[29] Doce era a voz de Inês, maga, sublime
na harmonia e no afeto; hino a disséreis,
digno do santuário onde nascia;
suave como a brisa que madruga
sonora entre os rosais, de si vertia
pelo ouvido um frescor e uma inocência,
como celeste orvalho. O que a não visse,
escutando-a falar sentira amores;
o que acesas paixões nutrisse inquieto,
as esquecera ouvindo-a; e cada frase,
simples, indiferente em lábios de outra,
assumia nos seus matiz, perfume;
voara, e inda nos ânimos trementes
ficava ressoando, como pomba
que fugindo pelo ar estampa n’água
de um lago atento as asas cor de neve.
E o preço aos dons de Inês Inês ignora!
Como ela às mais, aos mais excede Adolfo,
ilustre castelão da oposta margem,
intrépido, e cortês. Mais de um combate
lhe ganhara troféus, lhe alçara o nome.
Temido pelos infiéis, aceito às damas,
na guerra vencedor, na paz vencido,
pudera (se inda então durasse a usança
de fantasiar divisa) abrir no escudo
águia entre as nuvens empolgando raios,
pombas aos beijos entre crespas murtas,
cisne em gorjeios de alta palma à sombra.
Ninguém lho estranharia, que ao Levante
guerreiro trovador não foi como ele.
Quando, após o combate, a quente lança
a gotejar depunha, a mão tão fera
da mandora nas cordas se ameigava
para a casar com os improvisos cantos.
[30] Era amor o seu estro, amor sua alma,
sua existência amor. Outras lembranças
do passado não tinha; outros cuidados
lhe não dava o futuro. Aqui prendiam
seus méritos gentis, seus vícios grandes;
e esses vícios, que entre homens o infamavam,
ante olhos feminis eram virtudes.
Fanático, ao seu ídolo imolava,
se a captar-lhe o favor tanto cumprisse,
os deveres, a vida, a glória mesma.
Bem que altivo de si, rendia às damas
o que bom cavaleiro às damas deve;
mas, apenas cativo em braços de uma,
por uma afrontaria o sexo inteiro,
folgara dá-lo em vítima ao seu nume.
Todas por isso o receavam; todas
ardiam ter em seus grilhões submisso
este horrível leão; mas para ele
mais que uma só mulher não tinha o mundo;
e essa é, de muito, Inês. Anos se contam
que os inimigos seus debalde estudam
apontar-lhe um transvio a novo afeto108.
Texto 109
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LEMOS, João de. “A lua de Londres”(1847). Apud BRAGA, Teófilo. Parnaso Português Moderno. Lisboa: Guimarães, 1877.p. 26-29. [1819-1890]109
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[26] A LUA DE LONDRES
É noite; o astro saudoso
Rompe a custo o plúmbeo céu;
Tolda-lhe o rosto formoso
Alvacento, húmido véu.
Traz perdida a cor de prata,
Nas águas não se retracta,
Não beija no campo a flor;
Não traz cortejo de estrelas,
Não fala de amor às belas,
Não fala aos homens de amor.
Meiga lua, os teus segredos
Onde os deixaste ficar?
Deixaste-os nos arvoredos
Das praias d’além do mar?
Foi na terra tua amada
Nessa terra tão banhada
Por teu límpido dano?
Foi na terra dos verdores,
Na pátria dos meus amores
Pátria de meu coração?
[27] Oh que foi! deixaste o brilho
Nos montes de Portugal,
Lá onde nasce o tomilho,
Onde há fontes de cristal;
Lá onde viceja a rosa,
Onde a leve mariposa
Se espaneja à luz do sol;
Lá onde Deus concedera
Que em noite de primavera
Se escutasse o rouxinol.
Tu vens ó lua, tu deixas
Talvez há pouco o pais
Onde do bosque as madeixas
Já têm um flóreo matiz;
Amaste do ar a doçura,
Do azul céu a formosura,
Das águas o suspirar!
Como há de agora entre gelos
Dardejar teus raios belos,
Fumo e névoa aqui amar?
[28] Quem viu as margens do Lima,
Do Mondego os salgueirais,
Quem andou por Tejo acima,
Por cima dos seus cristais;
Quem foi ao meu pátrio Douro,
Sobre fina areia de ouro,
Raios de prata espargir,
Não pode amar outra terra,
Nem sob o céu de Inglaterra
Doces sorrisos sorrir.
Das cidades a princesa
Tens aqui; mas Deus, igual
Não quis dar-lhe essa lindeza
Do teu e meu Portugal;
Aqui a indústria e as artes,
Além de todas as partes
A natureza sem véu;
Aqui ouro e pedrarias,
Ruas mil, mil arcarias,
Além... a terra e o céu.
[29] Vastas serras de tijolo,
Estátuas, praças sem fim
Retalham, cobrem o solo
Mas não me encantam a mim;
Na minha pátria uma aldeia,
Por noite de lua cheia
É tão bela, e tão feliz!
Amo as casinhas da serra,
Coa lua da minha terra,
Nas terras do meu país.
Eu e tu, casta deidade,
Padecemos igual dor,
Temos a mesma saudade,
Sentimos o mesmo amor;
Em Portugal o teu rosto
De riso e luz é composto;
Aqui triste e sem dano;
Eu lá sinto-me contente,
E aqui lembrança pungente
Faz-me negro o coração.
Eia, pois, oh astro amigo,
Voltemos aos puros céus,
Leva-me, oh lua, contigo,
Preso num raio dos teus;
Voltemos ambos, voltemos
Que nem eu nem tu podemos
Aqui ser quais Deus nos fez;
Terás brilho, eu terei vida,
Eu já livre, e tu despida
Das nuvens do céu inglês.
Texto 109
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VECCHI, Carlos Alberto. Soares de Passos. In: A Literatura Portuguesa em Perspectiva: Romantismo e Realismo. São Paulo: Atlas, 1994. v. 3. p. 59-62.
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[59] O cenário poético do Ultra-Romantismo português carecia de figuras que dessem continuidade ao processo literário iniciado por Garrett e Herculano. Os poetas da segunda geração utilizam-se de modelos já explorados pelos predecessores, só que com menos convicção. Cai-se então no plano do egotismo extremado, cujas formas expressivas cada vez mais desgastadas se tornam clichês. E no meio desse quadro pouco animador que se destaca a figura de Soares de Passos, nascido em 1826 e morto em 1860, no Porto. Filho de uma família da pequena burguesia liberal, criou-se num ambiente marcado pelo totalitarismo paterno e pela rigidez moral. Ainda como estudante de Direito, publica os primeiros poemas (“Rosa branca”, “O noivado do sepulcro”, “Desejo”, “Saudade” etc.) no jornal O Bardo, fundado por Xavier de Novais e Pinheiro Chagas, em 1852. Em 1854, depois de formado, trabalha como advogado na Secretaria da Relação do Porto, onde permanece por pouco tempo. Quando seu irmão Custódio fica gravemente enfermo, em 1856. Soares de Passos vê sua saúde, já fraca, mais debilitada e, quatro anos mais tarde, falece com apenas 34 anos de idade.
[60] Dono de obra exígua, o poeta portuense reuniu seus poemas, num pequeno volume, intitulado Poesias (1855), que foi recebido entusiasticamente por Alexandre Herculano. Fundador do jornal O Novo Trovador, cujo primeiro número aparece em 1851, Soares de Passos encarna perfeitamente o mito do mal do século”: misantropo, narcisista e tuberculoso. Espírito dominado pela morbidez, leva ao extremo um dos aspectos do Romantismo: o culto ao grotesco, pagando seu tributo à pieguice, da qual o choro, a queixa e a dolência são testemunho. Compõe seus primeiros poemas, seguindo de perto Byron e Lamartine, como se pode constatar na leitura da primeira estrofe do poema “Enfado”; nele, a ostentação do “eu” e a expressão da sensibilidade pessoal, tornada sentimentalidade pueril, manifestam os sofrimentos e a vida íntima do sujeito poético, ao mesmo tempo que apontam para a busca da compaixão do outro:
Dos homens, ai quem me dera
Longe, bem longe viver!
Junto de mim só quisera,
Como eu sonho, um anjo ter.
Que esse anjo surgisse agora,
E o mundo folgasse embora
Em seu nefando prazer.110
Mesmo em poemas cuja temática lhe é dada pela História Universal (“Catão”) ou pelo medievalismo (“Idade Média”), ou ainda pelo patriotismo (“Pátria”) e pelo social (“O escravo”), o sujeito lírico não se liberta do spleen e do sentimento de morbidez que lhe determinam a visão do mundo:
Terra da minha pátria, ouve o meu brado,
Se inda da vida me resta alento,
Tu, que foste meu berço idolatrado,
Sê minha tumba em teu final momento (“A pátria”).
A pátria invocada pelo sujeito lírico é o pretexto encontrado para o extravasamento do “eu” obcecado pela morte e pela dor, O tom de retórica oratória que sustenta as idéias revela uma sensibilidade que degenera em sentimentalidade piegas. Soares de Passos cultiva igualmente a temática [61] nacionalista. Todavia, como afirma Álvaro Manuel de Machado, “em nada segue a exaltação da Europa, proposta por Victor Hugo. De fato, o seu nacionalismo, se na verdade suplanta geralmente uma conotação histórica, nem por isso se embrenha menos do que Garrett e Herculano na floresta da mitologia do passado nacional”.111 Completando o que o ensaísta diz a respeito do nacionalismo de Soares de Passos, pode-se afirmar que ele foi o único poeta a superar o nível da imitação da poesia cívica de Alexandre Herculano, que, na época, era vista como paradigma do gênero em Portugal.
O sentimento precoce da morte levou o poeta a explorar até à exaustão a poesia funérea. Nela, transparece uma relação de intimidade entre o “eu” poético e a morte. É de sua autoria o poema “O noivado do sepulcro”, um dos textos mais recitados e admirados na época. Nele se encontram clichês e situações estilísticas próprias deste gênero de poesia: a presença da noite, fantasmaticamente transfigurada pelo luar; a metáfora “mansão da morte” e a idéia fixa da morte impregnam o texto de morbidez incontida:
Vai alta a Lua! na mansão da morte
já meia noite com vagar soou.
Que paz tranqüila dos vaivéns da sorte
Só tem descanso quem ali baixou.
Com o agravamento da doença, porém, e a leitura do Système du monde, de Laplace, assiste-se ao abrandamento do idealismo, e Soares de Passos inicia a realização de uma poesia de cunho filosófico muito mais próxima do ideal poético da geração de “70” do que da geração d’O Novo Trovador. Em seu poema “Firmamento”, impressionado com a explicação científica do Universo encontrada no livro de Laplace, arrefece a pieguice ultra-romântica e dá vazão a uma nova experiência vital, como se nota neste fragmento:
Terra, Globo que geras nas entranhas
Meu ser, o ser humano,
Que és tu com teus vulcões, tuas montanhas,
E com teu vasto oceano?
Tu és um grão de areia arrebatado
Por esse imenso turbilhão de mundos
Em volta do teu trono levantado
Do universo nos seios mais profundos.
[62] Como se vê, o poeta liberta-se dos clichês ultra-românticos. Para esta superação, contribui também a influência de Camões, como se pode notar em “Fontes dos amores” e “O Anjo da guarda”, por exemplo. No primeiro, a influência é temática; no segundo, formal, a das Oitavas.
Precursor, em vários aspectos, da poesia de António Nobre, no que esta apresenta de sentimento forte da desgraça e do isolamento, Soares de Passos, a par do tributo pago a sua época, conseguiu encontrar novas formas expressivas e temáticas que vieram retirar a poesia ultra-romântica de seu raquitismo criador. Além disso, explorou mais do que nenhum outro poeta contemporâneo o erotismo, o pessimismo com relação à vida em sociedade, a concepção da mulher angelical, etérea, impossível de ser encontrada na realidade terrena (“Rosa branca”):
E eu amava aquele anjo como se amam
Os sonhos d’inocência d’outra idade,
Ou como essas visões que nos enlevam,
De mundos d’harmonia a que aspiramos.
Texto 110
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LEMOS, Esther de. Introdução. In: CASTELO BRANCO, Camilo. Amor de Perdição. Lisboa: Ulisseia, 1988. 226p. p. 34-54.
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