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Literatura portugues


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[34] O leitor de que depende o clássico é o leitor experiente e bem dotado, e a obra escolhida por ele oferece uma certa resistência ao tempo e à variação do gosto, precisamente porque foi selec­cionada por aquilo que nela, é menos convencional e menos exterior, mais constante, portanto, na natureza humana.. Por outro lado as leis externas da harmonia e da construção não são muito variá­veis e oscilam provàvelmente entre pólos cons­tantes. O conhecedor literário sente em que medida o artista se aproxima desses esquemas-paradigmas. Há uma época na história literária da Europa em que o escritor, falto de um público comunicável, escreveu para a classe restrita dos seus confrades em letras e dos apreciadores experimentados e cultos; e durante essa época o escritor busca com afã o rigor e a sobriedade da expressão, a econo­mia dos recursos externos, a sua. mais perfeita disposição possível, o mínimo de intensidade emo­tiva dentro do mínimo de recursos — é a época a que se dá o nome de clássica. A análise de alguns sonetos de Camões ou de algumas cenas de Racine exemplificariam o que acabo de dizer.

É neste sentido que afirmo que o Frei Luís de Sousa é uma obra clássica. Escrito para o mencio­nado público de letrados — os quais, como o tes­temunha a criação de Lopes de Mendonça soube­ram compreender a intenção do autor—, Garrett procurou nesta sua obra eliminar o convencional e o nariz-de-cera que abundam nas outras suas peças, ser exacto e sóbrio, cingir-se ao essencial. [35] Resta saber se dentro desta forma havia alguma subsistência, alguma experiência intima e vivida, que perpetuasse o contorno severo da obra. Verificamos no Frei Luís de Sousa, em primeiro lugar, que Garrett reencontrou a sua antiga educação arcá­dica, que permanecia intacta como uma rocha sob camadas de saibro. Muito se tem falado da econo­mia de recursos do Frei Luís de Sousa, da harmonia e do equilíbrio do conjunto, da sobriedade em que, segundo alguns, destoa a cena final da ceri­mónia na Igreja de S. Domingos. Não insistirei neste ponto. É mais importante relembrar o ele­mento trágico que entra na arquitectura da obra.

Por comodidade, oporei a palavra «trágico» à palavra «dramático». O drama, convencionemos, é a luta entre personagens ou dentro da mesma per­sonagem — luta cujo desfecho incerto traz suspensa a curiosidade e a simpatia do espectador. Neste sentido são dramáticas as obras de Racine e de Shakespeare. Se passarmos à tragédia, encontrare­mos não tanto a luta como a expectativa terrifica de um desfecho que se aproxima a passos fatais e contra o qual, para me servir de palavras de Camões, «não vale astúcia humana». A tragédia grega é a história de um fado que brinca com os homens: é típico o caso de Édipo. Os homens bem fazem, bem fogem, bem inventam desculpas e sub­terfúgios — vale tanto como nada. Eles próprios sabem, muito embora finjam o contrário, que o destino os virá colher na rede. E pouco a pouco a face deles, que se fingia despreocupada, vai-se cavando e petrificando nas rugas do terror. Ora é este destino que se aproxima passo a passo e este terror crescente dos humanos que se sabem colhidos na rede a história que Garrett nos conta no Frei Luís de Sousa. Por isso mesmo, o drama quase não tem enredo. Logo de começo se sabe o [36] que vai acontecer; o desfecho é evidente e não interessa ao autor torná-lo incerto por meio de uma intriga complicada. Interessa-lhe antes contar o terror e o pasmo dos homens ante esse desfecho garantido de antemão. A única acção movimentada — a resistência de Manuel de Sousa aos regentes e o incêndio da sua casa — serve para encaminhar as personagens ao ponto preciso em que o destino as quer apanhar: a casa do próprio D. João de Por­tugal, à vista do seu retrato. Em vão D. Madalena resiste, em vão Manuel de Sousa sossega, tentando conjurar o destino pela ignorância inocente do que todos sabem que vai acontecer.

Esta noção do destino pertence à camada mais constante da individualidade literária, de Garrett. O mito de Édipo encontra-se disfarçado em mais de um lugar da sua. obra. No Catão, o protagonista Bruto tem uma história interessante: ele é filho espiritual de Catão, mas também é, sem o saber, filho carnal de César. Um dia sabe-o e nesse dia nasce um futuro trágico, porque Bruto será o assassino de seu próprio pai. Isto não é tudo: Bruto será parricida para vingar Catão e a Repú­blica, mas reconhece agora que os seus crimes são a herança fatal que recebe com o sangue de César, culpado de muitas mortes e assassino de sua pró­pria mãe: Roma.

O crime de Bruto aparece assim como um des­tino involuntário. E muitos anos depois, o Carlos da novela das Viagens encontra-se numa situação semelhante. Sem o saber, é filho do frade que odeia, e no dia em que o sabe tenta assassiná-lo. O pai é, por sua vez, o causador da morte de sua mãe. E ainda na história de Maria de Noronha, no Frei Luís de Sousa, há alguma coisa disto. Ela admira o cavaleiro de Cristo que não sabe que foi marido de sua mãe; deseja o regresso de D. Sebastião e [37] dos seus, e dir-se-ia que o seu pensamento invoca os espectros que virão separar seus pais, matá-la a ela mesma. E há nisto uma certa justiça imanente — melhor, um certo destino vingativo —, porque afinal é a punição do crime de sua mãe que ela atrai sem o saber.

Sob tais variadas formas se exprime um mesmo tema: a existência de um fado superior à vontade humana e às continências da luta — tema herdado da. tragédia grega. e que salta sobre vários séculos da história do teatro, sobre Shakespeare e Racine, para vir acolher-se em 1843 no Frei Luís de Sousa. Até que ponto é isto uma estratificação ainda convencional, sugerida pela imitação dos modelos gregos, um recurso espectacular, em última análise?

Convém analisar o terceiro elemento que Gar­rett recebeu do teatro clássico: o conflito psicoló­gico suscitado pelos dilemas perante os quais são colocadas as personagens. Este terceiro elemento realiza-se particularmente na figura de Telmo Pais, que Garrett interpretou pessoalmente na represen­tação particular da peça.

Telmo Pais tem de escolher entre Maria, que ele criou, e D. João, que ele também criou e a quem deve, além disso, fidelidade de escudeiro. Mas o que faz deste caso uma novidade na história do teatro é que Telmo Pais, na realidade, não tem de escolher, ele está de antemão decidido. A perple­xidade perante o dilema é apenas a forma exterior com que Garrett revestiu uma coisa bem diferente daquilo que o teatro clássico conhecia. Telmo Pais, amo e criado de D. João de Portugal, era o seu maior amigo, e nenhuma criatura sofreu tanto como ele o seu desaparecimento; opôs-se quanto pôde a. que a sua viúva casasse segunda vez e não lhe pôde perdoar a infidelidade para com o amo, cuja morte se recusou sempre a aceitar. O resto dos seus dias [38] é consagrado ao culto do desaparecido, a quem levanta no seu coração um altar. E lentamente os dias vão passando, a imagem de D. João vai-se-lhe entranhando na alma, tornando-se com o tempo talvez mais rígida, mais nítida, mais adorada. O tempo só fazia aumentar a adoração. Mas deste casamento abominado nascera uma criança. Quis o destino que Telmo também fosse o amo dela, e o eu coração cresceu com este novo amor. Mas pode Telmo continuar a não acreditar na morte de seu amo? Porque se ele é vivo e voltar, que será feito .a sua menina? Órfã e desgraçada é o que ela será, segundo a moral da época. Durante muito tempo Telmo não chega a ter consciência clara desta cont­radição. Conserva os círios acesos no altar de D. João — mas, no fundo, desejará a sua vinda? Os círios, que ele não deixa apagar, não serão, real­mente, círios à imagem de um morto a quem desta maneira se paga uma divida e se pede perdão por continuarmos a viver? É o que se verá quando D. João chegar.

No momento culminante, o pobre Telmo Pais descobre que no fundo da alma desejava que João tivesse continuado morto. O seu reapareci­mento transtorna-lhe a sua verdadeira vida. E Garre­tt leva o drama desta personagem às suas consc­iências últimas, porque é ele a mandado de João, é verdade, mas com uma satisfação secreta cheia de remorsos —, é ele quem vai à última hora espalhar que o Romeiro é um impostor. ele, afinal, e isto é terrível, quem vai matar definitivamente seu amo, ele, o único que lhe não tinha acreditado na morte e que fizera votos pelo seu regresso, o único que pode testemunhar a sua vida.

Se esta interpretação é verdadeira, Garrett põe mediante esta personagem um problema, que é novo, [39] na história do teatro. Telmo Pais tem uma perso­nalidade fictícia, convencional, e por baixo desta uma personalidade autêntica. A personalidade fic­tícia, construída, feita da nossa vida passada, coe­rente, é aquela. que nós próprios nos atribuímos e aquela com que figuramos nos actos correntes da vida. Mas a outra personalidade, secreta, que nós próprios às vezes não conhecemos, é a que vem a superfície nos momentos de crise e ante o nosso próprio espanto. Telmo quer ser coerente com o seu passado; a imagem em que ele próprio se cons­truiu foi a do escudeiro fiel: com essa máscara o vêem os outros e se vê ele próprio a si. E um dia esta imagem é quebrada como uma capa de gelo, e a onda da vida jorra. Já tive ocasião, noutro tra­balho, de chamar a atenção para certos pontos de contacto entre este caso de Telmo Pais e o caso de Carlos, da novela das Viagens.. Carlos esforça-se por construir uma personalidade coerente e fixa, segurar-se a uma saudade ou a um amor; mas constantemente esta construção se descongela, um novo amor mata a saudade, ou sucede ao amor antigo, que a ausência estancou. Este fluir permanente da personalidade e a impossibilidade de o deter são o sofrimento e a desgraça de Carlos. Não chegando a segurar-se e a definir-se, acaba num suicídio moral. A diferença entre Carlos e Telmo está sobretudo em que a situação de Telmo tem de ser. mais tea­tral e revelar-se num momento de crise: há. uma mudança brusca de estado. Em Carlos, personagem de romance, o descongelamento é contínuo.

A crise de Telmo Pais, como já ficou notado, reveste normalmente o aspecto da perplexidade causada pelo dilema e filia-se nesse conhecido processo do teatro clássico: Mérope tem de escolher entre a fidelidade ao marido e a vida do filho, como Telmo entre a morte de D. João e a desgraça de Maria. Mas no teatro clássico há dois sentimentos que lutam no mesmo plano de consciência e de sinceri­dade, ao passo que em Garrett se trata de duas camadas da personalidade incompatíveis e de va­lores muito diferentes. O protagonista não tem de escolher ou decidir, antes, mau grado seu, descobre-se de golpe a si próprio, como se uma força estranha lhe arrancasse de súbito o véu. E uma vez que se descobriu, tornou-se já outro e não se reco­nhece. Em suma, a novidade de Garrett está em que é a própria unidade e coerência do eu que ele põe em cena.

E aqui aponta pela primeira vez um teatro den­tro ainda das formas do teatro antigo, mas que tem um conteúdo muito diferente do seu. O teatro grego fora a história do Fado contra o Homem; o teatro raciniano é a história das paixões humanas desencadeadas pela acção e reacção dos homens entre si. Este novo teatro é a história da auto-revelação do homem e o espectáculo da sua mudança. Essa auto-revelação é provocada por um acontecimento externo — como uma pedra num lago, pedra que o destino envia aparentemente para se divertir com o espectáculo das consequências. Na realidade, destino é aqui um agente dócil do autor, que prec­isa de um acontecimento que venha perturbar o equilíbrio da personalidade convencional da sua personagem. O autor utiliza o destino para conseguir os seus fins. Notai, com efeito, que a intriga, acção, o choque dos caracteres, perdem aqui a [41] sua importância. A crise está latente dentro do protagonista e só espera um acontecimento exterior que a. desencadeie. A outra personalidade desco­nhecida de Telmo Pais lá estava, mas nunca se teria revelado se o destino não enviasse o Romeiro: D. João foi a pedra no lago. Não é na intriga humana, na concorrência entre os homens, na. so­ciabilidade, que esta secreta personalidade se des­venda. Na luta, o que se afirma é o nosso eu objec­tivo, o nosso eu construído. Ela tem, portanto, um papel muito reduzido neste novo tipo de teatro que Garrett fez nascer dentro dos quadros do teatro antigo. Por isso mesmo, a Fatalidade grega, obnu­bilada durante a época clássica do teatro moderno, volta, no Frei Luís de Sousa, a. entrar em funções.

Recapitulando: o Frei Luís de Sousa caracte­riza-se formalmente pela intervenção do Fortuito (Fatalidade grega), o que tem por contrapartida a ausência de intriga humana; psicològicamente, pelo estudo da dissolução e decomposição da perso­nalidade. Estes dois aspectos são complementares, porque desde que a personalidade se fecha ao mundo exterior só um acontecimento fortuito pode produzir nela uma mudança de estado.

Para aceitarmos esta interpretação do Frei Luís de Sousa precisamos de partir da ideia de que Telmo Pais é a sua personagem central, ideia que certamente repugnará a muitos. Na verdade, o Frei Luís de Sousa está ainda muito preso à imitação do teatro clássico, e é natural que o próprio Gar­rett não tivesse tido consciência da coisa nova e original que tinha criado — caso vulgar entre os grandes artistas. Mas parece-me incontestável que nenhuma outra personagem do drama tem o inte­resse desta; que ela é a que menos se pode explicar pela imitação de modelos; e há razões para pensar­mos que Garrett pôs nela a sua. experiência íntima.

[42] Se quisermos ir além do que Garrett aprendeu nos clássicos, à procura da semente viva com que ele fecundou a herança do teatro clássico, temos de interpretar o Frei Luís de Sousa como se ele esti­vesse disposto em torno deste ponto vital. Só assim na matéria criada do Passado poderemos entrever os lineamentos do Futuro.

Tal é o novo tipo de drama que Garrett esbo­çou no dia em que deixou de escrever para o pe­queno público dos frequentadores doe teatros e se dirigiu ao público de interesses mais amplos, cons­tituído pelos escritores, artistas, críticos, do seu país. Aparentemente, tal mudança de público per­mitiu a Garrett regressar às fórmulas arcádicas dentro das quais se educara e que estavam esque­cidas, fora de moda para os incultos e inexperientes frequentadores das plateias. E, de facto, tendo-se libertado da necessidade de se sujeitar àquela pseu­do-élite, de limitadas ideias e limitados interesses, Garrett pôde ser mais fiel a si próprio do que o fora até então, dar vazão à sua experiência íntima e esboçar um novo tipo de drama.

Tem-se dito muitas vezes que o Frei Luís de Sousa é uma obra sem paralelo em todo o teatro romântico europeu. E se recordarmos que as causas da decadência do teatro são as mesmas por toda a parte — que o Cyrano é mais rico e perfeito que Os Dois Renegados ùnicamente porque a burguesia francesa é um pouco mais rica e selecta do que a. nossa —, as razões que explicam a singularidade la obra em relação ao teatro português explicam-na também em relação ao restante teatro europeu do Romantismo.

Mas não basta explicar porque é que o Frei Luís de Sousa é uma excepção; noutros termos, porque é que o Frei Luís de Sousa não é uma obra típica do teatro romântico. Dentro do critério que [43] propus no começo desta palestra, nós precisamos de explicar porque se orienta o Frei Luís de Sousa na direcção que sugeri — explicar não só o que lá não está, mas também o que lá está. Esta confe­rência não pretende ser um tratado, mas não queria concluí-la sem sugerir ao menos uma resposta àquele problema, para afirmar a minha. convicção de que uma excepção não é a. mesma coisa que um milagre e de que há sempre um caminho, mais ou menos patente, para abordar racionalmente os pro­blemas.

A novidade do Frei Luís de Sousa está, como tentei mostrar, na autonomia e espontaneidade do indivíduo. É um drama do eu, na parte que res­peita a Telmo Pais. O problema aqui posto é, como na novela de Carlos e Joaninha, o da unidade e coerência do eu. O autor coloca-se dentro de um ponto de vista tal que — como se percebe mais nitidamente na novela — os acontecimentos pare­cem causados pelo facto de o eu na sua espontaneidade absoluta se desenvolver de certa maneira. O mundo exterior é apenas a matéria passiva de que o eu se apropria para o seu crescimento, ou a Fatalidade cega que torna patentes as suas contra­dições internas. Há um contraste entre este ponto de vista e o do teatro de Racine, no qual o drama­turgo vê os múltiplos caracteres dos figurantes como peças num xadrez — correspondendo a cada movimento, um contramovimento, a cada peça uma peça oposta, a cada acção uma mudança e reajus­tamento de situações mútuas.

Ora quem não vê imediatamente no papel e na posição do indivíduo, tal como no-lo apresenta o Frei Luís de Sousa, uma analogia com o romance romântico e a poesia romântica? História do eu absoluto, autónomo, espontâneo, causador único e fatal do seu próprio destino — tal é, em última [44] aná|lise, o miolo do romance e da poesia romântica de que o Garrett das Viagens e das Folhas Caídas é entre nós o mais típico representante. Garrett limitou-se a transportar para o teatro esta concep­ção. A novidade consistiu em pôr o drama a expri­mir os mesmos problemas e ideais que o romance e a poesia seus contemporâneos. Mas para isto Garrett teve de saltar por cima do público fre­quentador de espectáculos, que, por motivos já ex­postos, era diferente do público do romance e da novela.


Texto 105

HERCULANO, Alexandre. “A cruz mutilada”. In: Poesias. 14. ed. Lisboa: Bertrand, s. d. p. 92-101.106

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