto ofuscado pela visão positivista da fatalidade hereditária, e abalado ainda pelo desfecho recente da tragédia do grande novelista, escrevia estas palavras que hoje vale a pena repensar: “Na contextura desta obra, que é a história inconsciente de uma de nevrose de família, há desde hoje um novo elemento de comoção trágica. Pela sua agonia tão longa, pelo seu fim tão doloroso, o sobrinho de Simão Botelho fica fazendo parte deste romance de amor e de morte, espécie de introdução patológica à biografia do poeta o concebeu.”

Cremos que essa história de nevrose de família, anunciada em parte no subtítulo, não poderá com rigor considerar-se inconsciente, pois Camilo, que já nas Memórias do Cárcere (1861) se referia ao destino trágico dos seus, alude em algumas cartas, com inquietação, à vesânia que nas últimas gerações flagelou a família, acabando por declarar “meu tio Simão, o do A. de P., era doido.” Não é pois inconsciente, mas talvez incoerente no propósito este relato de uma nevrose de família: porque o Autor, perdendo de vista os antecedentes — e não sublinhando, decerto razões de ordem estética e ética, a loucura do herói, restringe a bem dizer as memórias da família ao caso (não apresentado como [40] patológico) de Simão Botelho.

Por outro lado, se é extremamente pertinente dizer, como diz Ramalho com o seu tom peculiar de vigorosa bondade, que “o sobrinho de Simão Botelho fica fazendo parte deste romance de amor e de morte”, já não nos parece tão acertada a motivação desse facto: não será tanto “pela sua agonia tão longa, pelo seu fim tão doloroso” que Camilo entra no romance, mas pela sua identificação com o herói da novela, que animou com os seus próprios sentimentos naqueles dias de amargura, remorso e nos­talgia irremediável.

A imaginação criadora de Camilo teve neste livro, seja como for, muito mais amplo papel do que ele — embora sem grande coerência — queria dar a entender. Quando falamos de imagina­ção a respeito de Camilo, não devemos confundi-la com a facul­dade de inventar complicadas e engenhosas intrigas. Quase só nos livros da primeira fase, escritos sob a inspiração do folhetim francês, esse tipo de imaginação frívola se estadeia.

A acção do A. de P. é muito simples, sóbria e una.

Podemos resumi-la em poucas linhas.

O amor de dois jovens, Simão Botelho e Teresa de Albu­querque, contrariado pelas respectivas famílias, que se odeiam. leva Teresa ao convento e Simão à cadeia, ela por recusar-se a casar com Baltasar Coutinho seu primo, que a pretende, ele, mais tarde, por ter assassinado Baltasar, que se lhe atravessara no caminho. Condenado a dez anos de degredo na Índia, Simão parte, enquanto Teresa morre tísica no convento. Simão morre também alguns dias depois, no barco que o leva ao degredo.

Reduzimos deliberadamente o entrecho da novela a um esquema da acção principal, apenas para fazer sobressair o fulcro ou, na terminologia do próprio Camilo, a mola real da acção. Esta não é, como à primeira vista parece, o amor, mas sim a oposição, o confronto entre vontades empenhadas em objecti­vos contrários, que assume por vezes a forma de ódio, e que se apresenta como verdadeiro factor dinamizador da novela.

A história brota, com efeito, da pressão exercida sobre os protagonistas por uma disciplina familiar que se apoia nas insti­tuições (jurídica e monástica). Mas o que lhe dá o verdadeiro [41] dramatismo, permitindo inclusivamente que ela se desenvolva e complique, é a tenaz resistência dos protagonista à submissão.

Depois de uma primeira parte em que se relatam os antecedentes familiares de Simão e se historia rapidamente a vida do jovem, anterior ao enamoramento, com especial relevo para os factos que revelam o carácter rebelde e violento deste (capítulos I e parte do II), surge a notícia — extremamente breve — do encontro com Teresa, a partir do qual começa, e a bem dizer só então, a acção principal. Esta acção é constituída por um tecido de relações, de encontros e desencontros, físicos e afectivos, entre o restrito grupo das personagens principais.

A corroborar o facto de que o motor da novela é a oposição, mais do que o amor, está a escassez significativa de cenas de encontro entre os dois namorados. Teresa e Simão conhecem-se e apaixonam-se à janela das respectivas casas, separados pela rua: a proximidade física é ilusória, pois cada casa é um mundo fechado, hostil e impenetrável ao outro e a rua dir-se-ia funcio­nar como imagem do fosso de obstáculos que irão interpor-se entre eles. No decurso da narrativa, apenas três vezes Teresa e Simão estão juntos: as duas primeiras, nos encontros fugazes e ansiados do jardim da casa de Tadeu de Albuquerque: saído o ocultas de Coimbra, Simão veio de noite, furtivamente, ao prazo-dado que Teresa lhe concede iludindo perigosamente a vigilân­cia do pai e do primo. No primeiro encontro, as únicos palavras que se trocam entre eles são proferidas por Teresa “com a voz cortada de ansiedade”: em vez do “Vem!” que o coração pedia, o “Vai-te embora!” imposto pela oposição que os espreita. Simão não chega a falar a Teresa: ao separar-se dela. é com Baltasar que depara, e em lugar das palavras ternas de amante as suas falas desta cena são desafios e ameaças de morte: “Que quer?” E como Baltasar não responda: “Parece-me que lhe abro a boca com uma bala!”

A morte ronda já em torno do amor ameaçado. No dia seguinte, a segunda entrevista amorosa é toda entrecortada e sacudida dos sobressaltos de uma espera. Do breve encontro de Simão e Teresa junto ao muro do quintal, guardado por clavinas engatilhadas, sabemos apenas que Simão, mal chegado e logo [42] sobressaltado pelos passos do inimigo, “entendeu o perigo, apertou convulsamente a mão de Teresa, e retirou-se.” A narrativa, a ­partir daí, afasta-se da casa fechada onde Teresa fica entregue à sua angústia, e alarga-se à estrada, aos atalhos da serra, aos matagais ásperos, acompanhando a emboscada, a perseguição e o tiroteio: o encontro amoroso desanda em recontro de morte — e o capítulo remata com a cena cruel da caça aos criados de Baltasar. Quando, passados dias de expectativa e sofrimento» os dois apaixonados voltam a encontrar-se — e será a última vez — na cerca do convento de Viseu donde Teresa vai ser transfe­rida, Simão só tem tempo de dizer algumas palavras graves e doridas, aconselhando-lhe a resignação. Logo em seguida» é com Baltasar que se encontra uma vez mais — a última também, e é com ele que alterca antes de o varar com um tiro.

Assim a relação de amor Teresa/Simão é sempre contras­tada, e ao fim gorada, pela relação de ódio Baltasar/Simão. A presença do fidalgo de Castro de Aire, negativo da figura lumi­nosa de Teresa, segue-a como uma sombra, atravessa-se entre ela e o amado — a indicar que nesta história de amor o ódio parece destinado a triunfar.

Na parte da novela que se segue à morte de Baltasar, esta mola real da oposição odiosa não enfraquece. A morte do mor­gado vem antes derramar um negrume mais espesso sobre o destino dos protagonistas. O ódio concentra-se agora com redo­brada violência apenas nos pais de ambos, mais encarniçados do que nunca em separar definitivamente os enamorados. Na série de capítulos que vão do X até ao final, a narrativa, com peque­nas interrupções, acompanha ora Simão ora Teresa que, ambos reclusos, manietados, se transformam em objectos passivos do ódio que aperta o cerco à sua volta. Mas esse ódio já não encarna num homem moço, que embora insidioso e cobarde, represen­tava ainda o ciúme, a vaidade, a esperança da vitória e da posse; já não é a clavina aperrada, o vulto que trava o passo, a galopada na noite, o inimigo que se pode insultar e matar. Tornou-se a sanha obtusa e enviesada de dois velhos que tentam atingir-se e se entrincheiram nas suas posições, passando se necessário por cima do cadáver dos jovens. Nesta última parte, o ódio, [43] masca|rado de integridade ou sentimento da honra familiar, faz-se surdo e mesquinho, intriga, move influências, insinua preten­sões, serve-se da justiça, tenta servir-se da religião para alcançar os seus fins.

Teresa e Simão já não tornarão a estar juntos. A oposição venceu-os, destruindo-os em corpo e alma. Ver-se-ão apenas — ou melhor, adivinhar-se-ão, separados por uma distância física que se alarga em impossível: é a última cena em que figuram ambos, mas ele já embarcado a caminho do degredo que aceitou vencido, ela prisioneira voluntária do mosteiro, lá no mirante donde se domina a barra do Douro, e prestes a transpor os umbrais da morte. Tudo o que vêem um do outro é o lenço da despedida que acena e desfalece. E só aí ao dobrar o cabo da último agonia, o amor parece retomar a sua força, purificado, renascido das cinzas da dor, e desferindo o voo para a eterni­dade, limpo enfim da sombra do ódio que o toldava.

A esta acção principal que apresentámos isolada associam-se duas acções secundárias, uma bem ligada à principal e até inte­grada nela, outra inserido de modo um tanto arbitrário e forçado na novela, onde constitui, pelo menos na forma relativamente desenvolvida em que se apresenta, uma excrescência prejudicial à sóbria e tensa unidade da obra. Referimo-nos ao episódio de tom memorialístico dos amores adúlteros de Manuel Botelho, irmão do herói.

Quanto à outra acção, estreitamente entrelaçada na história dos amores de Simão e Teresa, que coadjuva e a que dá um suporte de realidade quotidiana. integra-se harmoniosamente no clima moral e sentimental da novela. Os seus protagonistas, porém, além de serem os adjuvantes (que na realidade são, tomando parte activa na luta contra a oposição ao amor dos dois jovens), têm a sua história própria, o seu destino e as suas moti­vações bem definidas. O ferrador João da Cruz, que um acaso vai colocar no caminho de Simão, será o seu colaborador na fase activa e aguerrida da luto contra os que tentam separá-lo de Teresa. Mariana, a filha do ferrador. substituirá o pai quando o amor já não pode ser defendido de armas na mão, mas só ali­mentado pela troca de cartas entre os amantes separados; depois, [44] quando o cerco do ódio se fecha sobre Simão, privando-o irremediavelmente de Teresa, Mariana levará à cela do preso a sua pequena luz doméstica de carinho e amparo; por fim, quando nada mais pode fazer, chorará com ele. segui-lo-á ao degredo e morrerá para o seguir também na morte.

Se é certo que a história de Mariana só começa e acaba verdadeiramente em sincronia com a tragédia de Simão, já no caso de João da Cruz poderíamos ser levados apensar que o seu fim — morto de uma bala que vem saldar antiga divida de san­gue — se afasta da história principal, aparecendo como episódio desligado. Mas na verdade há uma oculta relação entre essa história de crime e vingança e o caso de Simão, em que João da Cruz activamente se empenha. A ligação não é lógica, não con­siste num nexo de causalidade ou consequência: é de outro tipo, mais subtil e quase inexplicável Vejamos brevemente esta acção que se refere a João da Cruz. O ferrador matara em tempos um almocreve, por certa questão travada à porta da sua loja. Preso e condenado à forca, foi o corregedor, pai de Simão, que cedendo às suas súplicas o absolveu, ligando-o por uma gratidão pro­funda à família Correia Botelho. Daí, que ao encontrar Simão se lhe dedique incondicionalmente, disposto a cada instante a dar a vida por ele. Mas não acontece assim: será o filho do almocreve outrora assassinado quem, aparecendo um dia de improviso, vingará, matando o ferrador, a memória do pai. Curiosamente, protegendo Simão no conflito de brio familiar em que este se debate, será o mesmo sentimento que irá vitimá-lo. O destino de Simão parece assim alargar a sua asa negra de maldição sobre o homem dedicado e rude que o seguira. É certo que a morte de João da Cruz se tornava necessária à economia da intriga, para que Mariana, só no mundo, pudesse acompanhar Simão até ao fim. Mas fazendo morrer o ferrador do seu velho crime, o narra­dor, ao mesmo tempo que inutiliza a sentença absolutória do juiz odiento — como se nada vindo dele senão o ódio pudesse subsis­tir — deu também a João da Cruz, homem de acção e violência, a morte em ajuste de contas que lhe convinha — e que convinha igualmente ao clima deste drama viril e áspero de pundonor, agravos e vinganças.

[45] A uma acção simples e densa, corresponde um espaço restrito, sobriamente apontado.

A província portuguesa, fechada nos seus preconceitos, nas suas intrigas locais, pequeno mundo de relações estreitas, onde a tradição familiar e a reputação pessoal contam mais, é o espaço — apenas Indicado e representado pelas personagens, nunca des­crito — que a esta acção verdadeiramente convém. Para mais, a existência histórica de Simão impunha ao Autor que situasse esta novela, como tantas outras suas do mesmo teor, no começo do século XIX, antes que a revolução liberal viesse abalar os funda­mentos desse mundo provinciano. Isto é, a escolha do “caso” de seu tio forneceu a Camilo o pretexto para mais esta narrativa situada num passado ainda recente, mas já separado da actuali­dade do escritor pelo fosso das transformações políticas e sociais. É inegável a preferência do Autor por essa época em que a pressão das estruturas sociais ainda fortes, actuando sobre a sensibilidade individual, já desperta pelos ventos da Revolução e do roman­tismo, incendia ao rubro as paixões represadas e gerava assim as violentas tensões que são o nervo da novela.

Teresa e Simão conhecem-se nos primeiros anos do século: trinta anos mais tarde, vínculos e morgadios estariam extintos e com eles abalada a intransigência na defesa do nome; as leis e a mentalidade geral pactuariam com o coração para desautorizar o pai de família; os conventos, encerrados, já não serviriam de prisão às filhas rebeldes; e o dinheiro seria, em vez do nome e do pundonor, a mola real da vida. Em outra história de amores contrariados, passada em 1825, o próprio Camilo comenta ironi­camente, a propósito de um moço plebeu a quem um pai de nobreza recente recusa afilha, por ele não ter ao menos um hábito de Cristo: “Ó meu pobre rapaz, se as tuas desventuras acontecem nestes nossos felizes tempos, tu mandavas cinquenta mil réis a um meu amigo de Lisboa e, no correio seguinte, tinhas o teu hábito de Cristo, e estavas, lidos os banhos, casado com a tua Matilde.” (Duas Horas de Leitura).

Nesta província tão marcadamente “antigo regime”, Simão, como tantos outros moços de boas famílias que os estudos leva­ram a Coimbra e transviaram, destoa pela ousadia das suas [46] atitu|des políticas. A Coimbra maçónica dos começos do século XIX, onde Garrett estudou e conspirou, e onde duas décadas depois se maquinaria o assassínio dos lentes em Condeixa, aparece rapida­mente evocada — o bastante para revelar que as autoridades zelavam pelo respeito do Trono e do Altar, e que os fogachos de revolucionarismo juvenil ainda não bastavam a perturbar a ordem solidamente estabelecida: Simão paga com seis meses de prisão, no cárcere privado da Universidade, as suas veleidades de jacobino.

Neste fundo provinciano e arcaizante do começo do século, inscrevem-se depois os espaços físicos onde se desenrola a acção.

À parte uma única cena de exterior detido e trabalhada — a da emboscada à saída de Viseu, no capítulo VI — a novela decorre entre algumas casas de família, dois conventos, duas cadeias, e vai morrer no mar» sobre um navio de degredados a caminho da Índia. Espaços fechados, reduzidos e que progressivamente parecem ir estreitando em torno das personagens à medida que a tragédia adensa.

As casas têm um papel de extrema importância no Amor de Perdição. Nelas se vem gerando, desde o fundo do tempo, o drama que vai explodir na existência breve dos protagonistas, e também, paralelamente, na vida de outras personagem de segundo plano, como o ferrador e sua filha. Porque a casa não é o simples habitáculo, é a materialização de uma realidade biológica, afectiva, moral e social — a família. O peso da instituição familiar, não só na trama narrativo do Amor de Perdição como na configu­ração psicológica e na actuação das suas personagens, é decisivo (e o próprio Camilo deixou como vimos esse facto apontado no subtítulo, se bem que, quanto a nós, não é tanto a família Correia Botelho, mas a Família como realidade humano universal, con­cretizada numa família peninsular do antigo regime, que ao longo da novela se afirma, se debate e sofre).

Dir-se-ia que o drama consiste na impossibilidade que as personagens experimentam de conciliação entre dois projectos de família: um, o projecto individual de raiz afectiva e moral, a família fundada sobre o amor escolha recíproca e cimentada pelo amor dádiva recíproca, amor que se propaga num permanente [47] fluxo e refluxo de geração para geração. Outro, do projecto social — a família como instituição jurídica, como garantia da continui­dade de direitos e deveres, e da solidariedade de interesses —materiais ou morais — que importa defender frente ao mundo. Em vários momentos da novela vemos aflorar a custo o primeiro desses projectos, para logo ceder, incapaz de se afirmar ante as exigências do segundo.

É por isso que na Amor de Perdição a Casa, esvaziada do seu sentido de amor, tornada simples instituição, suporte do nome e dos direitos e deveres que ele arrasta, impende sobre os seus moradores, até os esmagar.

Teresa e Simão conhecem-se e amam-se à janela das suas respectivas casas. Esta localização no espaço físico comporia um significado que a transcende: emoldurados nas suas janelas, os enamorados aparecem já um diante do outro inseridos na Casa, isto é, vinculados no compromisso familiar a que em vão tentarão eximir-se.

Quando, depois de ter estado preso em Coimbra por jacobinismo, Simão regressa a Viseu, o pai, irado, ameaça expulsá-lo de casa; e durante meses proíbe-o de tomar lugar à mesa comum. Por seu lado o pai de Teresa, ao descobrir o idílio proibido, fe­cha-a no quarto, ameaçando mandá-la dali para outro onde não volte a ver o sol. As punições que a família impõe oscilam entre os dois extremos: encerrar em casa (na casa, teia de interesses e compromissos), expulsar de casa (da casa, refúgio, intimidade, ninho).

Porque são essas as duas faces da Casa, uma exterior, outra interior, e na novela tão inconciliáveis que impossibilitam toda a vida de família e fazem dos protagonistas órfãos de pais vivos. No Amor de Perdição, a Casa oprime ou repete; não conforta nem ampara. É no fundo a expressão concreta de uma família que não se fundou no amor recíproco (D. Rita, mãe de Simão, logo ao casar rejeitara com horror e desprezo habitar a decrépito casa solarengo da família do marido — que ela não amava; e depois, duas vezes no decorrer da história, ameaça abandonar casa, marido e filhos, e regressar a Lisboa).

E como, antes de ser lareira de afectos domésticos ou suporte [48] da instituição jurídica, a casa é no inconsciente do homem o espaço que ele espera talhar e reservar no mundo para o construir à sua dimensão, o prolongamento do seio materno que foi refúgio pré-natal, a estabilidade de um solo e de um tecto que circunscre­vem a vida, como a casa é a ilusão de uma posse por ocupação, e assim se assimila obscuramente à posse mútua do homem e da mulher, que só na casa parece consumar-se em humana plenitude — os amorosos da novela, esmagados primeiro, rejeitados depois pelas suas casas de família. constroem uma casa de sonho, para a qual tendem, em busca do espaço afectivo que nunca tiveram ou perderam. “Estou vendo a casinha que tu descrevias defronte de Coimbra, cercada de árvores, flores e aves...” escreve Teresa.

A essas vítimas da esmagadora casa instituição, resta-lhes, como última visão consoladora já nas névoas da agonia, essa casa do coração que não encontraram no mundo.

Da casa à cela — cela de convento, cela de prisão — o passo é curto. Teresa respira aliviada quando se vê encerrada no mos­teiro. A prisão torna-se mais dolorosa quando é a própria casa de família, a que devia ser lar. Com efeito, a casa fora para Teresa uma antecipação do convento onde ficaria reclusa; para Simão, um prolongamento do cativeiro de Coimbra (exclusão da mesa comum) ou uma preparação para o degredo (ameaça paterna de expulsão).

De maneira que é no fundo sempre a casa o espaço moral dominador. Conventos e prisões, mais não são do que as faces que a Casa assume, ao apoiar-se nas instituições.

Na parte final da novela, a acção estará contida, angustiada quase toda entre dois conventos e duas cadeias.

Dos conventos, um é o antro grotescamente pintado de corrupção e hipocrisia. Camilo não conteve a sua veia de anti­clericalismo galhofeiro, popularizante, e inseriu um pouco abusivamente nesta novela densa e breve de amor e morte esse quadro excessivo em que a intenção critica se degrada por vezes em pura chalaça. Temos a impressão de que, mesmo com toda a repugnân­cia e desgosto que esse convento lhe causa e apesar da ferocidade com que para o fim é guardada. Teresa sofre menos ali: é que a pintura jocosa do ambiente distrai o narrador, o leitor e a própria [49] personagem, do drama passional em que todos estavam empenhados. O convento de Monchique no Porto, para onde a protagonista é transferida por medida de precaução e onde virá a morrer, esse, é suficientemente austero e piedoso para cenário condigno de uma tragédia: a agonia e a morte de Teresa recebem ali o halo de melancólica poesia cristã que convém à figura da jovem mártir.

Como duas tábuas contrastantes de um díptico, os dois con­ventos opõem-se e completam-se: de um lado, o caretear grotesco de freiras devassas e capelães brejeiros; do outro, os rostos mace­rados e piedosos das santas mulheres que choram e rezam com Teresa. Uma vez mais em Camilo a veia satírica e a veia lírico-dramática se entremeiam, revelando no gosto dos contrastes a visão antitética da realidade humana.

Note-se que o primeiro convento, com o seu clima de vício e de hipocrisia, vai afinal prestar-se a corroborar com grosseira vio­lência a tirania familiar representada por Tadeu de Albuquerque. Vista deste ângulo, a pintura detidamente depreciativa e achinca­lhante desse ambiente conventual justifica-se melhor na economia da novela: o romancista desafoga assim a sua animosidade contra uma instituição que, desfigurando a missão autêntica que lhe compete, se presta servilmente a cumprir a missão odienta que o mundo lhe impõe.

Só no segundo convento, o de Monchique, vai revelar-se o sentido religioso da vida, a clareira de céu que ilumina a espaços este mundo cerrado e tenebroso de paixões humanas onde se desenvolve a novela.

Encerrada — foi essa a punição que a Casa lhe impôs — Teresa em Monchique, não é maltratada nem segregada: antes pelo con­trário, é aliciada, absorvida pela instituição que em principio colaborava na oposição ao seu sonho de amor, e isto até ao ponto de não querer depois deixar o convento para onde entrara for­çada. A solicitude e as orações das piedosas freiras de Monchique — entre as quais, significativamente, se conta uma tia de Teresa, a abadessa — acompanhando a protagonista até ao fim representam a força profunda de assimilação e de recuperação exercida pela Casa sobre o membro rebelde, que acaba por integrar-se, sublimando a sua dor e a sua revolta numa esperança de eternidade.

[50] Teresa fica aparentemente reduzida à obediência, esmagada pela tutela do pai que a encerrou: mas na realidade ela encontrou nesse encerramento uma nova forma de libertação, a libertação adiada que a religião lhe propõe. Tadeu de Albuquerque vê, paradoxalmente, escapar-lhe afilha rebelde, liberta pelo próprio cativeiro que ele lhe impôs: “Separam-nos esses ferros a que meu pai se encosta...”diz Teresa.

Assim o projecto de Casa vínculo terreno de gerações. lugar onde se exerce o direito patriarcal — o projecto de casa instituição que Tadeu de Albuquerque ferozmente defende —, se vai gorar ante esse Outro projecto de casa que a religião de Cristo propõe ao homem, submetendo-o à disciplina de uma Igreja e às normas de um código moral, mortificando-o como ser terreno para o glorifi­car como ser de transcendência, integrando-o enfim num corpo místico onde o eu se perde para se encontrar. Confortada com os sacramentos, amparada pela caridade fraterna das religiosas, Teresa morre pois liberta da Casa na sua dimensão biológica, jurídica, meramente humana — e encerrada, integrada na Casa que é a Igreja, espaço espiritual do homem a caminho do Céu.

Este processo de integração não porém uniforme e linear: as lutas e recaídas de Teresa, partilhada entre o seu projecto de felicidade individual e a solução transcendente que a Casa, agora na sua dimensão espiritual, lhe apresenta como última forma de submissão, encontram-se bem expressas em muitos passas. Aliás, a sua obstinação em ficar no convento é secretamente alimentada pela certeza de que Simão se encontra perto. As dúvidas e interrogações do seu espírito atormentado. (veja-se o diálogo com o capelão, relatado no cap. XIII “Mas a esperança do Céu, sem ele!... Que é o Céu, meu Deus?”), toldando o quadro seráfico da resignação e do holocausto, dão afinal à personagem de Teresa aquela densidade humana que lhe assegura a vida da arte.

Se o convento consegue assim absorver e recuperar para um ideal colectivo o eu de Teresa — pelo menos em parte — já o mesmo se não dá com a cadeia onde Simão vai expiar o seu crime. Também a ele a Casa pretende encerrá-lo: mas, na sua forma de instituição punitiva — de prisão —, a Casa não tem agora recur­sos para recuperar o membro rebelde. Em volta de Simão preso [51] faz-se um temeroso vazio. Ao contrário dos conventos, povoados de presenças humanas repelentes ou caridosas, as cadeias — primeiro a de Viseu, depois a do Porto — parecem lugares deser­tos, onde o vulto do herói se desenha solitário; nada sabemos dos que os rodeiam, não o vemos trocar uma palavra com os outros presos, ou com o carcereiro. O auxílio moral e material que recebe no cárcere vem-lhe de fora — do ferrador e de Mariana. A prisão nada lhe dá: é apenas a medida provisória que precede e prepara a rejeição, única punição adequada à rebeldia de Simão, que activa e agressiva, enquanto a de Teresa se traduz numa silenciosa resistência. Com efeito, a sociedade, através das suas leis. pronuncia-se sempre pela solução de repelir de si, expulsar o temerário transgressor das suas normas: primeiro a morte, depois o degredo, duas formas de eliminar o membro irrecuperável. E curiosamente, numa simetria quase perfeita, enquanto Teresa aceita o encerramento a que a Casa a condenara, Simão assume, colabora até na expulsão que a Casa lhe decreta. Teresa recusara sair do convento. Simão recusa apelar da sentença de enforca­mento e depois, quando o degredo lhe é comutado em dez anos de cárcere, recusa ainda uma vez e prefere o degredo — de ambas as vezes a rejeição é o destino que ele parece sentir como seu.

Num caso como noutro, o modo como os protagonistas rea­gem ao espaço que os condiciona — a Casa — e ao castigo queda lhes impõem permite-nos reconhecer, sob a aparente simplicidade das personagens, a sua real complexidade.

Muitas vezes a crítica tem insistido sobre a uniformidade e até pobreza de vida interior nas personagens da novela camiliana. Para esse facto, contribui a brevidade e rapidez na sucessão dos episódios, o movimento narrativo utilizado, que é muitas vezes o sumário, isto é, a simples noticia resumida dos acontecimentos, ou a cena — actualização e dramatização dos sucessos perante o leitor. É em forma de sumário que temos notícia dá súbita paixão nascida entre os protagonistas; é sob a forma de cena, semelhante a uma representação teatral ou sequência cinematográfico, que se apresenta, por exemplo, a espera feita a Simão, a morte de Balta­sar Coutinho, etc. O que escasseia no texto é a descrição, enten­dendo descrição não apenas como representação verbal de figura [52] e objectos, mais ou menos estática, mas também como apresentação detida e minuciosa de factos e situações, acompanhando a sua evolução no tempo, ou analisando-os sob diversos ângulos.

A escassez deste movimento narrativo, mais próprio do romance do que da novela, tem contribuído para o juízo tão generalizado da simplicidade e escassez de vida interior nas personagens do Amor de Perdição.

O que por outro lado as torna aparentemente simples é o facto de elas viverem todas, no breve espaço da história, dominadas por certas obsessões, sentimentos ou atitudes em que se obstinam: só a essa luz elas são vistas. E, como no teatro, quase só são surpreen­didas nos momentos altos ou tensos da sua actuação, descurando o narrador as análises e aprofundamentos do carácter de que as acções narradas aparecem como afloramento flagrante.

A partir do momento em que a acção começa, — isto é, a partir do enamoramento — nada mais ou pouco mais saberemos do miúdo acontecer da vida das personagens. Quanto a Teresa e Simão, só teremos notícia do seu amor e da luta que travam para o defender; Domingos Botelho, vê-lo-emos desde então obcecado pelo prestígio de chefe de família posto em causa, e sobretudo da sua integridade de magistrado, que o ofusca; Tadeu de Albuquerque não viverá sendo para a oposição aos amantes, enraizada no ódio por Domingos Botelho; João da Cruz entra e sai da novela fiel à sua gratidão e ao seu amor de pai; Mariana é talvez a mais absorvida e fascinada — até ao suicídio — por um fito único, o amor a Simão que determina todos os seus movimentos na novela; e assim por diante.

A narrativa, norteada pela intenção de relatar um jogo cruel de paixões exacerbadas, descurou pois as longas pausas de análise ou explicação de motivações psicológicas complexas. Mas isso não significa, pelo menos no caso dos dois protagonistas, pobreza interior ou redução esquemática.

Já vimos como Teresa, longe de ser a convencional mártir de amor definhada sem revolta ou a imaterial virgem cristã que se desprende aladamente da terra sem lastro de paixão ou amargura, e uma alma trabalhada de rapariga em flor que o sentimento amadureceu, que lutou com as suas pobres armas, que espera e [53] desespera alternadamente, que crê e duvida com angústia.

Mas é sobretudo em Simão que o lugar-comum da simplici­dade se desacredita. Simão é uma personagem cuja complexidade pode talvez explicar-se por motivos que diríamos genéticos. Isto é, trata-se de um ser de ficção para o qual concorreram diversos factores: o que o autor sabia sobre a existência histórica de seu tio Simão Botelha; a experiência autobiográfica de um amor perse­guido e expiado; elementos literários, componentes típicas do herói romântico; e finalmente a intuição da realidade humana, nem sempre consciente mas quase sempre aguda e certeira em Camilo.

Ao arruaceiro perigoso e meio louco de que a tradição familiar e os documentos conservavam notícia, Camilo juntou a sua vivên­cia de apaixonado ardente, de alma de poeta, de inconformista ante a sociedade, de espírito torturado por uma incapacidade de crer sem sombras; deu-lhe, da tradição romântica, o idealismo estreme, que vai desprezando progressivamente todas as conside­rações do bom senso burguês — interesse, prudência, manha, até as preocupações da sobrevivência material, em nome de um sen­tido da honra que é a mais exaltada forma de individualismo. E da fusão de todos esses elementos, conseguida pela sua genial intuição do humano, fez, quisesse ou não, uma figura exemplar e quase um símbolo do Adolescente.

Com efeito, o que parece trabalhar Simão, motivá-lo, dar-lhe unidade e força até ao fim da novela, é o radicalismo juvenil na busca do absoluto, a incapacidade de pactuar com o mundo organizado e mesquinho dos adultos. A força instintiva e estuante que o habita canaliza-se bem cedo para uma ideologia extremista. que visa arrasar os fundamentos da sociedade para tudo recome­çar de novo — como só aos dezasseis anos se planeia. O encontro com Teresa vem dar um novo rumo a essa busca do absoluto: o primeiro amor de Simão terá de ser o único, o supremo, não admitirá compromissos nem aceitará manchar-se em expedientes banais, porque tem a pureza exigente de um culto. Quando os primeiros obstáculos surgem, o jovem arranca ainda desse amora coragem de esperar, mas na acção e no sonho, como é próprio dos seus anos: a glória alcançada pelo estudo aparece-lhe como [54] coro|lário e preço digno do amor de Teresa (que assim, à maneira do cavaleiro medieval, ele terá de servir para merecer). Mas afigura de Baltasar Coutinho, interpondo-se entre o jovem impetuoso e o seu projecto de amor, desencadeia de novo a vaga de violência comida: a paixão do absoluto vai arrastá-lo, impedindo-o de fazer concessões, de acatar conselhos de prudência, fascinando-o fatalmente. Daí até ao fim, vê-lo-emos caminhar de recusa em recusa, obcecado por uma ideia de honra que é, no fundo, o absoluto do eu. A esse novo absoluto sacrificará tudo: o respeito da vida alheia, a liberdade, as esperanças do Céu e da terra, a própria vida, e até o amor de Teresa.

Simão é, um pouco como a Antígona de Sófocles mas em sentido bem diverso, o protesto do jovem que se recusa a pactuar com a ordem iníqua e a renegar-se a si mesmo. (Os seus diálogos com João da Cruz, encarnação do sadio e sólido, embora instin­tivo e selvagem bom senso, são exemplares neste aspecto.) Simão recusa-se a envelhecer, a aviltar-se.

Solitário — amparado apenas pelo amor de Mariana, que não desejou — ele caminhará ao encontro da morte, sem família, “sem patrono, sem testemunhas”.

A ânsia de viver que nele irrompe ao fim de longos meses de cárcere sob a ameaça da forca não é mais que a instintiva reacção efémera da sua juventude esmagada: mas logo que, comutada a pena de morte, lhe é dado escolher entre o prolongamento da prisão ou a partida para o degredo, Simão rejeitará a proposta de aviltamento e de esperança e optará, num acto desesperado, pelo degredo para onde parte, decidido a morrer.

A morte — para quem não consegue transferir a sua esperança para a eternidade — é a única forma de preservar a integridade do eu, libertando-o do jugo do mundo que em vão se encarniçou por aviltá-lo. A morte é, a partir de certo momento, o grande absoluto que Simão persegue, a estrela fatal que o guia, e que vai derramar sobre todos os que o seguem a sua luz sinistra.

O Amor de Perdição tem assim a dimensão de um livro de adolescência, antes que a adolescência passasse a ser na literatura objecto de análises e estudos; vaga de sentimento que se avoluma e cresce, e vai morrer antes que a morna calmaria da vida a desfaça, [55] é sobretudo a história de um jovem que se perdeu (e este se assume todo o seu peso de reflexo) na busca de um absoluto que a vida não dá. Crime e loucura, pundonor exaltado que é ainda preconceito de casta, tudo isso tem sido considerado pela crítica o motor da acção desta novela, encarnado em Simão Botelho. Mas não podemos esquecer que o autor chorou nela sobretudo uma juventude que se perdeu.




Texto 111

DEUS, João de. “A vida”(elegia). In: Campo de Flores: poesias lyricas completas. 4. ed. Lisboa: Bertrand, s. d. Tomo I, p. 203-212.112
1   ...   13   14   15   16   17   18   19   20   ...   29


Verilənlər bazası müəlliflik hüququ ilə müdafiə olunur ©atelim.com 2016
rəhbərliyinə müraciət