anol iir
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Dez horas da manhã; os transparentes
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Matizam uma casa apalaçada;
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Pelos jardins estancam-se os nascentes,
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E fere a vista, com brancuras quentes,
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A larga rua macadamizada.
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Rez-de-chausée repousam sossegados,
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Abriram-se, nalguns, as persianas,
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E dum ou doutro, em quartos estucados.
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Ou entre a rama dos papéis pintados,
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Reluzem, num almoço, as porcelanas.
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[65] Como é saudável ter o seu conchego,
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E a sua vida fácil! Eu descia,
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Sem muita pressa, para o meu emprego,
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Aonde agora quase sempre chego
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Com as tonturas duma apoplexia.
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E rota, pequenina, azafamada,
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Notei de costas uma rapariga,
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Que no xadrez marmóreo duma escada,
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Como um retalho de horta aglomerada,
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Pousara, ajoelhando, a sua giga.
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E eu, apesar do sol, examinei-a:
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Pôs-se de pé; ressoam-lhe os tamancos;
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E abre-se-lhe o algodão azul da meia,
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Se ela se curva, esguedelhada, feia,
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E pendurando os seus bracinhos brancos.
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Do patamar responde-lhe um criado:
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«Se te convém, despacha; não converses.
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Eu não dou mais.» E muito descansado,
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Atira um cobre lívido, oxidado,
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Que vem bater nas faces duns alperces130.
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Subitamente — que visão de artista! —
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Se eu transformasse os simples vegetais,
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À luz do sol, o intenso colorista,
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Num ser humano que se mova e exista
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Cheio de belas proporções carnais?!
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Bóiam aromas, fumos de cozinha;
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Com o cabaz às costas, e vergando,
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Sobem padeiros, claros de farinha;
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E às portas, uma ou outra campainha
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Toca, frenética, de vez em quando.
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E eu recompunha, por anatomia,
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Um novo corpo orgânico, aos bocados.
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Achava os tons e as formas. Descobria
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Uma cabeça numa melancia,
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E nuns repolhos seios injectados.
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As azeitonas, que nos dão o azeite,
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Negras e unidas, entre verdes folhos,
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São trança. dum cabelo que se ajeite;
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E os nabos — ossos nus, da cor do leite,
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E os cachos de uvas — os rosários de olhos.
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Há colos, ombros, bocas, um semblante
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Nas posições de certos frutos. E entre
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As hortaliças, túmulo, fragrante,
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Como dalguém que tudo aquilo jante,
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Surge um melão, que me lembrou um ventre.
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E, como um feto, enfim, que se dilate,
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Vi nos legumes carnes tentadoras,
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Sangue na ginja vivida, escarlate,
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Bons corações pulsando no tomate
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E dedos hirtos, rubros, nas cenouras.
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[67] O sol dourava o céu. E a regateira,
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Como vendera a sua fresca alface
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E dera o ramo de hortelã que cheira,
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Voltando-se, gritou-me, prazenteira:
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«Não passa mais ninguém! ... Se me ajudasse?! ...»
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Eu acerquei-me dela, sem desprezo;
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E, pelas duas asas a quebrar,
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Nós levantámos todo aquele peso
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Que ao chão de pedra resistia preso,
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Com um enorme esforço muscular.
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«Muito obrigada! Deus lhe dê saúde!»
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E recebi, naquela despedida,
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As forças, a alegria, a plenitude,
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Que brotam dum excesso de virtude
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Ou duma digestão desconhecida.
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E enquanto sigo para o lado oposto,
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E ao longe rodam umas carruagens,
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A pobre afasta-se, ao calor de Agosto,
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Descolorida nas maçãs do rosto,
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E sem quadris na saia de ramagens.
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Um pequerrucho rega a trepadeira
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Duma janela azul; e, com o ralo
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Do regador, parece que joeira
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Ou que borrifa estrelas; e a poeira
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Que eleva nuvens alvas a incensá-lo.
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[68] Chegam do gigo emanações sadias,
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Oiço um canário — que infantil chifrada! —
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Lidam ménages entre as gelosias,
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E o sol estende, pelas frontarias,
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Seus raios de laranja destilada.
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E pitoresca e audaz, na sua chita,
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O peito erguido, os pulsos nas ilhargas,
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Duma desgraça alegre que me incita,
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Ela apregoa, magra, enfezadita,
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As suas couves repolhudas, largas.
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E como as grossas pernas de um gigante,
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Sem tronco, mas atléticas, inteiras,
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Carregam sobre a pobre caminhante,
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Sobre a verdura rústica, abundante,
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Duas frugais abóboras carneiras.
Texto 122
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FERREIRA, Maria Ema Tarracha. Introdução. In: O Livro de Cesário Verde. Lisboa: Ulisseia, s. d. p. 26-29.
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