Ana səhifə

Literatura portugues


Yüklə 1.49 Mb.
səhifə19/29
tarix25.06.2016
ölçüsü1.49 Mb.
1   ...   15   16   17   18   19   20   21   22   ...   29

[129] Alucinação

E este o seu jardim, no velho muro

Estende o jasmineiro a ramaria,

Chora a fonte no marmor da bacia,

Recende perto o laranjal escuro.
Este luar silencioso e puro

Vale bem o fulgor daquele dia

Em que a doce crioula me dizia

O que talvez não ouça no futuro.


Sonho talvez! cuidei ter pressentido

O arrastado e visual ruído

De suas vestes múrmuras de seda...
Uma folha que desce me desperta!

E eu vejo, à luz da lua, a sombra incerta

Das arvores nas ruas da alameda. [1869]
[102] NERA

I


Uma larga piscina, obra de um grego artista,

Atrai da alcova em meio a fascinada vista.



II


De trabalhado bronze um Pã malicioso

Finge na ténue flauta um canto harmonioso.



III


Uma estátua do Amor, de Paros cor de rosa,

Entre verdes festões assoma graciosa.



IV


[103] Em jarras do Corinto esmaiam belas flores,

Espalham-se no ar suavíssimos olores.



V


O tecto é de mosaico e ornado de figuras;

Riem pela parede eróticas pinturas.



VI


Sobremesas de jaspe, orladas de embutidos,

Repousam jóias de ouro, esplêndidos vestidos.



VII


Nas púrpuras do leito ebúrneo uma criança

Dormita; a luz do sol lhe beija a loura trança.



VIII


Formosa! vista assim, no leito adormecida,

É náiade gentil em relva humedecida.



IX


Murmuram do clepsidro as águas. Entretanto

Nera seu corpo estira em flácido quebranto.



X


Abre — felino jeito! — os lábios cor de rosa,

Como em busca de um beijo, a dama voluptuosa.



XI


Sonha! julga sentir no rosto de açucena

Os beijos de Bactylo, o gladiador da arena.



XII


Súbito, em toda a Roma a plebe dissoluta

«Ao Circo!» ruge e grita; a dama acorda e escuta.


XIII

Ergue o corpo de neve a linda Galatéia,

«Ao Circo!» e em seu olhar sorri ignota idéia... [1870]

[332] AS VELHAS NEGRAS


A Mme ALINE DE GUSMÃO
As velhas negras, coitadas,

Ao longe estão assentadas

Do batuque folgazão.

Pulam crioulas faceiras

Em derredor das fogueiras

E das pipas de alcatrão.


[333] Na floresta rumorosa

Esparge a lua formosa

A clara luz tropical.

Tremeluzem pirilampos

No verde-escuro dos campos

E nos côncavos do vai.


Que noite de paz! que noite!

Não se ouve o estalar do noite,

Nem as pragas do feitor!

E as pobres negras, coitadas,

Pendem as frontes cansadas

Num letárgico torpor!


E cismam outrora, e dantes

havia também descantes,

E o tempo era tão feliz!

Ai! que profunda saudade

Da vida, da mocidade

Nas matas do seu país!


E ante o seu olhar vazio

De esperanças, frio, frio

Como um véu de viuvez,

[334] Ressurge e chora o passado

— Pobre ninho abandonado

Que a neve alagou, desfez... —


E pensam nos seus amores

Efémeros como as flores

Que o sol queima no sertão...

Os filhos quando crescidos,

Foram levados, Vendidos,

E ninguém sabe onde estão.


Conheceram muito dono:

Embalaram tanto sono

De tanta sinhá gentil!

Foram mucamas amadas,

E agora meteis, curvadas,

Numa velhice imbecil!


No entanto o luar de prata

Envolve a coluna e a mata

E os cafezais em redor!

E os negros mostrando os dentes,

Saltam lépidos, contentes,

No batuque estrugidor.


[335] No espaçoso e amplo terreiro

A filha do Fazendeiro,

A sinhá sentimental,

Ouve um primo recém-vindo,

Que lhe narra o poema infindo

Das noites de Portugal.


E ela avista, entre sorrisos,

De uns longínquos paraísos

A tentadora visão...

No entanto as velhas, coitadas,

Cismam ao longe assentadas

Do batuque folgazão...




Texto 116

QUENTAL, Antero de. Odes Modernas. Lisboa: Couto Martins, 1952. 207p.126


À HISTÓRIA
VI

[48] Se um dia chegaremos, nós, sedentos,

A essa praia do eterno mar-oceano,

Onde lavem seu corpo os pustulentos,

E farte a sede, enfim, o peito humano?

Oh! diz-me o coração que estes tormentos

Chegarão a acabar: e o nosso engano,

Desfeito como nuvem que desanda,

Deixará ver o céu de banda a banda!

Felizes os que choram! alguma hora

Seus prantos secarão sobre seus rostos!

Virá do céu, em meio de uma aurora,

Uma águia que lhes leve os seus desgostos!

Há-de alegrar-se, então, o olhar que chora...

E os pés de ferro dos tiranos, postos

Na terra, como torres, e firmados,

Se verão, como palhas, levantados!

Os tiranos sem conto — velhos cultos,

Espectros que nos gelam com o abraço...

E mais renascem quanto mais sepultos...

E mais ardentes no maior cansaço...

Visões de antigos sonhos, cujos vultos

Nos oprimem ainda o peito lasso...

Da terra e céu bandidos orgulhosos,

Os Reis sem fé e os Deuses enganosos!
[49] O mal só deles vem — não vem do Homem.

Vem dos tristes enganos, e não vem

Da alma que eles invadem e consomem,

Espedaçando-a pelo mundo além!

Mas que os desfaça o raio, mas que os tomem

As auroras, um dia, e logo o Bem,

Que encobria essa sombra movediça,

Surgirá, como um astro de Justiça!


E, se cuidas que os vultos levantados

Pela ilusão antiga, em desabando,

Hão-de deixar os céus despovoados

E o mundo entre ruínas vacilando;

Esforça! ergue teus olhos magoados!

Verás que o horizonte, em se rasgando,

É porque um céu maior nos mostre — e é nosso

Esse céu e esse espaço! é tudo nosso!


É nosso quanto há belo! A Natureza,

Desde aonde atirou seu cacho a palma,

Té lá onde escondidos na frieza

Vegeta o musgo e se concentra a alma:

Desde aonde se fecha da beleza

A abóbada sem fim — fé onde a calma

Eterna gera os mundos e as estrelas,

E em nós o Empíreo das ideias belas!


[50] Templo de crenças e de amores puros!

Comunhão de verdade! onde não há

Bonzo à porta a estremar fiéis e impuros,

Uns para a luz... e outros para cá.

A li parecerão os mais escuros

Brilhantes como a face de Jeová,

Comungando no altar do coração

No mesmo amor de pai e amor d’Irmão!

Amor d’Irmão! oh! este amor é doce

Como ambrosia e como um beijo casto!

Orvalho santo, que chovido fosse,

E o lírio absorve como etéreo pasto!...

Dilúvio suave, que nos toma posse

Da vida e tudo, e que nos faz tão vasto

O coração minguado... que admira

Os sons que solta esta celeste lira!
Só ele pude a ara sacrossanta

Erguer, e um templo eterno para todos...

Sim, um eterno templo e ara santa,

Mas com mil cultos, mil diversos modos!

Mil são os frutos, e é só uma a planta!

Um coração, e mil desejos doudos!

Mas dá lugar a todos a Cidade,

Assente sobre a rocha da Igualdade.


É desse amor que eu falo! e dele espero

O doce orvalho com que vá surgindo

O triste lírio, que este solo austero

Está entre urze e abrolhos encobrindo.

Dele o resgate só será sincero...

Dele! do Amor!... enquanto vais abrindo,

Sobre o ninho onde choca a Unidade,

As tuas asas d’águia, ó Liberdade! [1865]


[ 46] PANTEÍSMO

I

Aspiração... desejo aberto todo



Numa ânsia insofrida e misteriosa...

A isto chamo eu vida: e, deste modo,


Que mais importa a forma? silenciosa

Uma mesma alma aspira à luz e ao espaço

Em homem igualmente e astro e rosa!


A própria fera, cujo incerto passo

Lá vaga nos algares da devesa,

Por certo entrevê Deus — seu olho baço


Foi feito para ver brilho e beleza...

E se ruge, é que a agita surdamente

Tua alma turva, ó grande natureza!
Sim, no rugido há vida ardente,

Uma energia íntima, tão santa

Como a que faz trinar a ave inocente...

Há um desejo intenso, que alevanta

Ao mesmo tempo o coração ferino,

E o do ingénuo cantor que nos encanta...


Impulso universal! forte e divino,

Aonde quer que irrompa! e belo e augusto,

Quer se equilibre em paz no mudo hino


Dos astros imortais, quer no robusto

Seio do mar tumultuando brade,

Com um furor que se domina a custo,


Quer durma na fatal obscuridade

Da massa inerte, quer na mente humana

Sereno ascenda à luz da liberdade...


É sempre a eterna vida, que dimana

Do centro universal, do foco intenso,

Que ora brilha sem véus, ora se empana...


É sempre o eterno gérmen, que suspenso

No oceano do Ser, em turbilhões

De ardor e luz, envolve, ínfimo e imenso!

Através de mil formas, mil visões,

O universal espírito palpita

Subindo na espiral das criações!


Ó formas! vidas! misteriosa escrita

Do poema indecifrável que na Terra

Faz de sombras e luz a Alma infinita!


Surgi, por céu, por mar, por vale e serra!

Rolai, ondas sem praia, confundindo

A paz eterna com a eterna guerra!


Rasgando o seio imenso, ide saindo

Do fundo tenebroso do Possível,

Onde as formas do Ser se estão fundindo

Abre teu cálix, rosa imarcescível!

Rocha, deixa banhar-te a onda clara!

Ergue tu, águia, o voo inacessível!


Ide! crescei sem medo! não é avara

A alma eterna que em vós anda e palpita

Onda, que vai e vem e nunca pára!


Semeador de mundos, vai andando

E a cada passo uma seara basta

De vidas sob os pés lhe vem brotando!


Essência tenebrosa e pura... casta

C todavia ardente... eterno alento!

Teu sopro é que fecunda a esfera vasta...

Choras na voz do mar... cantas ao vento...

II

[47] Porque o vento, sabei-o, é pregador



Que através dos soidões vai missionando

A eterna Lei do universal Amor.


Ouve-o rugir por essas praias, quando,

Feito tufão, se atira das montanhas,

Como um negro Titã, e vem bradando...


Que imensa voz! que prédicas estranhas!

E como freme com terrível vida

A asa que o livra em extensões tamanhas!


Ah! quando em pé no monte, e a face erguida

Para a banda do mar, escuto o vento

Que passa sobre mim a toda a brida,


Como o entendo então! e como atento

Lhe escuto o largo canto! e, sob o canto,

Que profundo e sublime pensamento!

Ei-lo, o Ancião-dos-dias! ei-lo, o Santo,

Que já na solidão passava orando,

Quando inda o mundo era negrume e espanto!

Quando as formas o orbe tenteando

Mal se sustinha e, incerto, se inclinava

Para o lado do abismo, vacilando;


Quando a Força, indecisa, se enroscava

Às espirais do Caos, longamente,

Da confusão primeira ainda escrava;


Já ele era então livre! e rijamente

Sacudia o Universo, que acordasse...

Já dominava o espaço, omnipotente!


Ele viu o Princípio. A quanto nasce

Sabe o segredo, o germe misterioso.

Encarou o Inconsciente face a face,

Quando a Luz fecundou o Tenebroso.

III


Fecundou!... Se eu nas mãos tomo um punhado

Da poeira do chão, da triste areia,

E interrogo os arcanos do seu fado,

O pó cresce em mim... engrossa... alteia...

E, com pasmo, nas mãos vejo que tenho

Um espírito! o pó tornou-se ideia!


Ó profunda visão! mistério estranho!

Há quem habita ali, e mudo e quedo

Invisível está... sendo tamanho!

Espera a hora de surgir sem medo,

Quando o deus encoberto se revele

Com a palavra do imortal segredo!


Surgir! surgir! — é a ânsia que os impele

A quantos vão na estrada do infinito

Erguendo a pasmosíssima Babel!


Surgir! ser astro e flor! onda e granito!

Luz e sombra! atracção e pensamento!

Um mesmo nome em tudo está escrito...

...........................................

Eis quanto me ensinou a voz do vento.

1865-1874


[64] TENTANDA VIA


I

Com que passo tremente se caminha



Em busca dos destinos encobertos!

Como se estão volvendo olhos incertos!

Como esta geração marcha sozinha!

Fechado, em volta, o céu! o mar, escuro!

A noite, longa! o dia, duvidoso!

Vai o giro dos céus, vem vagaroso...

Vem longe ainda a praia do futuro...


É a grande incerteza, que se estende

Sobre os destinos dum porvir, que é treva...

É o escuro terror de quem nos leva...

O futuro horrível que das almas pende!


A tristeza do tempo! o espectro mudo

Que pela mão conduz... não sei aonde!

— Quanto pode sorrir, tudo se esconde...

Quanto pode pungir, mostra-se tudo. —

Não é a grande luta, braço a braço,

No chão da Pátria, à clara luz da História...

Nem o gládio de César, nem a glória...

É um misto de pavor e de cansaço!
Não é a luta dos trezentos bravos,

Que o solo amado beijam quando caem...

Crentes que traz um Deus, e à guerra saem,

Por não dormir no leito dos escravos...


É a luta sem glória! é ser vencido

Por uma oculta, súbita fraqueza!

Um desalento, uma íntima tristeza

Que à morte leva... sem se ter vivido!

Não há aí pelejar... não há combate...

Nem há já glória no ficar prostrado —

São os tristes suspiros do Passado

Que se erguem desse chão, por toda a parte...

É a saudade, que nos rói e mina

E gasta, como à pedra a gota d’água...

Depois, a compaixão, a íntima mágoa

De olhar essa tristíssima ruína...
Tristíssimas ruínas! Entristece

E causa dó olhá-las — a vontade

Amolece nas águas da piedade,

E, em meio do lutar, treme e falece.


Cada pedra, que cai dos muros lassos

Do trémulo castelo do passado,

Deixa um peito partido, arruinado,

E um coração aberto em dois pedaços!

II


[65] A estrada da vida anda alastrada

De folhas secas e mirradas flores...

Eu não vejo que os céus sejam maiores,

Mas a alma... essa é que eu vejo mais minguada!


Ah! via dolorosa é esta via!

Onde uma Lei terrível nos domina!

Onde é força marchar pela neblina...

Quem só tem olhos para a luz do dial
Irmãos! irmãos! amemo-nos! é a hora...

É de noite que os tristes se procuram,

E paz e união entre si juram...

Irmãos! irmãos! amemo-nos agora!


E vós, que andais a dores mais afeitos,

Que mais sabeis à Via do Calvário

Os desvios do giro solitário,

E tendes, de sofrer, largos os peitos;
Vós, que ledes na noite... vós, profetas...

Que sois os loucos... porque andais na frente...

Que sabeis o segredo da fremente

Palavra que dá fé – ó vós, poetas!


Estendei vossas almas, como mantos

Sobre a cabeça deles... e do peito

Fazei-lhes um degrau, onde com jeito

Possam subir a ver os astros santos...

Levai-os vós à pátria-misteriosa,

Os que perdidos vão com passo incerto!

Sede vós a coluna de deserto!

Mostrai-lhes vós a Via-dolorosa!

III


[66] Sim! que é preciso caminhar avante!

Andar! passar por cima dos soluços!

Como quem numa mina vai de bruços

Olhar apenas uma luz distante!


É preciso passar sobre ruínas,

Como quem vai pisando um chão de flores!

Ouvir as maldições, ais e clamores,

Como quem ouve músicas divinas!
Beber, em taça túrbida, o veneno,

Sem contrair o lábio palpitante!

Atravessar os círculos do Dante,

E trazer desse inferno o olhar sereno!


Ter um manto da casta luz das crenças,

Para cobrir as trevas da miséria!

Ter a vara, o condão da fada aérea,

Que em ouro torne estas areias densas!


É, quando, tem temor e sem saudade,

Puderdes, dentre o pó dessa ruína,

Erguei o olhar à cúpula divina,

Heis-de então ver a nova-claridade!

Heis-de então ver, ao descerrar do escuro,

Bem como o cumprimento de um agouro,

Abrir-se, como grandes portas de ouro,

As imensas auroras do Futuro!


Texto 117

QUENTAL, Antero de. “Idílio”. In: Sonetos; ed. org., pref. e anotada por Antônio Sérgio. 3. ed. Lisboa: Sá da Costa, 1968. p. 32-3.


IDÍLIO

[32] Quando nós vamos ambos, de mãos dadas,

Colher nos vales lírios e boninas,

E galgamos dum fôlego as colinas

Dos rocios da noite inda orvalhadas;

Ou, vendo o mar das ermas cumeadas

Contemplamos as nuvens vespertinas,

Que parecem fantásticas ruínas

Ao longo, no horizonte, amontoadas:
[33] Quantas vezes, de súbito, emudeces!

Não sei que luz no teu olhar flutua;

Sinto tremer-te a mão e empalideces...

O vento e o mar murmuram orações,

E a poesia das coisas se insinua

Lenta e amorosa em nossos corações.




[52] A UM POETA


Surge et ambula!

Tu que dormes, espírito sereno,

Posto à sombra dos cedros seculares,

Como um levita à sombra dos altares,

Longe da luta e do fragor terreno,

Acorda! É tempo! O sol, já alto e pleno

Afugentou as larvas tumulares…

Para surgir do seio desses mares

Um mundo novo espera só um aceno…

Escuta! É a grande voz das multidões!

São teus irmãos, que se erguem! São canções…

Mas de guerra… e são vozes de rebate!


Ergue-te, pois, soldado do Futuro,

E dos raios de luz do sonho puro,

Sonhador, faze espada de combate!


[56] HINO À RAZÃO

Razão, irmã do Amor e da Justiça,

Mais uma vez escuta a minha prece.

É a voz dum coração que te apetece,

Duma alma livre só a ti submissa.

Por ti é que a poeira movediça

De astros, sóis e mundos permanece;

E é por ti que a virtude prevalece,

E a flor do heroísmo medra e viça.
Por ti, na arena trágica, as nações

buscam a liberdade entre clarões;

e os que olham o futuro e cismam, mudos,
Por ti podem sofrer e não se abatem,

Mãe de filhos robustos que combatem

Tendo o teu nome escrito em seus escudos!
[80] O PALÁCIO DA VENTURA

Sonho que sou um cavaleiro andante.

Por desertos, por sóis, por noite escura,

Paladino do amor, busco anelante

O palácio encantado da Ventura!

Mas já desmaio, exausto e vacilante,

Quebrada a espada já, rota a armadura…

E eis que súbito o avisto, fulgurante

Na sua pompa e aérea formosura!

[81] Com grandes golpes bato à porta e brado:

Eu sou o Vagabundo, o Deserdado…

Abri-vos, portas de ouro, ante meus ais!


Abrem-se as portas d’ouro com fragor…

Mas dentro encontro só, cheio de dor,

Silêncio e escuridão — e nada mais!


[88] CONSULTA

Chamei em volta do meu frio leito

As memórias melhores de outra idade,

Formas vagas, que às noites, com piedade,

Se inclinam, a espreitar, sobre o meu peito…


[89] E disse-lhes: No mundo imenso e estreito

Valia a pena, acaso, em ansiedade

Ter nascido? Dizei-mo com verdade,

Pobres memórias que eu ao seio estreito.
Mas elas perturbaram-se – coitadas!

E empalideceram, contristadas,

Ainda a mais feliz, a mais serena…
E cada uma delas, lentamente,

Com um sorriso mórbido, pungente,

Me respondeu: – Não, não valia a pena!

[91] LACRIMAE RERUM


Noite, irmã da Razão e irmã da Morte,

Quantas vezes tenho eu interrogado

Teu verbo, teu oráculo sagrado,

Confidente e intérprete da Sorte!

Aonde são teus sóis, como coorte

De almas inquietas, que conduz o Fado?

E o homem porque vaga desolado

E em vão busca a certeza que o conforte?
Mas, na pompa de imenso funeral,

Muda, a noite, sinistra e triunfal,

Passa volvendo as horas vagarosas…

É tudo, em torno a mim, dúvida e luto;

E, perdido num sonho imenso, escuto

O suspiro das coisas tenebrosas…




A GERMANO MEIRELES

Só males são reais, só dor existe:

Prazeres só os gera a fantasia;

Em nada[, um] imaginar, o bem consiste,

Anda o mal em cada hora e instante e dia.

Se buscamos o que é, o que devia

Por natureza ser não nos assiste;

Se fiamos num bem, que a mente cria,

Que outro remédio há aí senão ser triste?

Oh! Quem tanto pudera que passasse

A vida em sonhos só. E nada vira…

Mas, no que se não vê, labor perdido!


Quem fora tão ditoso que olvidasse…

Mas nem seu mal com ele então dormira,

Que sempre o mal pior é ter nascido!




[120] O CONVERTIDO

Entre os filhos dum século maldito

Tomei também lugar na ímpia mesa,

Onde, sob o folgar, geme a tristeza

Duma ânsia impotente de infinito.

Como os outros, cuspi no altar avito

Um rir feito de fel e de impureza…

Mas um dia abalou-se-me a firmeza,

Deu-me um rebate o coração contrito!

Erma, cheia de tédio e de quebranto,

Rompendo os diques ao represo pranto,

Virou-se para Deus minha alma triste!


Amortalhei na Fé o pensamento,

E achei a paz na inércia e esquecimento…

Só me falta saber se Deus existe!


[152] MORS-AMOR


Esse negro corcel, cujas passadas

Escuto em sonhos, quando a sombra desce,

E, passando a galope, me aparece

Da noite nas fantásticas estradas,

Donde vem ele? Que regiões sagradas

E terríveis cruzou, que assim parece

Tenebroso e sublime, e lhe estremece

Não sei que horror nas crinas agitadas?

Um cavaleiro de expressão potente,

Formidável mas plácido no porte,

Vestido de armadura reluzente,


Cavalga a fera estranha sem temor:

E o corcel negro diz «Eu sou a morte»,

Responde o cavaleiro: «Eu sou o Amor».




[204] EVOLUÇÃO

Fui rocha em tempo, e fui no mundo antigo

tronco ou ramo na incógnita floresta…

Onda, espumei, quebrando-me na aresta

Do granito, antiquíssimo inimigo…
Rugi, fera talvez, buscando abrigo

Na caverna que ensombra urze e giesta;

O, monstro primitivo, ergui a testa

No limoso paul, glauco pascigo…


[205] Hoje sou homem — e na sombra enorme

Vejo, a meus pés, a escada multiforme,

Que desce, em espirais, da imensidade…


Interrogo o infinito e às vezes choro…

Mas estendendo as mãos no vácuo, adoro

E aspiro unicamente à liberdade.


[206] OCEANO NOX

Junto do mar, que erguia gravemente

A trágica voz rouca, enquanto o vento

Passava como o voo dum pensamento

Que busca e hesita, inquieto e intermitente,

Junto do mar sentei-me tristemente,

Olhando o céu pesado e nevoento,

E interroguei, cismando, esse lamento

Que saía das coisas vagamente…

[207] Que inquieto desejo vos tortura,

Seres elementares, força obscura?

Em volta de que ideia gravitais?


Mas na imensa extensão onde se esconde

O inconsciente imortal só me responde

Um bramido, um queixume e nada mais.


[244] COM OS MORTOS

Os que amei, onde estão? Idos, dispersos,

arrastados no giro dos tufões,

Levados, como em sonho, entre visões,

Na fuga, no ruir dos universos…

E eu mesmo, com os pés também imersos

Na corrente e à mercê dos turbilhões,

Só vejo espuma lívida, em cachões,

E entre ela, aqui e ali, vultos submersos…
[245] Mas se paro um momento, se consigo

Fechar os olhos, sinto-os a meu lado

De novo, esses que amei vivem comigo,

Vejo-os, ouço-os e ouvem-me também,

Juntos no antigo amor, no amor sagrado,

Na comunhão ideal do eterno Bem.




[81] NOX

Noite, vão para ti meus pensamentos,

Quando olho e vejo, à luz cruel do dia,

Tanto estéril lutar, tanta agonia,

E inúteis tantos ásperos tormentos...

Tu, ao menos, abafas os lamentos,

Que se exalam da trágica enxovia...

O eterno Mal, que ruge e desvaria,

Em ti descansa e esquece alguns momentos...

Oh! Antes tu também adormecesses

Por uma vez, e eterna, inalterável,

Caindo sobre o Mundo, te esquecesses,


E ele, o Mundo, sem mais lutar nem ver,

Dormisse no teu seio inviolável,

Noite sem termo, noite do Não-ser!




[245] SOLEMNIA VERBA

Disse ao meu coração: Olha por quantos

Caminhos vãos andámos! Considera

Agora, desta altura, fria e austera,

Os ermos que regaram nossos prantos...
Pó e cinzas, onde houve flor e encantos!

E a noite, onde foi luz a Primavera!

Olha a teus pés o mundo e desespera,

Semeador de sombras e quebrantos!


Porém o coração, feito valente

Na escola da tortura repetida,

E no uso do pensar tornado crente,


Respondeu: Desta altura vejo o Amor!

Viver não foi em vão, se isto é vida,

Nem foi demais o desengano e a dor.


Texto 118

SARAIVA, Antônio José, LOPES, Óscar. História da Literatura Portuguesa. 15. ed. Porto, Porto, 1989. p. 905-908.

[905] Os Sonetos. — É nos Sonetos que encontramos o melhor conjunto da obra poética amadurecida de Antero. Deve-se, como sabemos, a João de Deus a reabilitação dessa forma clássica, a forma lírica por excelência, no juízo anteriano, molde disciplinador que o primeiro Romantismo desprezara e que se tornaria predilecta de Antero de Quental. Há nisto uma espécie de novo classicismo, de uma nova discursividade relacionante, demasiado abstracta mas ritmicamente sugestiva, a que não faltam, como sinais de uma tradição rediviva, certos traços camonianos, por exemplo, a concepção dialéctica da realidade e até paráfrases de versos («Que sempre o mal pior é ter nascido»; «Mas passar entre turbas solitário»), e bocagianos, como o alegorismo e a obsessão da morte.

[906] O poeta via na série completa dos Sonetos, muitos deles desen­tranhados de outras colecções já publicadas, uma série de marcos da sua própria autobiografia espiritual. Oliveira Martins, no prefácio para a edição dos Sonetos Completos, dividiu-os em cinco fases. A primeira fase, de 1860-62, que vai portanto até aos vinte anos do autor, representa o drama do romper com a sua fé infantil e de uma insatisfação que trans­borda por sobre os limites das crenças, do amor e da vida vivida. A segunda fase, 1862-66, constituída sobretudo pelos sonetos extraídos das Primaveras Românticas, regista a primeira das suas grandes crises sentimentais e o abatimento da frustração; sem o testemunho das outras poesias deste período, ficaríamos desconhecendo o largo sincre­tismo das suas tendências juvenis. A terceira fase (melhor se diria o terceiro ciclo, visto que intersecta o período anteriormente indicado) está compreendida entre 1866-74, correspondendo ao decénio de empenhamento combativo: é a fase solar, de hino à razão, onde se incluem produções extractadas das Odes, algumas das quais referimos. A quarta fase, 1874-80, documenta o reinado do pessimismo informado pela metafísica de Eduardo Hartmann. Por fim, a quinta e derradeira fase seria a da reconciliação mística.

Não devemos tomar inteiramente à letra a arrumação cronológica feita por Oliveira Martins, apesar de sancionada pelo autor, pois as investigações pacientes de Bruno Carreiro, corroborando análises de Joaquim de Carvalho, revelam que os sonetos À Virgem Santíssima e Na Mão de Deus estão deslocados: o primeiro é de 1872 e o segundo de 1882, o que muito importa para compreensão da trajectória mental de Antero, pois a sua ordem exacta confirma a interpretação, proposta por António Sérgio, de uma permanente coexistência de dois Anteros127.

O gosto literário prevalecente nos últimos 40 anos tornou-a mais severo em relação ao soneto anteriano, anteriormente mais reverenciado do que efectivamente compreendido. E, na verdade, comparada a Gomes Leal, que, de resto, o continua quanto à veia revolucionária, e mesmo ao Eça de Queirós das Prosas Bárbaras, onde se pode ver autêntica poesia nalguns ritmos livres de prosa aparente, faltam a Antero imagens, apelo à experiência sensorial mais imediata, e faltam-lhe cambiantes humorais — qualidades tolhidas por uma atenção mais [907] firme ao travejamento conceptual, e sobretudo por um fundo, algo inflexível, de exemplaridade moral, que também lhe não permitiu aceitar o realismo de O Crime do Padre Amaro, nem assimilar senão uma caricatura de Baudelaire.

O alegorismo ainda bocagiano (e, para além disso, renascentista), que já mencionámos a propósito das personificações maiusculadas, alarga-se a toda a estrutura de um soneto como Tormento do Ideal, O Palácio da Ventura, Hino à Razão, Mors-Amor e muitos outros, acentuando-se frequentemente o artifício do processo com o diálogo e a apóstrofe. O cunho classicizante da adjectivação ressalta do que tem de insensorial, de alatinado ou quinhentista (mesto, gélido, rudo) e da monotonia dos seus emparelhamentos (largo e fundo, pálido e triste).

Mas se é verdade que Antero não soube transmutar-se todo em expressão literária, se é verdade que as suas obras poéticas não exprimem mais que um nível de consciência filosófica sobre uma tonalidade emotiva expressa em termos muito vagos e abstractos, ele não deixa de elevar-nos a um dos cumes da nossa poesia, sobretudo se soubermos ler os poemas à luz da sua biografia espiritual. Os Sonetos merecem continuar a ser lidos. Apesar da rima pobre, a partitura dos timbres, das articulações e dos ritmos frásicos compensa sobejamente uma visualidade ausente, ou, por melhor dizer, pardacenta e nebulosa, cingindo, ora o entu­siasmo libertador do homem sobre a terra
Ergue-te, então, na majestade estóica

De uma vontade solitária e altiva,

Num esforço supremo de alma heróica;

Faze um templo dos muros da cadeia,

Prendendo a imensidade eterna e viva

No circulo da luz da tua Ideia!


ora a ansiedade incontível em quaisquer limites e cuja respiração se sente em versos como
É lei de Deus este aspirar imenso (A Santos Valente)

Amar! mas de um amor que tenha vida... (Amor Vivo)

Nuvem, sonho impalpável do desejo... (Ideal)

E deixa-me sonhar a vida inteira... (À Virgem Santíssima)


[908] Deveria fazer-se um estudo da musicalidade de alguns dos sonetos, para compreender o que neles há de perturbantemente comunicativo, apesar da falta de originalidade sob o ponto de vista vocabular, estilístico ou das imagens. Mesmo o que possa haver de já murcho nos Sonetos não impede, nos melhores, uma fluidez capaz de colar-se a certos estados de alma nevoentos, fugazes ou desenganados. Repare-se, quanto a isso, na expressividade dos artigos indefinidos em À Virgem Santíssima, no soluçante abandono de Despondency, que acaba rasgado em reticências, e até no partido rítmico admirável que o poeta extrai desse recurso tão clássico que é o hipérbato a alternar com a ordem frásica directa, em, por exemplo, A Santos Valente.

A infIuência dos Sonetos é muito sensível em muitos poetas do primeiro quartel do séc. XX que preferem essa forma métrica prestigiada por Antero.





Texto 119

GOMES LEAL, António. Antologia Poética. Lisboa: Guimarães, s. d. 204p.

[26] O visionário ou som e cor

A Eça de Queirós
I

Eu tenho ouvido a sinfonia das plantas
Eu sou um visionário, um sábio apedrejado,

Passo a vida a fazer e a desfazer quimeras,

Enquanto o mar produz o monstro azulejado

E Deus, em cima faz as verdes primaveras.


Sobre o mundo onde estou encontro-me isolado,

E erro como estrangeiro ou homem de outras eras,

Talvez por um contrato irónico lavrado

Que fiz e já não sei noutras subtis esferas.


A espada da Teoria, o austero Pensamento,

Não mataram em mim o antigo sentimento,

Embriagam-me o Sol e os cânticos do dia...
E obedecendo ainda a meus velhos amores,

Procuro em toda a parte a música das cores,

— E nas tintas da flor achei a Melodia.
II
J’ai vu les Espèces et les Formes, j’ai vu

l’Esprit des Choses.128

Balzac. Serafita


Bem sei que a planta engana e a Natureza mente,

E que a flecha do Sol nos pode assassinar,

Que a Peste torna o azul sereno e resplendente,

que a pérola sai das infecções do Mar.


Tudo é Matéria, Força, e Lei omnipotente!

E enquanto o lírio Incensa e azula-se o luar,

Impassível talvez, em baixo, surdamente,

A terra cria a flor que me há-de envenenar.


[27] Bem sei! — mas, na floresta imensa das Teorias,

Eu amo divagar, ouvindo as melodias

Que as plantas musicais dão aos astros e aos Céus.
— Ah eu vejo Jesus no coração das rosas!

— Só eu vejo as leais flores melodiosas!

— E o lírio é para mim a hóstia onde está Deus.
III
O vermelho deve ser como o som de uma trombeta...
UM CEGO
Alucina-me a Cor! — A Rosa é como a Lira,

A Lira pelo tempo há muito engrinaldada,

E é já velha a união, a núpcia sagrada,

Entre a cor que nos prende e a nota que suspira.


Se a terra, às vezes, brota a flor que não inspira,

A teatral camélia, a branca enfastiada,

Muitas vezes, no ar, perpassa a nota alada

Como a perdida cor de alguma flor que expira...


Há plantas ideais de um cântico divino,

Irmãs do oboé, gémeas do violino,

Há gemidos no azul, gritos no carmesim...
A magnólia é uma harpa etérea e perfumada.

E o cacto, a larga flor, vermelha, ensangüentada,

— Tem notas marciais, soa como um clarim.
IV
Mas aquela que adoro, a hierática duquesa,

Nobre como as reais senhoras de Brabante,

Como a hei-de pintar igual e semelhante,

Se não há Som nem Cor em toda a Natureza!


[28] Seu colo tem do lírio a rígida firmeza.

Seu amor é um céu católico e distante...

Mas a luz desse olhar sonoro e radiante

Eleva como a Cor, soa como a Beleza!


Nunca lhe ousei falar, nem sei se amor lhe inspiro.

Mas quando enfim morrer, entro, como um suspiro

Meu seio florirá, em vez do meu amor,
Numa flor que porá talvez sobre a janela,

Uma flor rubra e negra, em forma de uma estrela,

— Como uma sinfonia obscura de terror.

[17] LISBOA


Cette ville est au bord de l’eau, on dit qu’elle est batie en marbre129

Baudelaire


De certo, capital alguma do Ocidente

Tem mais afável sol, ou um céu mais clemente,

Mais colinas azuis, rio d’águas mais mansas

Mais tristes procissões, mais pálidas crianças,

Mais igrejas e cais — e vargens onde a esteira

Seja em tardes d’estio a flor da laranjeira!


A Cidade é garrida e esbelta de manhã! —

É mais alegre então, mais límpida, mais sã.

Com certo ar virginal ostenta suas graças...

Há vida, confusão, murmúrios pelas praças.

— E, às vezes, em roupão, uma violeta bela

Vem regar o craveiro e assoma na janela.


A Cidade é beata — e, às lúcidas estrelas,

O Vicio, à noite, sai aos becos e às meias

Sorrindo, a perseguir burgueses e estrangeiros.

E à triste e dúbia luz dos baços candeeiros,

— Em bairros imorais, onde se dão facadas —

Corre às vezes o sangue e o vinho nas calçadas.


As mulheres são gentis. — Umas altas, morenas,

Graves, sentimentais, amigas de novenas,

Ébrias de devoções, relêem as suas Horas.

— Outras fortes, viris, os olhos cor d’amoras,

Os lábios sensuais, cabelos bons, compridos,

— As vezes, por enfado, enganam os maridos!


Os burgueses banais são gordos, chãos, contentes,

Amantes de Cupido, egoístas, indolentes,

Graves nas procissões, nas festas, e nos lutos.

Bastante sensuais, bastante dissolutos,

Mas humildes cristãos!... e, em místicos momentos,

— Tenho, ainda, cruéis saudades dos conventos!


[18] Viciosa ela se apraz num sono vegetal,

Adversa ao Pensamento e contrária ao Ideal

— Mas, mau grado assim ser viciosa, egoísta, à lua

Como Nero também, dá concertos na rua.

E, em noutes de verão, quando o luar consola,

— Põe ao peito a guitarra e a lírica viola.


No entanto .a sua vida é quase intermitente.

Chafurda na inacção, feliz, gorda, contente.

E, eclipsando as acções dos seus navegadores,

Abrilhanta a batota e as casas de penhores.

Faz guerra à Vida, à Acção, ao Ideal!... e ao cabo

— É talvez a melhor amiga do Diabo!





Texto 120

MOISÉS, Carlos Felipe. Gomes Leal. In: MOISÉS, Massaud. Pequeno Dicionário de Literatura Portuguesa. São Paulo, Cultrix, 1981. p. 163-164.

GOMES LEAL, Antônio Duarte — (* 6/6/1848, Lisboa; † 29/1/1921, idem)


[163] Filho natural dum abastado funcionário da Alfândega, cedo faleci­do, não teve Gomes Leal, afora ocasional passagem pelo Curso de Letras, qual­quer formação superior, ao contrário da maioria de seus contemporâneos. Autodidata, começou a publicar muito jovem (“Aquela Morta”, poema, nA Gazeta de Portugal, em 1866) e desde o início dividiu a existência entre vagos empregos, que mal lhe provinham o sustento, e a boêmia literária e mundana, a que se dedicou com afinco, tendo aí dissipado, porventura, boa parte de seu invejável talento. Logo reconhecido nos meios artísticos (em 1869, Luciano Cordeiro apresentou-o, na Revolu­ção de Setembro, entre os “Poetas Novos”: Teófilo Braga, Antero de Quental, Guilherme Braga, Guerra Junqueiro e outros), em 1872, fundou o jornal satírico O Espectro de Juvenal, com Magalhães Lima, Silva Pinto, Guilherme de Azevedo, e o mesmo Luciano Cor­deiro. A partir daí, sua vida será um constante desfilar de aventuras rocambolescas (teria sido vítima de misterioso atentado, entre Gaia e Aveiro), espetaculares conquistas amorosas, na verdade, mais sonhadas que de fato realizadas (falou-se, na época, duma platônica paixão de Gomes Leal por D. Maria Pia) e rumorosos escândalos literários e políticos — acontecimentos, verídicos. ou não, cuja propaganda sua veia satírica e exibicionista fez sempre por alimentar, através de boutades ou polêmicos folhetins. Verdadeira figura de “poeta maldito”, Gomes Leal. cultivou tal imagem com empenho e autenticidade que chegam a surpreender. Por isso, sua vida conheceu extremos: desde a admiração e a glória (efêmera, [164] é verdade), pelos anos 80, até a mais tocante penúria. Por volta de 1910, após a morte da mãe (que até então o amparara, como a uma criança mimada), cai no esquecimento e na miséria: nos últimos anos, chega a perambular pelas ruas, faminto, dorme em bancos de jardim, sem ter onde recolher sua loucura mansa de clochard visionário, e torna-se até mesmo vítima da perversidade de garotos que lhe atiram pedras e injúrias. Velho, doente, desequilibrado, vive da caridade alheia, mas, orgulhoso, ainda sonha, grotesca e comoventemente, com os grandes “gestos” da glória perdida. Em 1916, atendendo a petição que em seu nome fazem os escritores do tempo (Teixeira de Pascoaes à frente), o Parlamento lhe concede irrisória pensão anual, que mal lhe garantira a sobrevivência até à morte, ocorrida em 1921, em casa de Ladislau Batalha.

Desde a estréia em livro, O Tributo de Sangue (1873) até à der­radeira publicação, Pátria e Deus (1914), Gomes Leal produziu, ao longo de mais de 4 décadas de ininterrupta atividade, uma copiosa obra poética cuja característica mais marcante é a irregularidade: bons poemas, quase sempre breves e de metro curto, perdidos em meio a verbalismo e banalidade. E isso ocorre não apenas entre um bom e um mau livro. como Claridades do Sul (1875) e A Fonte de Camões (1880), respecti­vamente, mas sobretudo entre poemas da mesma coletânea, revelando o A. notável tibieza de critério e uma oscilação de tipo pendular, que o acompanha durante toda a carreira. Tal oscilação decorre, basi­camente, de a dicção de G. L. hesitar entre o introspectivismo do enternecimento lírico, semitonalizado, e a ênfase declamatória das grandes orquestrações, pretensamente épicas. De um lado, o apego à tradição poética portuguesa, sabidamente enraizada no lirismo senti­mentalista; de outro, a concessão à moda da poesia “revolucionária”, como a preconizada pelas Odes Modernas de Antero. A hesitação será responsável por uma espécie de articulação dualística, sustentadora das grandes obsessões temáticas do Autor: a mulher “anjo” e o amor idealizado, contrapostos à mulher “demônio” e aos desvarios do amor erótico, como se vê nA Morte de Lili (1891) e nA Senhora da Melancolia (1910); a pregação social de cunho progressista, reformador, coexistindo com o conservadorismo mais tradicionalista» como em Fim de um Mundo (1900) e Pátria e Deus (1914); a aceitação de doutrinas exóticas, na esfera do Espiritismo e do Ocultismo, contracenando com declarações de fé católica nos moldes convencionais, como em História de Jesus (1883), A Mulher de Luto (1902) e Mefistófeles em Lisboa (1907); a defesa de ideais pretensamente filosóficos e supercivilizados dividindo o terreno com valores popularescos e próprios de ambiência rural, como se vê nas Serenatas de Hilário no Céu (1900) e em O Anti-Cristo (1886); e assim por diante. Este último livro é dos mais significativos de Gomes Leal, justamente por representar uma espécie de síntese de suas várias e contraditórias tendências. Soma-se a isso a circunstância crono­lógica e a descompromissada curiosidade intelectual, que permitiram ao A. exercitar-se em praticamente todas as correntes estéticas do século XIX (o Ultra-Romantismo, de linha byroniana, este misto de Roman­tismo e Realismo que é a poesia revolucionária, o Decadentismo, e até mesmo o Simbolismo) e ter-se-á uma idéia aproximada dessa que é uma das obras poéticas mais inquietantes da Língua, e injustamente pouco difundida.




Texto 121

O LIVRO de Cesário Verde; introd. por Maria Ema Tarracha Ferreira. Lisboa: Ulisseia, s. d. p. 64-68. Poema “Num bairro moderno”

[64] NUM BAIRRO MODERNO


1   ...   15   16   17   18   19   20   21   22   ...   29


Verilənlər bazası müəlliflik hüququ ilə müdafiə olunur ©atelim.com 2016
rəhbərliyinə müraciət