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Literatura portugues


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[13] Se os textos que deixaram o nome de Almeida Garrett ligado à novelística romântica portuguesa surgiram na década de 1840-50 — queremos referir-nos às Viagens na Minha Terra, publicadas em 1845-46 na Revista Uni­versal Lisbonense, e a O Arco de Sant’Ana, cujos volumes I e II viram a luz em 1845 e 1851, respectivamente —, o seu interesse pela ficção narrativa em prosa datava de há muito: mais precisamente, dos anos do seu exílio no estrangeiro, ocasionado pelas convulsões que conheceu o processo de implantação do liberalismo em Portugal. Comprovam-no, como já tivemos ocasião de assinalar, uma série de abortadas tentativas de romances, conservadas nos papéis do seu espólio, tentativas que, por vezes, não foram além de escassas páginas de texto, se não apenas do sumário apontamento dum esquema de intriga64. O interesse manifestado por este «género» a partir desses anos fulcrais da sua formação como homem e como artista prende-se por uma forma sintomática, segundo cremos, à alteração de visão que nele se deu mediante a experiência que lhe foi dado viver. Só então criou em si a disponibilidade bastante para aderir a práticas literárias que, no nosso con­texto cultural, não tinham obtido ainda seguidores.

Ora o romance moderno assumia aos olhos de Garrett o carácter duma forma verdadeiramente «nova». Explicando-se num artigo inserto em 1827 [14] no tomo I de O Cronista65, apresentava-o, com o drama, como autênticas «criações da literatura moderna», esclarecendo ser um em relação à epopeia o que era o outro em relação à tragédia. E porquê? Porque romance e drama — dizia —, tornando «objecto dos seus quadros» os «costumes, os povos, os sucessos da vida, tais quais sucedem ou podem suceder», «copiam d’après nature, e a natureza própria ou tal qual é, não tal qual a imaginação do poeta a pode conceber». Era, pois, o modo de exercer a mimese que, no entender do jovem Escritor, se alterava nestas formas recentes a ponto de lhes conceder nova índole. À epopeia ou à tragédia, géneros clássicos, repugnava de facto a imitação dessa «natureza tal qual é», pois — explicava, repetindo consa­bidas palavras de teorizadores pretéritos — os artistas procuravam nelas «o belo ideal que da união das parciais belezas formaram para seu tipo». Significam estas afirmações que Garrett justificadamente encontrava o cariz inovador do romance ou do drama modernos na sua captação da concreteza moral e física, captação que naturalmente exigia do escritor uma rejeição da caligrafia clássica em abono duma escrita cuja maleabilidade e despre­conceito se moldassem às anfractuosidades e à «vulgaridade» do real.

Bem verdade é que toda a forma artística se elabora a partir dum sis­tema de equilíbrios mantidos por uma força de coesão radicada na substância íntima do criador, onde se repercutem naturalmente as circunstâncias do seu tempo, do seu espaço, da sua classe, da sua cultura, da sua experiência; pelo que diz respeito à disponibilidade de Garrett para o romance, parece-nos de assinalar que, se a terá facilitado a estadia do Escritor em países onde o género contava já com uma certa tradição, se verificou todavia quando o jovem militante de 1820, enamorado de teorias que pareciam resolver, mas in abstracto, as dificuldades e as incongruências da vida moral e social, se debateu com uma realidade por tal forma premente e desenganadora que esboroou as crenças optimistas do seu espírito na bondade da «augusta» e «alegre» natureza e na eficácia regeneradora da «santa» liberdade66. Pelos anos em que Garrett, afirmando ser o romance um género que praticava a imitação da «natureza tal qual», se mostrava desejoso de cultivá-lo, dizia também ter perdido o «cego entusiasmo» com que ingenuamente cantara «pureza e mimos» de amor e de amizade, ou «enlevos de alma» como o heroísmo, a glória, a liberdade, para «tal como ele é» também ver o homem, à luz da «seca verdade» que a «experiência fatal» lhe desvelara67.

[15] É a percepção do mundo sob a categoria do instável, do paradoxal, do problemático, quando, atingidos os sistemas de valores que o organizavam solidamente, se cavaram fronteiras dificilmente transponíveis entre o foro individual e o exterior, que nos parece traduzir o interesse de Garrett pelas formas modernas de romance e drama.

Do romance «brasileiro» indianista ao romance histórico medievalizante, passando por uma modernização da picaresca e pela novela de tema contemporâneo, Garrett percorreu em imaginação — e desde logo — muitas das possibilidades do novo género68. Só tarde, como já vimos, veio porém a levar a bom termo as duas obras que o ligaram para sempre à novelística — as Viagens e O Arco de Sant’Ana —, nelas cristalizando, aliás, várias das abortadas ideias romanescas que escondidamente lhe tinham trabalhado o espírito.



Embora de diversa índole, muitos traços comuns unem os dois men­cionados textos, que, por forma evidente, se radicam na situação de pro­funda ruptura existente entre a realidade, particularmente a nacional, e Gar­rett; ruptura tão sentida, num homem que apreciava polarizar atenções e se sentia co-responsável do futuro do seu país, que lhe não bastou, para sina­lizá-la na narrativa, efabular uma história passada ou recente, que movimentasse personagens e criasse situações que pertinentemente a traduzissem pelo modo como seriam desenhadas ou resolvidas; numa excelente mani­festação de «egocentrismo» narrativo, — para retomarmos uma expressão de Gérard Genette69 —, sentiu a necessidade de aparecer no tablado para interpelar, comentar, invectivar ou confessar-se, encarnando num narrador que invade o texto, bem longe da atitude passiva de mero doador do dis­curso, O narrador transforma-se assim, nas duas obras, na mais importante e mais fascinante personagem da narrativa, assumindo, para além das funções de contar e de organizar o texto, as de comunicar com o narratário por uma viva forma dialogante e de orientar ideologicamente o discurso através da perspectiva introduzida em todo o universo diegético. Esta é, sem dúvida, a mais notória atitude da narrativa garrettiana.

Nas Viagens, como todos sabem, o livro arranca mesmo com todo o ar de contínua conversa do narrador com o seu público, a propósito da terra e do «tempo» português, vindo a pequena novela da Casa do Vale — conto lhe chama Garrett70 —, que apenas no cap. XI se inicia, a apresentar-se como uma «metadiegese», ou seja, uma narrativa encaixada noutra narrativa mais [16] ampla e nodular na instância da obra. Aliás, as narrativas de primeiro e se­gundo nível acabam por fundir-se num mesmo plano diegético, dado que o narrador vem a encontrar-se e a conversar com algumas das personagens que se tinham movimentado no plano da metadiegese: no cap. XLIII, abandonando Santarém, fatigado e entristecido com o que viu, o narrador revê no Vale a mesma casa cuja janela o fascinara, deparando, junto dela, com a decrépita avó e a severa figura de Frei Dinis, com quem troca algumas pala­vras. É ao narrador, que vimos a saber ter sido «camarada de Carlos»71, que o Franciscano entrega a carta daquele a Joaninha, finda a leitura da qual — leitura que dá azo a uma narrativa de terceiro nível colocada na boca de Carlos — conversam ainda um pouco. Laços diegéticos se criam, pois, entre o narrador e as personagens da acção que efabula (laços que mostram bem como é pertinente distinguir entre narrador e autor); mesmo sem eles, porém, a história da Casa do Vale estaria sempre entranhadamente presa, pela sua semântica, ao discurso que o narrador nos dirige em seu próprio nome, pois esse narrador, quer pelos seus comentários à acção, quer pela simples forma como no-la apresenta — compondo personagens e situações —, a envolve num halo ideológico que a transforma numa documentação escla­recedora e complementar das intenções do seu próprio discurso. As rela­ções entre a narrativa de primeiro nível e a de segundo nível (prolongada por essa narrativa de terceiro nível constituída pela carta de Carlos a Joa­ninha) não são apenas de carácter lúdico, embora tenha pesado sem dúvida na introdução da novela da Casa do Vale no corpo das Viagens o desejo de prender a atenção do leitor de tão enredado livro, aparentemente desconexo. A história de Carlos e de Joaninha e da sua impossível união é um caso, ins­crito no tempo português das lutas liberais, mas também na intemporalidade do drama humano de sempre, que responde nessas duas perspectivas às acusa­ções que o narrador move à ruína moral do País, liberto da omnipotência dos «frades» para. cair nas garras mais daninhas dos «barões», num processo que a seus olhos é mais um episódio dos incoerentes baldões do devir histó­rico, nefastamente entregue a Quixotes ou Sanchos que se vão revezando numa infinda cadeia de prepotências: «por mais belas teorias que se façam, por mais perfeitas constituições com que se comece», «ou com frades ou com barões ou com pedreiros-livres», logo se forma um status in statu, igualmente nocivo quer o comande um idealismo desarreigado do real, quer um descarado utilitarismo que chame loucura aos valores do sentimento e da alma. A história do mundo é a do «‘castelo do Chucherumelo’ — aqui está o cão que mordeu no gato, que matou o rato, que roeu a corda, etc., etc.» — diz, em suma, o narrador, descrente de poder um dia reinstausar-se a ordem e a beatitude do Paraíso, para sempre perdido72. Esta degenerescência que [17] fatalmente polui toda a sociedade é a que ele nos espelha nos caminhos do liberalismo português e, num plano mais restrito, na história de Carlos, como se formulasse uma vasta tese (aliás efectivamente posta no cap. II) que viesse depois a documentar com factos.

Recordemos que esta orientação ideológica que o narrador impõe a toda a narrativa, conferindo-lhe uma profunda unidade temática, se torna, por exemplo, bem visível no cap. XXIV, quando, antes de nos mostrar a impos­sível união de Carlos e Joaninha, nos tece um discurso, impregnado de Rous­seau, sobre a realeza do homem saído das mãos de Deus e o incongruente animal em que se transforma — raquítico, falso, presunçoso — ao mergulhar no «inferno de tolices» da sociedade; e logo nos esclarece de que Carlos, «bom e verdadeiro no primeiro impulso de sua natureza excepcional», caía facilmente na dúvida e na mentira, padecendo, no seu «ser de homem social», da «flutuação inquieta e doentia» que a todos atinge. Assim fica guiada pelo narrador a «leitura» da sua abortada união com Joaninha: ela, fruto daquele rústico vale de Santarém que o narrador intencionalmente nos apresentara já como um paraíso de harmoniosa paz, pelo qual se poderia imaginar «o Éden que o primeiro homem habitou com a sua inocência e com a vir­gindade do seu coração»73, ganha o valor mítico de natureza impoluída e por isso autêntica e una, para quem o tempo é o desenvolver duma perma­nência; ele é o ser partilhado, paradoxal, e por isso mentiroso e fraco, para quem o tempo foi factor de dispersão e degenerescência íntima. Joaninha diz «amo-te» sem reservas nem falsos pudores, pura e íntegra; ele é incapaz de afirmar-se, fragmentado entre presente e passado, desesperando-se com a sua indefinição perniciosa que o leva, enfim, a suicidar-se moralmente pela queda num cepticismo que o transforma em «barão» e político oportu­nista. A salvação de Carlos estava em Joaninha”74, ou seja, no retorno à sua [18] matriz impoluída e «natural»; mas é a impossibilidade dessa regeneração que a novela nos quer mostrar, tal como o narrador, quando fala em seu próprio nome, vinca também a impossibilidade de travar a cadeia ininter­rupta de violências que se gera na voragem social. Assim entendida a novela sob a perspectiva que lhe impõe o narrador, podemos captar muito melhor os sentidos que se abrigam sob os sinais acumulados, por exemplo, em Joa­ninha: não são poetização gratuita, mero adorno literário de intenção este­tizante, o verde esmeraldino dos seus olhos, ou os rouxinóis que a acom­panham, ou a rescendente verdura que a envolve aquando do reencontro com Carlos. Essa cor, donde provêm, como diz Carlos no seu fragmento poético, todos os tons da natureza e que repousa sem jamais fatigar75 — esses pássaros inocentes e alegres — esses aromas rústicos de gramas e macela brava76 — contribuem todos para comunicar ao leitor o significado mítico de Joaninha, que não pode ter outro destino, adentro da desenganada semântica das Viagens, senão o aniquilamento provocado pelo que, em Carlos, representa a doença social.



O Arco de Sant’Ana tem, quando comparado às Viagens, uma maior convergência temática, o que não impede, contudo, que a narrativa se desen­volva também em dois níveis — o do discurso do narrador em seu próprio nome, de novo referente sobretudo à circunstância política portuguesa sua contemporânea, e o da história também por ele efabulada, relativa a aconte­cimentos colocados no século XIV. Esta distância temporal não inibe, porém, o narrador garrettiano, de tão privilegiado estatuto, para o libérrimo exer­cício das suas funções de demiurgo: ei-lo outra vez a comandar ideologica­mente a história que nos relata, quer comentando-a abertamente, quer orien­tando-a de molde a que ela sirva as intenções da primordial mensagem, de oportunidade contemporânea, que nos quer transmitir. Esta evidente orien­tação ideológica que o narrador imprime a todo o discurso retira ao Arco de Sant’Ana qualquer seriedade «histórica». Aliás, o próprio Garrett adverte os seus leitores de que o livro não pretendeu reconstituir severamente o passado, mas reescrever um episódio medieval «sob as impressões» do [19] século XIX, num propósito de «rir castigando» das «pretensões absurdas e anti-evangélicas de certos agiotas do catolicismo» que tentavam levantar de novo a cabeça, abusando da boa fé das gerações que se tinham insurgido contra o devastador filosofisimo das Luzes 1477. Os nexos que voluntariamente são, pois, criados pelo narrador entre o seu tempo e o tempo da história que conta estão na base — como o próprio Garrett lembra para desautorizar todo aquele que quisesse «doutoralmente» julgar a sua obra invocando as «severas regras do romance histórico professo e confesso»78 — dos «cla­mantes anacronismos»79 acintemente cometidos (como esse de fazer recuar Abraão Zacuto aos tempos de D. Afonso IV e de imaginar uma filha sua envolvida em tenebrosa história que viria a pesar no castigo infligido por D. Pedro ao Bispo do Porto). O peculiar humor que enche O Arco de Sant’Ana nasce muito, aliás, desta intencional mistura de «tempos», pela comicidade que resulta das constantes incongruências: personagens e factos do século XIV são equiparados pelo narrador a outros modernos, se é que se não tomam nessa época atitudes ou se manipulam conceitos só possíveis no século XIX. Assim, Vasco, trajando as vestes de «um elegante escolar daquele tempo», é balzaquianamente traduzido na «língua de hoje» por «estudante leão»80. A reunião dos magistrados e do povo portucalense é evocada, no cap. XXXII, por uma forma que remete para as poses e o palavreado político ostentados numa assembleia legislativa moderna. Releia-se, a título de exemplo, o discurso de Gil Eanes, «uma espécie de europeu daqueles tempos e daquele senado», por ser possuidor da «difícil arte de moer as palavras em seco, sem lhes espremer o mais leve chorume de sentido», e de assim triunfar do seu auditório afugentando-o pelo cansaço. E este mesmo Gil Eanes, no final da sua retorcida verborreia, chega a referir-se, num atentado a toda a verosimilhança romanesca, ao que «daqui a alguns séculos» terá de dizer um grande poeta inglês — «to be, or not to be» is...81

O que se nos afigura curioso é que, sendo tão evidentes nas duas obras de Garrett estes privilégios do narrador, mesmo quando de autodiegético passa a heterodiegético (ao contar-nos uma acção em que não participa como actor), se procura todavia defender a sua isenção, autenticando a sua nar­rativa — como tantas vezes acontece na novelística romântica — com do­cumentos ou testemunhos que lhe são alheios: no Arco de Sant’Ana, a [20] his|tória medieval que o narrador nos conta foi, segundo ele informa, extraída «com escrupulosa fidelidade do precioso manuscrito achado na livrada reser­vada do reverendo Prior dos Grilos»82, ficção que mais uma vez permite a Garrett o exercício do humor; nas Viagens, a história da Casa do Vale é contada ao narrador por um companheiro que conhecera a Menina dos Rouxinóis83, sem que o leitor, todavia, ouça nunca a sua voz. A única per­sonagem que, na pequena novela, assume a dada altura, e por espaço con­siderável, a função de narrador é Carlos, na longa carta a Joaninha; conces­são que revela sem dúvida o crédito que ao narrador primeiro ele merece pelas afinidades que entre ambos se pressentem.

Este papel todo-poderoso que nas duas obras desempenha o narrador acompanha-se do lugar importante que nelas é concedido ao narratário, tão frequentemente interpelado como o «amigo leitor», o «leitor benévolo», o «benévolo e paciente leitor» ou as «belas e amáveis leitoras». Vinca-se dessa forma a função de comunicação — que, aliás, exerce sempre o discurso do narrador —, atraindo-se o destinatário a uma recepção mais dinâmica ainda da mensagem que lhe é dirigida, já rica em marcas emotivas (como sejam a subtileza da pontuação a assinalar as inflexões do sentimento, ou a utilização, em determinados contextos, de um dado vocabulário ou de certas imagens84), que expressivamente transmitem ao narratário a atitude do nar­rador perante o que narra.

Esta situação de verdadeiro diálogo tantas vezes criada ao longo do Arco de Sant’Ana e das Viagens contribui para o recurso a algumas atitudes no acto de escrita, que gostaríamos de pôr em foco. Uma, frequente nas Viagens, é a utilização de deícticos, como se o narrador nos quisesse fazer crer que a instância narrativa é contemporânea da diegese evocada e, como se de um acto de fala se tratasse, dirigida a um interlocutor presente. Assim [21] acontece quando lemos: «A real colegiada de Afonso Henriques, a quase catedral da primeira vila do reino, [...] isto?... esse igrejório insignificante de capuchos?»85; ou «Aqui, pegado com o pardeiro rebocado da capela, hão-de [os palácios de Afonso Henriques] ser»86 ou ainda « [...] levantei os olhos, dei com eles na pobre nau Vasco da Gama que está em monu­mento-caricatura da nossa glória naval»87, A este processo que anula, pois, no texto, o jogo temporal entre o que se viveu e o seu relato, associa-se com­preensivelmente o emprego do presente («Mais em baixo, e no fundo desse declive, aquela massa negra é o resto ainda soberbo do já imenso palácio dos Condes de Unhão»88; «Olhem aquela empena clássica [...], vejam a emplas­tagem de gesso [...]»89; «Assim vamos de todo o nosso vagar contemplando este majestoso e pitoresco anfiteatro de Lisboa oriental»90. Eis um dos aspectos da narração que, conjugando-se com todo o displicente saltitar de motivo para motivo, ajuda a criar o clima de espontaneidade que o livro possui, realizando artificialmente, no texto, o que o narrador afirma sobre si mesmo: «Andando, escrevendo, sonho e ando, sonho e falo, sonho e escrevo»91.

No Arco de Sant’Ana, cheio de bom-humor apesar do efeito caute­rizante que se pretendia obter, o narrador exerce ostensivamente as suas funções de organizador da narrativa, justificadas pela necessidade de evocar uma acção alimentada por múltiplos lances, que decorrem em variados locais, embora num tempo escasso, O que é interessante assinalar é o modo como frequentemente as assume, praticando constantes metalepses92 a que associa o destinatário, chamado por mais essa via a uma estreita conivência com todo o universo da obra. Assim acontece, por exemplo, no cap. XXVI, quando, misturados comicamente o nível da narração com o da diegese, lemos (a pro­pósito do silêncio em que foi deixado o destino de Aninhas, depois de ingres­sar no aljube do paço episcopal):
Tenha, pois, paciência a bela Aninhas; por ela e com ela a tenha o leitor benévolo, que antes de corrermos os ferrolhos e de abrirmos os cadeados do aljube episcopal temos de subir outra vez as escadas do paço; [22] de atravessar suas longas salas e de tornar a entrar naquele misterioso e recatado gabinete onde, pouco há, vimos revestir-se de púrpura e armi­nhos, adornar-se de todas as faustosas insígnias da autoridade eclesiástica e feudal o arrogante senhor da nossa terra93;
ou, mais adiante, no cap. XXXII, quando vai ser relatada a assembleia dos deputados do povo:
Entremos nós, amigo leitor, para a galeria, vamos assistir a esta sessão. Já que a uma severa fez dura justiça a nosso pouco mérito e nos não deu augusto recinto onde pousar legalmente nosso assento — e que nós [...] não vamos com as turbas conquistá-lo à força viva, e constituir-nos a nós mesmos em cúria, vamos, leitor benévolo, vamos modestamente para a galeria. Goza-se mais, e no ponto de vista artístico, é muito melhor função94.
Após estas considerações sobre o libérrimo estatuto do narrador gar­rettiano nas Viagens e no Arco de Sant’Ana, gostaríamos de consagrar algumas outras ao modo como se organizam e se apresentam as acções romanescas que essas obras desenvolvem.

Uma primeira conclusão que se impõe é o carácter dramático quê pos­suem, dado o lugar predominante que na sua construção ocupam as cenas, ou seja, os momentos em que o leitor assiste ao próprio desenrolar da acção (particularmente através de diálogos). O acontecido para além delas é habi­tualmente contado em breves sumários, que apenas se alongam quando se torna necessário, por exemplo, esclarecer o passado ou as convicções duma personagem, cujo bizarro comportamento assim se ilumina. É o que acon­tece nos caps. XV e XVI das Viagens, onde, depois de termos visto Fr. Dinis actuar por uma forma um pouco estranha ao lado da velha avó e de Joaninha, nos são fornecidos esclarecimentos importantes sobre o seu pensamento e o seu passado. Aliás, se a figura de Fr. Dinis é assim privilegiada, é por. que representa na novela uma opção ideológica e moral que responde à temática levantada em toda a obra: para além de actor indispensável da tragédia da Casa do Vale, ele representa, no conjunto dos actantes das Viagens, a concretização, numa personagem particular, desse espírito de drástico idealismo, fechado à análise e à consideração da marcha do tempo, que tem como outros avatares o «frade» (oposto ao «barão») ou D. Qui­xote. Outra longa paragem da acção para um recuo explicativo no tempo e constituída, nesta obra, pela carta de Carlos — flash-back que, uma vez já resolvido o drama da Casa do Vale, desvenda as circunstâncias que se encontram por detrás da indefinição sentimental do protagonista. O des­tinatário dessa carta, escrita num evidente propósito de justificação e de [23] [página do manuscrito de «Viagens na minha terra»] [24] ostentação narcísica do eu, que traz inelutavelmente à memória as Confessions de Rousseau, é, em primeiro lugar, a Menina dos Rouxinóis; mas é evidente que se tornam seus destinatários também quer Fr. Dinis e o nar­rador, quer quantos foram envolvidos pelo discurso das Viagens. Notemos, aliás, que, na bem elaborada composição da obra, Frei Dinis apenas re­vela o degradado destino último de Carlos-barão quando todos, com o narrador, conheceram, pela carta a Joaninha, a história íntima do seu cora­ção; a pergunta «E... Carlos?» que, no cap. XLIII, o narrador move ao fran­ciscano, só no cap. XLIX, após o tempo de leitura da epístola, vem a ter a clara resposta — «engordou, enriqueceu, e é barão!...» —, uma vez todos dispostos a perdoarem-lhe, até Fr. Dinis: é de facto depois de ouvir o nar­rador invocar a misericórdia de Deus, maior do que a sua justiça «tremenda» e do que a sua cólera «implacável», que o frade, já conhecedor da carta, se resolve a mostrar-lha, como se o leitor ideal daquela missiva fosse um coração disposto para a tolerância compreensiva95.

Este reservar para uma analepse, inserta quando a acção propriamente dita da novela da Casa do Vale já terminou, das revelações que complemen­tam e iluminam o seu trágico desfecho, permite que o leitor seja até lá pre­dominantemente colocado perante cenas que, sucedendo-se num curto espaço de tempo, dão tensa e movimentadamente, como na literatura dramática, a equação e a solução dum conflito conhecido no seu estado de crise. O pró­prio Garrett, aliás, utilizava terminologia teatral para evocar a construção da sua novela96, cujo desenrolar efectivamente se processa em três «actos»: um primeiro, introdutório (caps. XI-XVIII), que, decorrendo em casa da velha avó, nos coloca perante as personagens e os seus problemas; um se­gundo (caps. XIX-XXV), que nos faz assistir, no Vale, a pequenos quadros de guerra civil e ao idílio de Carlos e de Joaninha, deixando que pressintamos a impossibilidade do seu êxito; um terceiro (caps. XXXII-XXXV), passado numa cela do convento de S. Francisco de Santarém, onde, reunidas todas as personagens, inclusive Georgina, se descobrem os segredos familiares, se conhecem os compromissos de Carlos, se assiste à sua luta intima e, final­mente, à sua desesperada fuga.

No Arco de Sant’Ana é também por forma dramática que se constrói a acção, que se ergue, se enovela e se resolve no curto lapso de dois dias, apesar da movimentada mudança de cenários: iniciando-se na noite em que Gertru­des e Aninhas conversam nas janelas das suas casas sitas ao Arco de Sant’Ana, termina na noite imediata (apenas se segue depois um breve epílogo), com a vinda de D. Pedro à Sé do Porto, onde o Bispo se reunira com o povo para mais uma vez o trair. Entre estas duas cenas — uma introdutória, com a [25] apresentação dos problemas da cidade, e outra conclusiva, com o castigo dos maus e o triunfo dos bons —, desenrolam-se todas as outras, mais ou menos extensas, que permitem que o leitor assista à acção, ajudado por um narrador que tem, para tal, de se impor, como já dissemos, um animado trabalho de régie; trabalho que o obriga, por vezes, dada a impossibilidade de narrar simultaneamente o que em locais separados e com diversos actores decorre, a avançar na intriga para depois recuar um pouco, a fim de agarrar uma sequência interrompida. Assim acontece, por exemplo, no início do cap. VIII, quando o narrador escreve, após nos ter feito acompanhar Vasco, no capítulo anterior, às margens do Douro para um misterioso passeio noc­turno: «Deixemo-lo pois ir, o senhor estudante; e voltemos nós com a nossa história ao sítio donde ela começou [...]»; ou no início do cap. XXVI: «E Ani­nhas? E a pobre Aninhas que está no aljube? Que é feito dela, senhor histo­riador? Deixa-se assim por tanto tempo nas asquerosas enxovias de uma prisão a uma bela rapariga tão interessante, tão boa [...]? »

Esta técnica, acompanhada duma marcada fuga à descrição demorada, e evidentemente a necessária a um narrador que professamente evita também o longo «retrato» de personagens, porque — segundo as suas palavras — mais vale deixá-las «daguerreotiparem-se aos olhos mesmos do leitor, e à luz dos seus próprios ditos e gestos, segundo lhos vamos contando»97. Pressuposto «behaviourista» avant la lettre que se prenderá sem dúvida, como a cons­trução tensa da acção, agarrada nos seus momentos de crise, ao pendor da imaginação de Garrett para o teatro. Já em 1820 escrevia ele, justificando uma juvenil adaptação dramática da Atala de Chateaubriand, aliás abando­nada, que era o teatro a sua paixão dominante, a ponto de «qualquer acção, por pouco trágica, qualquer facto, por pouco ridículo que fosse» lhe susci­tarem sempre «a ideia duma tragédia, ou duma comédia»98.

Assinalemos ainda, na técnica narrativa de Garrett, o seu recurso cons­tante ao suspense, que se conjuga habilmente com a construção dramática da acção romanesca. Se o narrador garrettiano goza do privilegiado estatuto que lhe permite paralisar constantemente a acção com digressões ou inflecti-la para oportunos comentários seus, mantém curiosamente bastante isenção no que diz respeito à acção mesma, deixando que os actores sobretudo a construam, sem que ele se arrogue, como manuseador dos cordelinhos da intriga, o direito de esclarecer todos os seus meandros e mecanismos. Assim, havendo na Casa do Vale um segredo familiar responsável dos grandes dra­mas que a atingem, segredo que pesa sobre todos, mas do qual se não ousa falar por tão horrível, o narrador mantém o leitor, embora espicaçando-o com indícios, no desconhecimento dos factos, até que as personagens mes[26]mas — no caso Fr. Dinis e a velha avó — se encarreguem de o esclarecer. Também as indefinições de Carlos se mantêm até à sua carta final bastante indecifráveis, permitindo que o leitor assista ao seu triste adeus a Joaninha apenas informado pelos dados incompletos e um tanto caóticos que lhe são fornecidos pelos capítulos XXII e XXIII, espécie de inovadora tradução em linguagem do velar nocturno do oficial e da sua rêverie no dia de Abril que lhe sucede. A recusa de esclarecer mais completamente o que se passa, em­bora indiciando eventuais implicações, é, aliás, claramente definida pelo narrador, que, apostrofando as «curiosas leitoras» desejosas de novos dados, uma vez subrepticiamente lançado o nome de Georgina, escreve: «Chamava-se Georgina; e é tudo quanto por agora pode dizer-vos, ó curiosas leitoras, o discreto historiador deste mui verídico sucesso: não lhe pergunteis mais por quem sois»99; e um pouco atrás dirigira-se ao «leitor amigo e benévolo» pedindo-lhe que, ante a flutuação sentimental de Carlos, não acusasse, não julgasse à pressa... Mas só adiante virá a carta esclarecedora e justificativa do herói, como se Garrett quisesse experimentar primeiro a capacidade de indulgente compreensão do leitor, antes de lhe fornecer os dados que pode­riam pesar no seu juízo. Também Cristo — é o narrador quem lembra o passo evangélico — não sentiu necessidade de ouvir a adúltera antes de chamar a atenção dos que tão acerbamente a condenavam para os seus próprios telha­dos de vidro...



No Arco de Sant’Ana, a técnica do suspense é também muito utilizada. Basta lembrar que só quase no final do romance se esclarecem o trágico passado da bruxa de Gaia, os laços filiais que unem Vasco ao Bispo e, final­mente, a identidade da misteriosa personagem em quem confiam os caudilhos da revolta popular para a solução dos conflitos.

Uma trágica história familiar alimenta, pois, nas duas obras, o suspense, permitindo as patéticas agnórises que numa e noutra se verificam. Apesar das divergências que decorrem dos contextos tão distintos em que se enqua­dram, esses reconhecimentos que se dão nas Viagens e no Arco de Sant’Ana têm alguns pontos de contacto que merecem talvez um pouco de atenção: num caso e noutro, um jovem — Carlos ou Vasco — reconhece-se filho dum velho, homem da Igreja e seu devotado mentor, cujo delituoso passado, pouco a pouco pressentido, dolorosamente foi partilhando o moço entre a conde­nação e o afecto; de assinalar, porém, que nem só as mal conhecidas circunstâncias criminosas pesam na separação que se dá entre os velhos e seus pupilos, pois nela se imbricam ainda desajustes de pensamento e de actua­ção: se Frei Dinis velou com zelo pela educação de Carlos, não conseguiu, como pretendia, impedi-lo de pensar e de se deixar seduzir pela atmosfera [27] do século que rotulava de «o da presunção e o da imoralidade»100; se o Bispo cuidou amorosamente de Vasco, cercando-o de tolerância e de benesses, não logrou que ele se fechasse ao apelo da justiça que gritava, em nome do povo, contra os abusos da prepotência episcopal. Os representantes mais vultuosos da. «revolução», no conjunto da acção romanesca, os desejosos de mudar um estado de coisas que, por esta ou aquela razão, se considera nocivo, são pois filhos das personagens onde com mais insistência se encarna esse statu quo, personagens que eles ajudaram a acusar antes de conhecerem os laços carnais que os prendem. Se pensarmos que Garrett foi um militante entusiasta do liberalismo e que viveu mesmo na sua existência pessoal um problema um pouco idêntico ao de Carlos — pois foi formado pelo velho tio, D. Frei Alexandre da Sagrada Família, um «frade» de desenganada e ascética rigidez como Fr. Dinis101 —, poder-se-á concluir que esta insistência na situação romanesca de filho contra pai, em contexto que lhe confere também signi­ficados políticos, traduzirá, além do apreço por uma situação romanescamente rendosa, a perturbação deixada no seu íntimo pela rebelião activa que desen­volveu contra as forças imperantes do tempo em que se criara, rebelião que, no plano familiar, teria originado desencontros particularmente dolorosos com o seu grande formador, aliás sempre venerado? Uma espécie de remorso ou, pelo menos, de «má consciência» parecem revelar as Viagens por de alguma forma, enquanto militante liberal, ter o seu autor colaborado na condenação e proscrição dos «frades», que facilitou o advento dos «barões»: «Brigámos muito tempo, afinal vencemos nós, e mandámos os barões a expulsá-los da terra. No que fizemos uma sandice como nunca se fez outra. O barão mordeu no frade, devorou-o... e escoiceou-nos a nós depois» — pode ler-se no cap. XIII, com a afirmação conclusiva, após ter-se mencionado ainda a falta de ordem estética que fazem os frades à paisagem portuguesa, de tanto terem errado esses Quixotes ascéticos que não souberam compreen­der as «inspirações» e «aspirações» do século, unindo-se maleficamente ao despotismo, como todos aqueles (entre os quais se inclui o narrador) que não entenderam o «desculpável erro do frade», nem tentaram dar-me «outra direcção soda.]». As notas positivas que se acumulam sobre Fr. Dinis102 acompanham, nesta hora em que era já possível fazer com mais perspectiva o cômputo da movimentação do século, essa revalorização da atitude espiri­tual que, nos melhores, conduzira ao reaccionarismo imobilista pela via do ascetismo exigente e da desconfiança escarmentada. Efectivamente, se Fr. Di­nis também peca por duvidar ab initio de qualquer virtualidade boa nas aspirações liberais, mostra-se detentor duma integridade moral e duma [28] inde|pendência que lhe merecem, na boca do narrador, o qualificativo de um «destes raros e fortes caracteres» que «aparecem sempre na agonia das gran­des instituições»103; e não se revelam justos afinal, adentro do universo das Viagens, os seus anátemas à loucura do século, quando também o nar­rador acusa o céptico pragmatismo dos barões, daninha praga saída dos prin­cípios revolucionários? Poderia objectar-se ao que afirmamos que O Arco de Sant’Ana, segundo as palavras de Garrett, foi escrito com a intenção de acusar com violência a «oligarquia eclesiástica» que entretanto levantara de novo a sua nefasta cabeça104. Mas a indignação do Escritor acaba por indi­rectamente provar a «má consciência» de que há pouco falávamos, pois a sua zanga encontra-se na razão directa da sua bem manifesta auto-inclusão entre aqueles que, lamentando ex post facto os excessos iconoclásticos da contes­tação liberal, tinham capitaneado uma salutar «reacção poética e religiosa»105. E, tal como das Viagens se conclui ter a fealdade do «barão» incentivado a revalorização do «frade» austero, também se lê no prefácio do Arco de Sant’Ana que o «lodo de utilitários e agiotas» em que o «corpo da sociedade» acabara «chafurdando» tinha tornado mais intenso o desejo de elevação até Deus, mais belo o «sublime do Cristianismo». Simplesmente, à sombra dessa renovação do espírito religioso para a qual a arte romântica tanto tinha contribuído, certa Igreja, outra vez arrogante, pretendia de novo dispor e perseguir. Assim se, um pouco antes, teria sido «impolítico» e «pouco gene­roso» recordar os açoites de D. Pedro a um mau bispo, em 1844, sob o regime cabralista, era «útil e proveitoso lembrar como os povos e os reis se uniram para debelar a aristocracia sacerdotal e feudal».

De assinalar é, porém, que mesmo neste romance, de tão militante inten­ção, a figura do Bispo não é apenas negativa, nem acolhe só ódio e repro­vação. O prelado «nem mau homem sequer» era, afirma o narrador ao ence­tar o flash-back que nos informa do passado da personagem (caps. XXVII e XXVIII). Se se mostrava tão grande pecador, conhecia ainda nos momentos de solidão a perturbação salutar do remorso. E seria ele completamente responsável da torpeza em que caíra? A sua mocidade decorrera na mais desmo­ralizadora atmosfera — a da guerra civil; depois, imerso entre as riquezas e as prepotências dos grandes a que pertencia, fora, por intrigas de nobres, elevado à prelatura, sem compromisso algum do seu coração. A sua capaci­dade de amor pelo filho, como o seu quase enternecimento inicial ante a suave compostura de Aninhas (cap. XXIX), mostram bem que por baixo da superfície endurecida do seu corpo existia uma «febra sã, viva e sensível» — essa que motivou sem dúvida o amor que Vasco lhe dedica, apesar da sua ignomínia; amor que leva o jovem a suplicar com aflitas lágrimas ao rei [29] pie|dade para o velho desonrado, que envolve até final do mais devotado afecto. Assim tão calorosamente dado, é o perdão de Vasco que acorda na alma do prelado o profundo arrependimento redentor, derramando-lhe no coração um bálsamo capaz de aliviar tanta miséria e tão dura expiação.

Considerada no contexto da narrativa portuguesa mais ou menos coetâ­nea, a novelística de Garrett isola-se singularmente. Quando predominava o romance histórico que se pretendia impregnado da cor do tempo e dando azo a movimentadas intrigas, longas descrições pitorescas e cenas patéticas (lembremos Herculano e Rebelo da Silva), Garrett utilizava liberrimamente o modelo no Arco de Sant’Ana para uma charge a circunstâncias modernas da vida portuguesa que reprovava; e, nas Viagens — a mais rica das duas obras —, adoptava já um assunto nitidamente contemporâneo, traduzindo na forma como postulava os problemas a sua capacidade para argutamente julgar a sociedade nova que ele próprio ajudara a construir. Na desautori­zação que a sua ironia lançou sobre a degradação moral do País, em tantos aspectos demonstrada — desde o falso espiritualismo da literatura imitada e piegas até ao ardor argentário e ao abandono de monumentos e tradições —, sentimos erguer-se a voz crítica que alto clamará anos mais tarde com os homens da chamada «Geração de 70». E que habilidade na construção da densidade semântica desta obra! Num discurso de extrema ductilidade, que deu estatuto literário à linguagem familiar, à inovação expressiva e até às anacolutias e desconexões temáticas da oralidade, convivem a ironia e o lirismo, a invectiva e a confissão, o tom inflamado e a galantaria fátua, logrando-se, através do curioso jogo de narração auto- e heterodiegética que fomos assinalando, a articulação dum destino particular, como o de Car­los, com a marcha duma comunidade nacional, entrevista à luz duma bem moderna visão dialéctica da História. São estas qualidades, aliadas à sobrie­dade e à inventiva, que não deixaram morrer a obra de Garrett, mesmo se a marca, como não poderia


Texto 104

SARAIVA, Antônio José. A evolução do teatro de Garrett. In: Para a história da cultura em Portugal. 4. ed. Porto: Europa-América, 1972. v.2. p. 34-44.

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