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[203] A José A. S. R. de Castro


Cosi trapassa, al trapassar d’un giorno,

Della vita mortale il fiore e ’l verde,

Nè, perchè faccia indietro april ritorno,

Si rinflora ella mai, nè si rinverde.113


TASSO.
Foi-se-me pouco a pouco amortecendo

A luz que nesta vida me guiava,

Olhos fitos na qual até contava

Ir os degraus do túmulo descendo.


Em se ela anuviando, em a não vendo,

Já se me a luz de tudo anuviava;

Despontava ela apenas, despontava

Logo em minha alma a luz que ia perdendo.

[204] Alma gémea da minha, e ingénua e pura

Como os anjos do céu (se o não sonharam...)

quis mostrar-me que o bem bem pouco dura!


Não sei se me voou, se ma levaram;

Nem saiba eu nunca a minha desventura

Contar aos que inda em vida não choraram ...

Ah! quando no seu colo reclinado,

Colo mais puro e cândido que arminho,

Como abelha na flor do rosmaninho

Osculava seu lábio perfumado;
Quando à luz dos seus olhos (que era vê-los,

E enfeitiçar-se a alma em graça tanta!)

Lia na sua boca a Bíblia santa

Escrita em letra cor dos seus cabelos;


Quando a sua mãozinha pondo um dedo

Em seus lábios de rosa pouco aberta,

Como tímida pomba sempre alerta,

Me impunha ora silêncio, ora segredo;


Quando, como a alvéola, delicada

E linda como a flor que haja mais linda,

Passava como o cisne, ou como ainda

Antes do sol raiar nuvem doirada;


[205] Quando em bálsamo de alma piedosa

Ungia as mãos da súplice indigência,

Como a nuvem nas mãos da Providência

Uma lágrima estila em flor sequiosa;


Quando a cruz do colar do seu pescoço

Estendendo-me os braços, como estende

O símbolo de amor que as almas prende,

Me dizia... o que às mais dizer não ouço;


Quando, se negra nuvem me espalhava

Por sobre o coração algum desgosto,

Conchegando-me ao seu cândido rosto

No perfume de um riso a dissipava;


Quando o oiro da trança aos ventos dando

E a neve de seu colo e seu vestido,

Pomba que do seu par se ia perdido,

Já. de longe lhe ouvia o peito arfando;


Quando o anel da boca luzidia,

Vermelha como a rosa cheia de água,

Em beijos à saudade abrindo a mágoa,

Mil rosas pela face me esparzia;


Tinha o céu da minha alma as sete cores,

Valia-me este mundo um paraíso,

Distilava-me a alma um doce riso,

Debaixo de meus pés brotavam flores!


[206] Deus era inda meu pai; e em quanto pude

Li o seu nome em tudo quanto existe,

No campo em flor, na praia anda e triste,

No céu, no mar, na terra e... na virtude!


Virtude! Que é mais que um nome

Essa voz que em ar se esvai,

Se um riso que ao lábio assome

Numa lágrima nos cai!


Que és, virtude, se de luto

Nos vestes o coração?

És a blasfémia de Bruto:

Não és mais que um nome vão!


Abre a flor à luz, que a enleva,

Seu cálix cheio de amor,

E o sol nasce, passa e leva

Consigo perfume e flor!


Que é desses cabelos de oiro

Do mais subido quilate,

Desses lábios escarlate,

Meu tesoiro!


Que é desse hálito que ainda

O coração me perfuma!


[207] Que é desse colo de espuma,

Pomba linda!


Que é duma flor da grinalda

Dos teus doirados cabelos!

Desses olhos, quero vê-los,

Esmeralda!


Que é dessa franja comprida

Daquele xaile mais leve

Do que a nuvem cor de neve,

Margarida!


Que é dessa alma que me deste,

Dum sorriso, um só que fosse,

Da tua boca tão doce,

Flor celeste!


Tua cabeça que é dela,

A tua cabeça de oiro,

Minha pomba! meu tesoiro!

Minha estrela!


De dia a estreita de alva empalidece;

E a luz do dia eterno te lia ferido!

Em teu lânguido olhar adormecido

Nunca me um dia em vida amanhecesse!


[208] Foste a concha da praia! A flor parece

Mais ditosa que tu! Quem te lia partido,

Meti cálix de cristal onde hei bebido

Os néctares do céu... se um céu houvesse!


Fonte pura das lágrimas que choro,

Quem tão menina e moça desmanchado

Te há pelas nuvens os cabelos de oiro!
Some-te, vela de baixei quebrado!

Some-te, voa, apaga-te, meteoro!

É só mais neste mundo um desgraçado!
E as desgraças podia prevê-las

Quem a terra sustenta no ar,

Quem sustenta no ar as estrelas,

Quem levanta às estrelas o mar.


Deus podia prever a desgraça,

Deus podia prever e não quis!

E não quis, não... se a nuvem que passa

Também pôde chamar-se infeliz!


A vida é o dia de hoje,

A vida é ai que mal soa,

A vida é sombra que foge,

A vida é nuvem que voa;

[209] A vida é sonho tão leve

Que se desfaz como a neve

E como o fumo se esvai:

A vida dura um momento,

Mais leve que o pensamento,

A vida leva-a o vento,

A vida é folha que cai!
A vida é flor na corrente,

A vida é sopro suave,

A vida é estrela cadente,

Voa mais leve que a ave:

Nuvem que o vento nos ares,

Onda que o vento nos mares

Uma após outra lançou,

A vida — pena caída

Da asa de ave ferida —

De vale em vale impelida,

A vida o vento a levou!
Como em sonhos o anjo que me afaga

Leva na trança os lírios que lhe pus,

E a luz quando se apaga

Leva aos olhos a luz!


Levou sim, como a folha que desprende

De uma flor delicada o vento sul,

E a estrela que se estende

Nessa abobada azul;


[210] Como os ávidos olhos de um amante

Levam consigo a luz de um terno olhar,

E o vento do levante

Leva a onda do mar!


Como o tenro filhinho quando expira

Leva o beijo dos lábios maternais,

E à alma que suspira

O vento leva os ais!


Ou como leva ao colo a mãe seu filho,

E as azas leva a pomba que voou,

E o sol leva o seu brilho...

O vento ma levou!


E Deus, tu és piedoso,

Senhor! és Deus e pai!

E ao filho desditoso

Não ouves pois um ai!

Estrelas deste aos ares,

Dás pérolas aos mares,

Ao campo dás a flor,

Frescura dás às fontes,

O lírio dás aos montes,

E roubas-ma, Senhor!


Ah! quando numa vista o mundo abranjo,

Estendo os braços e, palpando o mundo,


[211] O céu, a terra e o mar vejo a meus pés,

Buscando em vão a imagem do meu anjo,

Soletro à froixa luz de um moribundo

Em tudo só: Talvez!...


Talvez! — é hoje a Bíblia, o livro aberto

Que eu só ponho ante mim nas rochas quando

Vou pelo mundo ver se a posso ver;

E onde, como a palmeira do deserto,

Apenas vejo aos pés inquieta ondeando

A sombra do meu ser!


Meu ser. .. voou na asa da águia negra

Que, levando-a, só não levou consigo

Desta alma aquele amor!

E quando a luz do sol o mundo alegra,

Crisálida nocturna a sós commigo

Abraço a minha dor!


Dor inútil! Se a flor que ao céu envia

Seus bálsamos se esfolha, e tu no espaço

Achas depois seus átomos subtis,

Inda hás-de ouvir a voz que ouviste um dia...

Como a sua Leonor inda ouve o Tasso...

Dante, a sua Beatriz!


— Nunca! responde a folha que o outono,

Da haste que a sustinha a mão abrindo,

Ao vento confiou;
[212] — Nunca! responde a campa onde do sono

E quem talvez sonhava um sonho lindo,

Um dia despertou!
— Nunca! responde o aí que o lábio vibra;

— Nunca! responde a rosa que na face

Um dia emurcheceu:

E a onda que um momento se equilibra

Em quanto diz às mais: Deixai que eu passe!

E passou e... morreu!


[47] AROMA E AVE

Eu digo, quando assoma

O astro criador:

Deus me fizesse aroma

De alguma pobre flor!

E digo, quando passa

Uma ave pelo ar:

Deus me fizesse a graça

De asas para voar!
Aroma da janela

Me evaporava eu,

Me respirava ela

E me elevava ao céu!


E quem, se eu fosse uma ave,

Me havia de privar

A mim da luz suave

Daquele seu olhar?
[83] ADORAÇÃO

A Fernando Leal

Vi o teu rosto lindo,

Esse rosto sem par;

Contemplei-o de longe, mudo e quedo,

Como quem volta de áspero degredo

E vê ao ar subindo

O fumo do seu lar!


Vi esse olhar tocante,

De um fluido sem igual;

Suave como lâmpada sagrada,

Bem-vindo como a luz da madrugada

Que rompe ao navegante

Depois do temporal!

[84] Vi esse corpo de ave,

Que parece que vai

Levado como o Sol ou como a Lua,

Sem encontrar beleza igual à sua,

Majestoso e suave,

Que surpreende e atrai!

Atrai, e não me atrevo

A contemplá-lo bem;

Porque espalha o teu rosto uma luz santa,

Uma luz que me prende e que me encanta

Naquele santo enlevo

De um filho em sua mãe!

Tremo, apenas pressinto

A tua aparição;

E, se me aproximasse mais, bastava

Pôr os olhos nos teus, ajoelhava!

Não é amor que eu sinto,

É uma adoração!

Que as asas providentes

Do anjo tutelar

Te abriguem sempre à sua sombra pura!

A mim basta-me só esta ventura

De ver que me consentes

Olhar de longe... olhar!

[58] ESTRELA


Estrela que me nasceste

Quando a vista mal te alcança

Nessa abóbada celeste,

Onde a nossa alma descansa

A sua última esperança...

Estrela que me nasceste

Quando a vista mal te alcança!


Antes nascesses mais cedo,

Estrela da madrugada,

E não já noite cerrada...

Que até no céu mete medo

Ver essa estrela isolada...

Antes nascesses mais cedo.

Estrela da madrugada!

[45] ?

A M. Duarte de Almeida


Não sei o que há de vago,

De incoercível, puro,

No vôo em que divago

À tua busca, amor!

No vôo em que procuro

O bálsamo, o aroma,

Que se uma forma toma

É de impalpável flor!


Oh como te eu aspiro

Na ventania agreste!

Oh como te eu admiro

Nas solidões do mar!

Quando o azul celeste

Descansa nessas águas,

Como nas minhas mágoas

Descansa o teu olhar!


[46] Que plácida harmonia

Então a pouco e pouco

Me eleva a fantasia

A novas regiões...

Dando-me ao uivo rouco

Do mar nessas cavernas

O timbre das mais temas

E pias orações!


Parece-me este mundo

Todo um imenso templo!

O mar já não tem fundo

E não tem fundo o céu!

E em tudo o que contemplo,

O que diviso em tudo,

És tu... esse olhar mudo...

O mundo és tu... e eu!

[54] TRISTEZAS

A Sebastião Formosinho


Na marcha da vida

Que vai a voar

Por essa descida

Caminho do mar,


Caminho da morte

Que me há de arrancar

O grito mais forte

Que eu posso exalar;


O ai da partida

Da pátria, do lar,

Dos meus e da vida,

Da terra e do ar;


Já perto da onda

Que me há de tragar,

Embora, se esconda

No fundo do mar;


[55] De noite e de dia

Me alveja no ar

fumo que eu via

Subir do meu lar!


Que sonhos doirados

Me estão a lembrar!

Mas tempos passados

Não podem voltar!


Carreira da vida,

Que vás a voar

Por esta descida,

Vai mais devagar;


Que eu vou deste mundo,

Talvez, descansar,

E nunca do fundo

Dos mares voltar!...


[151] VENTURA
O sol na marcha luminosa voa

Lançando à terra majestoso olhar;

Passa cantando quem o ar povoa,

E a praia abraça venturoso o mar.


No bosque o vento doce canto entoa,

Ouvem-se em coro as multidões cantar;

Que a um só triste o coração lhe doa,

Que eu seja o único a sofrer, penar!


Por ti, saudade... de quem vai tão perto

E a quem dos olhos e das mãos perdi

Neste tão ermo, lúgubre deserto!
Por ti, ventura... que uma vez senti;

Por ti que às vezes a meu peito aperto

E... o peito aperto sem te ver a ti!

[258] ÚLTIMO ADEUS


Fique em silêncio eterno a minha lira;

Vai eflúvio de Deus! Deus te bem fade;

Nesta alma em teu lugar fica a saudade,

Se a essência sobrevive à flor que expira.


Dizer-te adeus não pude; quando ocorre

Tal voz ao lábio, o lábio empalidece,

Como a nota da lira nos falece

Ante a lua que cai, e o sol que morre;


Ante o sopro que varre o cedro e o vime,

Ante o sublime aspecto do oceano,

Ante a esposa do Mártir sobre-humano,

Ante tudo o que é grande e que é sublime.


Embora: quando a lâmpada crepita,

Já falta de óleo lânguida esvoaça;

A nuvem estala, ruge a onda, e passa...

Guarda silêncio a abóbada infinita.




Texto 112

SILVEIRA, Francisco Maciel. Preliminares. In: A Literatura Portuguesa em Perspectiva: Romantismo/Realismo. São Paulo: Atlas, 1994. v. 3, p. 97-104.

[97] PRELIMINARES


1. O termo “realismo” designa, originalmente, uma atitude epistemoló­gica segundo a qual há coisas, fora e independentes da consciência cognos­cente114. Neste sentido, desde sempre houve ao longo da histórica das artes uma atitude “realista” que, assentada no verismo e no naturismo, procurou captar e retratar o mais fielmente possível os dados concretos, palpáveis e visíveis da realidade circundante. Quando tal atitude gnosiológica se tornou um progra­ma estético, conscientemente embasado em postulados científicos e filosófi­cos, estava criado um movimento artístico que se denominou Realismo. Isso ocorreu nos alvores da segunda metade do século XIX, quadra histórica em que se presencia um extraordinário avanço das ciências físicas e biológicas, a par do nascimento da Sociologia.

Cientismo — eis a palavra-chave do período. A crença inabalável nas ciências, vistas como únicas capazes de deslindar o Universo e a realidade, patenteia-se nos escritos de Augusto Comte (1798-1857) e Ernest Renan (1832-1892). O primeiro, com seu Curso de filosofia positiva (seis volumes publicados entre 1830 e 1842), estatui o Positivismo, sistema filosófico-científico que, entronizando a Sociologia como disciplina matriz, objetiva aplicar às ciências sociais princípios analíticos equivalentes aos das ciências naturais. Rejeitando a Teologia e a Metafísica, que, não sendo ciências positivas, eram desprovidas do instrumental necessário para a análise, experimentação e sistematização da realidade, Comte ambicionava criar uma “física social” — o estudo científico das leis fundamentais próprias dos fenômenos sociais. O Futuro da ciência, escrita em 1848 por Ernest Renan, irmana-se ao Positivismo comtiano, na medida em que entoa um hino ao cientismo, única atitude possível para o desenvolvimento da humanidade.

[98] A matriz positivista do pensamento de Comte estende-se para os campos artístico e sociopolítico-econômico. Hipólito Taine (1828-1893) propõe em História da literatura inglesa (1864) e Filosofia da arte (1865-1869) a teoria deter­minista de que toda obra de arte sofre o influxo da raça, do meio e do momento. Pierre Proudhon (1809-1865), a proclamar que a propriedade é um roubo e que somente o trabalho é produtivo, planta as sementes da doutrina socialista em Filosofia do progresso (1835), Princípios de organização política (1843), Sistemas das contradições econômicas (1846) e Teoria da propriedade (1866), sonhando com uma sociedade mutualista, no plano econômico-social, e federalista, no político. O avanço da medicina e das ciências biológicas desponta em obras capitais, como A origem das espécies (1859), de Charles Darwin (1809-1882), e Introdução ao estudo da medicina experimental (1865), de Claude Bernard (1813-1878).
2. Este afã cientificista haveria de repercutir nas artes, destronando o subjetivismo, a idealidade, a imaginação — apanágios do Romantismo. Não estranha,. pois, o surgimento de uma corrente artística que, opondo-se ao idealismo etéreo dos românticos, se arvora “realista”, preocupada em retratar a vida como ela é, buscando as causas determinantes das mazelas humanas e sociais.

As primeiras manifestações do realismo enquanto movimento estético vêm da França115. Já na década de 1830 o termo “realismo”, associado à idéia de um estilo voltado para a precisão descritiva de pormenores, começara a circular. Por volta de 1840 alguns críticos ligavam Honoré de Balzac (1799-1850) a uma “escola realista”, graças a sua pretensão em A comédia humana de ser um historiador da sociedade contemporânea, a retratar-lhe os costumes, além de enfocar o grupo social segundo espécies zoológicas.

Data dos anos 50 a fixação definitiva do rótulo “realismo”, associado agora a uma corrente estética programaticamente contrária ao Romantismo. Cabe a primazia a Gustave Courbet (1819-1877) que, ao pôr à venda quarenta quadros e quatro desenhos sob o título “Realismo — Exposição”, vinha consolidar tendência ensaiada em duas telas — “Enterro em Ornans” e “As banhistas” —, respectivamente expostas em 1850 e 1853. Ao retratar aspectos cotidianos e banais da vida rural e burguesa, Gustave Courbet pretendia fazer o enterro do idealismo romântico. Mal recebidas pelo público e pela crítica acadêmica, suas telas encontraram em Champfleury, pseudônimo de Jules Hudson (1821-1888), um aliado e admirador. Este novelista, autor de Chien-Caillou (1847), publica a partir de 1850 artigos que, reunidos em 1857 sob o título Le Réalisme, [99] defendem a pintura de Courbet, sobre propugnar a inserção nas artes das classes mais baixas, o rigor da descrição e a impessoalidade do narrador. Com Champfleury o realismo começa a ganhar suporte teórico, consolidando-se como movimento literário em 1857, com a publicação de Madame Bovary, de Gustave Flaubert (1821-1881). Quando os avanços da medicina e da biologia são incorporados ao universo narrativo, fundamentando-lhe enfoque e teses, o Realismo transmuta-se em Naturalismo, corrente estética que se instala em 1867, na França, com Thérèse Raquin, de Émile Zola (1840-1902).

O cientismo que permeia o período repercute na visão que se tem então do mundo. Concebe-se a realidade segundo uma perspectiva materialista e mecanicista. De acordo com o monismo de Ernest Haeckel (1843-1919), o Cosmos derivaria de uma monera (elemento primeiro, substância em estado coloidal), submetida desde sua criação a um processo de constante evolução (evolucionismo, de Spencer e Darwin), obedecendo a um sistema de leis naturais absolutamente definidas. Só podendo compreendê-lo e interpretá-lo por meio cio conhecimento científico, o homem deveria partir da observação direta e do experimentalismo, impondo às descobertas um rigoroso exame crítico. De natureza exclusivamente material, determinada por leis científicas, a realidade não comportava especulações transcendentes, metafísicas ou idea­listas.

Segundo tal concepção de Cosmos, os realistas só podiam ser anti-sub­jetivistas, adeptos de um objetivismo que, conduzido pela razão e pelo cienti­ficismo, visava à busca de “verdades” impessoais e universais. Daí serem anti-românticos por excelência, contrários à sentimentalidade, à imaginação desregrada, ao egocentrismo, ao espiritualismo.

Dizendo-se contrários ao status quo, os realistas empunharam a literatura como arma de combate. Engajada, instrumento de reforma e ação social, a arte, compromissada, deveria estar a serviço das magnas causas, redentora do homem e da sociedade. A poesia, arvorando-se científica e revolucionária, assumiu tom panfletário e polêmico, numa grandiloqüência raivosa e iconoclasta de arautos de um novo mundo por vir. A ficção engendrou romances de tese, Ambicionando dar à literatura o estatuto de ciência, a narrativa tornou-se “experimental”116: voltada para a realidade sua coetânea, dissecava a sociedade considerada moribunda, ilustrando com os casos relatados teorias hauridas na ciência. Uma tese tornou-se constante na ficção do período: a de que o homem era produto passivo do meio, do momento, da herança.

Debitando a decadência social à monarquia117, à burguesia, à religião institucional, proclamavam-se as mais das vezes republicanos e/ou [100] socialis­|tas, sonhando com uma sociedade asséptica, depurada de mazelas, sem, contudo, perceberem que na utopia anelada estavam sendo mais românticos que os românticos. Ademais, obcecados pela convicção de que o Homem, a Natureza, o Universo, intimamente associados num todo orgânico, estavam submetidos aos mesmos princípios, leis e finalidade, não suspeitaram que tal concepção mecanicista e determinista da realidade inviabilizava todo e qual­quer projeto de reforma e redenção do que quer que fosse.

Os ingredientes acima arrolados são comuns ao Realismo e ao Natura­lismo. Contudo, um e outro movimento não se confundem. A começar pela cronologia. Relembre-se que, surgindo na França em 1867 com Thérèse Raquin, de Zola (em Portugal data de 1891, com O barão de Lavos, de Abel Botelho), o Naturalismo é posterior ao Realismo, inaugurado em França em 1857 com Madame Bovary (em Portugal, é de 1875 a publicação de O crime do padre Amaro, de Eça de Queirós). E mais: o Naturalismo desenvolve-se das entranhas do Realismo, levando às últimas conseqüências atitudes ali inscritas.

Talvez a grande distinção esteja no fato de que o Realismo enfoca o homem e as mazelas da civilização segundo uma perspectiva sociológica. Causas predominantemente educacionais e morais, gestadas num meio con­dicionante, determinam as ações no Realismo. Já o Naturalismo tende para uma visão biológico-patológica do homem. Distúrbios fisiológicos e nervosos, taras hereditárias, acordados em determinado momento pela ambiência dele­téria, condicionam as personagens do Naturalismo. Daí, no Naturalismo, serem comuns as patologias sociais: o ambiente enfermiço, agindo sobre naturezas doentias, gera misérias, adultérios, criminalidades, desvios sexuais, desequilíbrios psíquicos. Cirurgiões de teratologias, os naturalistas procuram enfocar seus casos de exceção, assumindo atitude impassível e amoral, consi­derada própria de um cientista que se aproxima das pústulas sociais: “Se ao médico pertence estudar as doenças físicas da humanidade, e, por meio do estudo e dos recursos da ciência, procurar as causas que as determinam, fazendo perceber ao vulgo essas causas e ensinando-o a precaver-se contra elas, ao escritor compete, sem dúvida, a autópsia dos males sociais, e, enter­rando fundo o bisturi, ir descobrir através das enganadoras aparências da derme setinosa e alva, o furúnculo pustuloso que sob ela se oculta”118. Desse ângulo, o Naturalismo é um Realismo a que se acrescentam imperiosas determinantes biológico-patológicas.

Resta salientar um último aspecto que norteará tanto a prosa como a poesia do período. Trata-se do esteticismo. Anti-românticos, poetas e prosa­dores desterram a inspiração, substituindo-a pelo labor artesanal do texto. A [101] preocupação de criar uma obra de arte bela em si mesma, bem estruturada, domina vates e ficcionistas. O romance, o conto, o poema, para além de abrigarem suas teses reformistas, surgem como fruto de um trabalho estético demorado e paciente, como se a beleza da forma e do estilo procurasse compensar a feiúra mesquinha dos conteúdos. Não estranha que realistas e naturalistas venham a ser grandes estilistas e cultores da língua. Tampouco causa estranheza que uma das correntes poéticas desse quadro histórico — o Parnasianismo — funde-se no esteticismo, numa arte-pela-arte que, ao cabo, nauseada com as pústulas sociais, venha a encastelar-se na beleza da forma.


3. Os anos de 1864 e 1865 foram decisivos para a implantação do Realismo em Portugal. 1864 assiste à publicação de Visão dos tempos e Tempes­tades sonoras, de Teófilo Braga, esforço de uma epopéia da humanidade inspirada no Positivismo de Augusto Comte. Em 1865, vem a lume Odes modernas, de Antero de Quental, à proclamar, em nota, “a missão revolucioná­ria da poesia”, entendida como “voz da Revolução” que haveria de sacudir a estagnação portuguesa. Os volumes de Antero e Teófilo vinham propor uma nova concepção poética, cujo embasamento filosófico-científico se revelava contrário à estética romântica, que, não obstante dessorada, tinha ainda seus cultores. Entre eles, o corifeu António Feliciano de Castilho (1800-1875), que, em posfácio a Poema da mocidade (também saído em 1865), de Pinheiro Chagas, vem em defesa do Romantismo, atacando “a afetação e a enfatuação” dos versos de Teófilo e Antero, além de pôr em dúvida o talento dos dois jovens poetas.

A resposta foi imediata: Antero revida às insinuações de Castilho num opúsculo intitulado “Bom-senso e bom gosto”, alardeando a “independência irreverente” da nova escola: “Mas é que a escola de Coimbra cometeu efetiva­mente alguma coisa pior do que um crime — cometeu uma grande falta: quis inovar. Ora, para as literaturas oficiais, para as reputações estabelecidas, mais criminoso do que manchar a verdade com a baba dos sofismas, do que envenenar com o erro as fontes do espírito público, do que pensar mal, do que escrever pessimamente, pior do que isto é essa falta de querer caminhar por si, de dizer e não repetir, de inventar e não de copiar.119 Na óptica de Antero, Castilho e seus apaniguados não passavam de estéreis metrificadores: “São apóstolos do dicionário e têm por evangelho um tratado de metrificação. Fazem da poesia o instrumento de suas vaidades. (...) Preferem imitar a inventar; e a imitar preferem ainda traduzir. Repetem o que está dito há mil anos, e fazem-nos duvidar se o espírito humano será uma estéril e constante [102] banalidade. São os enfeitadores das ninharias luzidias. (...) São os ídolos literários da multidão que mal sabe ler. São os filósofos da turba que nunca pensou”120. O Passando em revista o anacronismo classicizante da obra de Casti­lho, em tudo oposta ao ideal cientificista do “pensamento moderno”, Antero culmina sua arenga, dizendo que o respeito devido às cãs do velho poeta não o impede de desprezar-lhe a futilidade, a ignorância, a ausência de reflexão.

A troca de farpas gerou uma polêmica que, conhecida por “Bom-Senso e Bom Gosto” ou “Questão Coimbrã”, para além de inaugurar o movimento realista em Portugal, se estendeu pelos anos de 1865 e 1866. A refrega, a envolver os partidários de Antero e os de Castilho, representava, de fato, a contenda entre o Realismo incipiente e o Romantismo agonizante.

Vitoriosos, os anti-românticos e anticastilhistas voltaram à carga, reunin­do-se em 1868 no grupo do Cenáculo, instalado em casa de Jaime Batalha Reis. Aí, uma vez mais sob a liderança de Antero de Quental, os jovens contestatários (entre eles, Eça de Queirós, Oliveira Martins, Ramalho Ortigão, Salomão Sáraga) forjam suas idéias revolucionárias. Para 1871 programam uma série de conferências que, a serem proferidas no Cassino Lisbonense, visavam a conscientizar a Nação, acordando-a para as transformações socio­político-econômicas por que atravessava o resto da Europa. Intituladas Con­ferências Democráticas, constituir-se-iam numa tribuna que, ligando “Portugal com o movimento moderno” pretendia, em última instância, “agitar na opi­nião pública as grandes questões da Filosofia e da Ciência Moderna”, além de “estudar as condições da transformação política, econômica e religiosa da sociedade portuguesa.”121

Antero de Quental encarrega-se das duas primeiras conferências do ciclo. Em 22 de maio de 1871 discreteia acerca de O espírito das conferências: inserir Portugal no contexto europeu, fazendo-o acompanhar as novas ten­dências culturais do século. A 27 de maio, Antero aponta o Catolicismo do Concílio de Trento, o Absolutismo e as conquistas como as Causas da decadência dos povos peninsulares nos últimos três séculos.

Em 5 de junho, Augusto Seromenho examina A literatura portuguesa. Excetuadas a incipiência nacional da dramaturgia vicentina e a obra de Camões, nada de valor produzira a Literatura Portuguesa, carente de gosto e originalidade no romance, na poesia, no drama, no exercício da crítica. Para vencer a decadência das letras portuguesas, Seromenho aponta, sob a égide de Chateaubriand, o caminho do cristianismo, através do qual, tendo por base a moral e a aspiração para Deus, se poderia formar uma literatura nacional.

A quarta conferência — A literatura nova (o Realismo como nova expresso da arte) — proferiu-a Eça de Queirós em 6 de junho. Inspirado em Taine, Proudhon, Courbet e Flaubert, condena o Romantismo e defende seja o Realismo a expressão artística mais consentânea com os novos tempos. To­mando sua matéria na vida contemporânea, procedendo “pela experiência, pela fisiologia, ciência dos temperamentos e dos caracteres”122, o Realismo realizaria a anatomia da decadência social, tendo por fito a justiça, a verdade e a regeneração dos costumes.

Coube a Adolfo Coelho falar, na quinta conferência, acerca da questão do ensino. Apresentada em 19 de junho, a palestra primeiro trata da necessi­dade, formas, matéria e fim do ensino, para depois debruçar-se criticamente sobre a organização educacional do país. Deixando de parte a instrução primária, que seria tema doutra palestra, enfoca os ensinos secundário e superior, carentes de espírito científico, anquilosados no verbalismo e na falsa erudição, coarctados pelo obscurantismo católico. A reforma que propõe para o ensino far-se-ia através da liberdade do pensamento, o que se obteria no momento em que o Estado rompesse sua aliança com a religião institucional.

A sexta conferência, intitulada Os historiadores críticos de Jesus, a cargo de Salomão Sáraga, não chegou a realizar-se. Uma portaria do Marquês d’Ávila e de Bolama, datada de 26 de junho de 1871, proíbe o prosseguimento das conferências do Cassino Lisbonense, sob a alegação de ofenderem “clara e diretamente as leis do reino e o código fundamental da monarquia”, uma vez que expunham “e procuram sustentar doutrinas e proposições que atacam a religião e as instituições políticas do Estado”123.

Inútil o protesto redigido por Antero de Quental no mesmo dia 26 de junho, “em nome da liberdade de pensamento, da liberdade da palavra, da liberdade de reunião, bases de todo o direito público, únicas garantias da justiça social”124: as outras conferências programadas não vieram a público — O socialismo, por Batalha Reis, A república, por Antero de Quental, A instrução primária, por Adolfo Coelho, A dedução positiva da idéia democrática, por Augusto Fuschini.

A suspensão das conferências não conseguiu obstar à vaga revolucioná­ria por elas desencadeada. O espírito reformista ganhou adeptos, de modo que o ano de 1871 pode ser considerado chave para a implantação do Realismo em Portugal. Os anos subseqüentes até 1890 marcam o avanço progressivo do ideário realista e sua transmutação em Naturalismo. É o que se testemunha [104] pelo título de alguns dos textos doutrinários que vêm então a lume: Do realismo na arte (1877) e Estética naturalista (1885), de Júlio Lourenço Pinto (1842-1907); Júlio Dinis e o naturalismo (1884), de José António dos Reis Dâmaso (1850-1895); Do realismo na arte (5. ed. 1877) e Realismo (1880), de António José da Silva Pinto (1848-1891).

Não obstante vencedores, alguns com obra já reconhecida e consolidada, integrantes dessa geração de 70 voltam a reunir-se, em fins de 1887 e princípios de 1888, no grupo “Os vencidos da vida”. Confraternizando-se à roda de lautos banquetes, Eça de Queirós, Oliveira Martins, Guerra Junqueiro, o Conde de Ficalho, entre outros, comemoram melancolicamente os resultados da icono­clastia dos anos heróicos de 70. Entristecidos com a dúvida de que talvez nada tenham construído, entregam-se então ao culto patriótico do passado lusíada, querendo acordar as últimas fibras de uma Nação que viam imersa na mais apagada e vil tristeza.

Sob todos os títulos, o influxo sobre a arte portuguesa das novas idéias trazidas pela geração coimbrã foi tão grande que, entrada a primeira década do século XX, ainda se nota, no romance e no teatro, a sobrevida dos ingre­dientes realista e naturalista. Naturalistas temporões, como Abel Botelho e Alfredo Gallis, invadem o século XX com uma obra que, ainda obcecada pelo cientificismo, se opunha à vaguidade etérea do Simbolismo, introduzido em Portugal com a publicação de Oaristos, de Eugénio de Castro, em 1890.



Texto 113

COMTE, Auguste. Discurso preliminar sobre o espírito positivo. São Paulo: Martins Fontes, s. d. p. 41-47.

[41] O concurso espontâneo das diversas considerações gerais indicadas neste discurso basta agora para caracterizar aqui, em todos os aspectos principais, o verdadeiro espírito filosófico que, após uma lenta evolução preliminar, atinge hoje seu estado sistemático. Dada a evidente obrigação que temos doravante de qualificá-lo por uma curta denominação espe­cial tive de preferir aquela a que essa preparação universal proporcionou cada vez mais, durante os últimos três sécu­los a preciosa propriedade de resumir o melhor possível o conjunto de seus atributos fundamentais. Como todos os ter­mos vulgares assim elevados gradualmente à dignidade filosófica a palavra positivo apresenta em nossas línguas [42] ociden­|tais várias acepções distintas, mesmo descartando o sentido grosseiro que os espíritos mal-cultivados vinculam inicialmen­te a ela. Mas importa notar aqui que todos estes diversos sig­nificados convêm igualmente à nova filosofia geral, da qual indicam alternativamente diferentes propriedades caracterís­ticas; assim, esta aparente ambigüidade não trará mais ne­nhum inconveniente real. Cumprirá ver nisso, pelo contrá­rio, um dos principais exemplos da admirável condensação de preceitos que, nas populações avançadas, reúne numa úni­ca expressão usual vários atributos distintos, quando a razão pública conseguiu reconhecer sua ligação permanente.



Considerado primeiro em sua acepção mais antiga e mais comum, o termo positivo designa o real, em oposição ao qui­mérico; sob este aspecto, convém plenamente ao novo espí­rito filosófico, caracterizado assim segundo a sua dedicação constante às pesquisas realmente acessíveis à nossa inteligên­cia, com a exclusão permanente dos impenetráveis mistérios que eram a ocupação principal de sua infância. Num segun­do sentido, muito próximo do anterior, mas ainda assim dis­tinto, este termo fundamental indica o contraste do útil com o desnecessário; lembra então, em filosofia, a destinação ne­cessária de todas as nossas sãs especulações para a melhoria contínua de nossa verdadeira condição individual e coletiva, ao invés da vã satisfação de uma curiosidade estéril. Segun­do um terceiro significado usual, esta feliz expressão é fre­qüentemente empregada para qualificar a oposição entre a certeza e a indecisão; indica também a aptidão característica de tal filosofia para constituir espontaneamente a harmonia lógica no indivíduo e a comunhão espiritual na espécie in­teira, ao invés dessas dúvidas indefinidas e desses debates in­termináveis que devia suscitar o antigo regime mental. Uma quarta acepção comum, muito amiúde confundida com a an­terior, consiste em opor o preciso ao vago; este sentido lem­bra a tendência constante do verdadeiro espírito filosófico para obter em toda parte o grau de precisão compatível com a natureza dos fenômenos e conforme a exigência de nossas verdadeiras necessidades, ao passo que a antiga maneira de [43] filosofar levava necessariamente a opiniões vagas, só com­portando uma indispensável disciplina com base numa opres­são permanente, apoiada numa autoridade sobrenatural. Cumpre por fim notar especialmente uma quinta aplica­ção menos empregada que as outras, embora igualmente uni­versal, quando se usa a palavra positivo como o contrário de negativo. Nesse aspecto, indica uma das mais eminentes propriedades da verdadeira filosofia moderna, mostrando-a destinada sobretudo, por sua natureza, não a destruir, mas a organizar. Os quatro caracteres gerais que acabamos de lem­brar distinguem-na ao mesmo tempo de todos os modos pos­síveis, quer teológicos, quer metafísicos, próprios da filoso­fia inicial. Este último significado, indicando aliás uma ten­dência contínua do novo espírito filosófico, oferece hoje uma importância especial para caracterizar diretamente uma de suas principais diferenças, não mais em relação ao espírito teológico, que por muito tempo foi orgânico, mas em rela­ção ao espírito metafísico propriamente dito, que nunca con­seguiu ser mais do que crítico. De fato, qualquer que tenha sido a ação dissolvente da ciência real, esta influência sem­pre foi nela puramente indireta e secundária; seu próprio de­feito de sistematização impedia até agora que pudesse ser de outro modo; e o grande ofício orgânico que agora lhe cabe se oporia de agora em diante a tal atribuição acessória, que aliás tende a se tornar supérflua. A sã filosofia descarta radi­calmente, é verdade, todas as questões necessariamente inso­lúveis, mas, ao motivar a sua rejeição, evita nada negar a res­peito delas, o que seria contraditório com este desgaste siste­mático, o único pelo qual devem extinguir-se todas as opi­niões verdadeiramente indiscutíveis. Mais imparcial e mais tolerante para com cada uma delas, dada a sua comum indi­ferença, de que podem sê-lo os seus partidários opostos, ela se aplica a apreciar historicamente sua influência respectiva, as condições de sua duração e os motivos de sua decadência, sem nunca pronunciar nenhuma negação absoluta, mesmo quando se trata das doutrinas mais antipáticas ao estado pre­sente da razão humana entre as populações de elite. É assim [44] que ela faz escrupulosa justiça, não só aos diversos sistemas de monoteísmo diferentes daquele que está expirando hoje entre nós, mas também às crenças politéicas, ou mesmo fe­tichistas, relacionando-as sempre com as fases corresponden­tes da evolução fundamental. Aliás, no aspecto dogmático, professa que quaisquer concepções de nossa imaginação, tão logo a natureza delas as torna inacessíveis a toda observa­ção, deixam de ser susceptíveis de negação ou de afirmação verdadeiramente decisivas. Ninguém, por certo, jamais de­monstrou logicamente a não-existência de Apoio, de Miner­va, etc., nem a das fadas orientais ou das diversas criações poéticas, o que não impediu de modo algum o espírito hu­mano de abandonar irrevogavelmente os dogmas antigos, quando estes enfim cessaram de convir ao conjunto de sua situação.

O único caráter essencial do novo espírito filosófico que ainda não está indicado diretamente pelo termo positivo con­siste em sua necessária tendência para substituir em toda parte o absoluto pelo relativo. Mas este grande atributo, a um só tempo científico e lógico, é tão inerente à natureza funda­mental dos conhecimentos reais, que sua consideração geral não tardará a se ligar intimamente aos diversos aspectos já combinados nessa fórmula, quando o moderno regime inte­lectual, até aqui parcial e empírico, passar comumente ao es­tado sistemático. A quinta acepção que acabamos de apre­ciar é apropriada sobretudo para determinar esta última con­densação da nova linguagem filosófica, desde então plena­mente constituída, segundo a evidente afinidade das duas pro­priedades. Concebe-se, com efeito, que a natureza absoluta das antigas doutrinas, tanto teológicas como metafísicas, de­terminava necessariamente cada uma delas a tornar-se nega­tiva para com todas as outras, sob pena de ela mesma dege­nerar num absurdo ecletismo. E, ao contrário, em virtude de seu gênio relativo que a nova filosofia sempre pode apre­ciar o valor próprio das teorias que lhe são mais opostas, sem entretanto chegar jamais a uma vã concessão, capaz de alterar a nitidez de suas concepções e a firmeza de suas [45] deci­|sões. Convém portanto presumir, de acordo com o conjun­to de tal apreciação especial, que a expressão aqui emprega­da para doravante qualificar habitualmente esta filosofia de­finitiva lembrará a todos os bons espíritos a inteira combi­nação efetiva de suas diversas propriedades características.



Quando se procura a origem fundamental de tal maneira de filosofar, não se tarda a reconhecer que a sua espontanei­dade elementar coincide realmente com os primeiros exercícios práticos da razão humana; pois o conjunto das expli­cações indicadas neste Discurso demonstra claramente que to­dos os seus atributos principais são, no fundo, os mesmos que os do bom senso universal. Apesar da ascendência men­tal da mais grosseira teologia, a conduta cotidiana da vida ativa sempre teve de suscitar, acerca de cada ordem de fenô­menos, um certo esboço das leis naturais e das previsões cor­respondentes, em alguns casos particulares, que então pare­ciam somente secundários ou excepcionais. Ora, são estes, de fato, os germes necessários da positividade, que por mui­to tempo deveria permanecer empírica antes de poder tornar-se racional. Importa muito perceber que, em todos os seus aspectos essenciais, o verdadeiro espírito filosófico consiste sobretudo na extensão sistemática do simples bom senso a todas as especulações verdadeiramente acessíveis. O campo delas é radicalmente idêntico, já que as maiores questões da sã filosofia se relacionam em toda parte com os fenômenos mais vulgares, diante dos quais os casos artificiais constituem apenas uma preparação mais ou menos indispensável. Têm, de ambas as partes, o mesmo ponto de partida experimen­tal, o mesmo objetivo de ligar e de prever, a mesma preocu­pação contínua com a realidade, a mesma intenção final de utilidade. Toda a diferença essencial consiste na generalida­de sistemática de um, proveniente de sua abstração necessária, oposta à incoerente especialidade do outro, sempre ocu­pado com o concreto.

Encarada em seu aspecto dogmático, esta conexão funda­mental representa a ciência propriamente dita como um sim­ples prolongamento metódico da sabedoria universal. Dessa [46] forma, longe de questionar o que esta verdadeiramente deci­diu, as sãs especulações filosóficas devem sempre tirar da ra­zão comum as suas noções iniciais, para lhes fazer adquirir, através de uma elaboração sistemática, um grau de generali­dade e de consistência que não podiam obter espontaneamen­te. Durante todo o curso de tal elaboração, o controle per­manente dessa vulgar sabedoria conserva, aliás, alta impor­tância, a fim de prevenir tanto quanto possível as diversas aberrações, por negligência ou por ilusão, suscitadas freqüen­temente pelo estado contínuo de abstração indispensável à atividade filosófica. Apesar de sua afinidade necessária, o bom senso propriamente dito deve permanecer preocupado so­bretudo com a realidade e com a utilidade, ao passo que o espírito especialmente filosófico tende a apreciar mais a ge­neralidade e a ligação, de sorte que a sua dupla reação coti­diana se torna igualmente favorável a ambos, consolidando-lhes as qualidades fundamentais que naturalmente se altera­riam. Tal relação logo indica como são necessariamente va­zias e estéreis as pesquisas especulativas dirigidas, num as­sunto qualquer, para os primeiros princípios, que, devendo sempre emanar da sabedoria vulgar, nunca pertencem ao ver­dadeiro campo da ciência, de que constituem, ao contrário, os fundamentos espontâneos e conseqüentemente indiscutí­veis; isto suprime radicalmente grande número de contro­vérsias, inúteis ou perigosas, que nos deixou o antigo regi­me mental. Podemos também perceber assim a profunda ina­nidade final de todos os estudos prévios relativos à lógica abstrata, nos quais se trata de apreciar o verdadeiro método filosófico, isoladamente de qualquer aplicação a uma ordem qualquer de fenômenos. De fato, os únicos princípios ver­dadeiramente gerais que se possam estabelecer a este respei­to reduzem-se necessariamente, como é fácil de verificar nos mais célebres desses aforismos, a algumas máximas incon­testáveis mas evidentes, tiradas da razão comum, e que não acrescentam realmente nada de essencial às indicações resul­tantes, para todos os bons espíritos, de um simples exercício espontâneo. Quanto à maneira de adaptar estas regras [47] uni|versais às diversas ordens de nossas especulações positivas, o que constituiria a verdadeira dificuldade e a utilidade des­tes preceitos lógicos, esta só poderia comportar verdadeiras apreciações depois de uma análise adequada à natureza pró­pria dos fenômenos considerados. A sã filosofia, portanto, nunca separa a lógica da ciência, pois o método e a doutrina só podem ser bem julgados em cada caso, segundo as suas verdadeiras relações mútuas; não é mais possível, no fundo, dar nem à lógica nem à ciência um caráter universal mediante concepções puramente abstratas, independentes de todos os fenômenos determinados. As tentativas desse gênero indi­cam ainda a secreta influência do espírito absoluto inerente ao regime teológico-metafísico.


Texto 114

JUNQUEIRO, Guerra. Finis Patriae. 7. ed. Porto: Lello, 1945. p. 7-8.125

[7] FALAM POCILGAS DE OPERÁRIOS


Crianças rotas, sem abrigo...

A enxerga é pobre e a roupa é leve...

Quarto sem luz, mesa sem ......

Quem é que bate, ao meu postigo?

— A neve!
A usura rouba a luz e o ar

E o negro pão que a gente come...

Inverno vil... Parou o te....

Quem vem sentar-se no meu lar?

— A fome!
Lume apagado e o berço em pranto

Na terra húmida, Senhor!

A mãe sem leite... o pai a um canto...

Quem vem além, torva de espanto?

— A Dor!
[8] Álcool! Veneno que conforta,

Monstro satânico e sublime!...

Beber! bebe.... e a magoa é morta!...

Quem é que espreita à nossa porta?

— O Crime!
Doze anos já, e seminua!

A mie, que é dela?... O pai no oficio...

Corpo em botão d’aurora e lua!...

Quem canta além naquela rua?

— O Vício!
A fome e o frio, a dor e a usura,

O vicio e o crime... ignóbil sorte!

Ó vida negra! Ó vida dura!...

Deus! quem consola a Desventura?

— A Morte!


Texto 115

CRESPO, Gonçalves. Obras Completas. Lisboa: Tavares Cardoso, 1897. 429p.



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