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Literatura portugues


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[23] Como tem sido insistentemente afirmado, as Viagens na Minha Terra são uma obra única na Literatura portuguesa, quer pela estrutura, quer pelo estilo. E esta obra híbrida e complexa (a que um tanto convencionalmente se tem chamado romance) — misto de narrativa de viagens, de crónica jornalística, de autobiografia, de comentário político, de novela sentimental — concilia em si as facetas dominantes da personalidade de Garrett, os seus interesses e preocupa­ções; e nela convergem e se realizam, em superior equilíbrio estético, as vivências do autor e a sua experiência literária, numa afirmação original de individualismo, que caracteriza as suas obras de maturidade, e a que não é alheia a influência de Goethe.

Estilisticamente, a grande inovação da obra consiste, como veremos, na criação de uma nova linguagem literária, já anunciada no Prefácio à Lírica de João Mínimo, e que deriva não só da prática jornalística do autor, mas também do seu conhecimento aprofundado da língua portuguesa, quer da língua verná­cula, que estudou através da leitura dos clássicos portugueses, quer da língua popular, para a qual o atraiu o seu nacionalismo estético. E este romance exprime também, de maneira atraente e original, a personalidade do autor, num exibicionismo, simultaneamente coquette e irónico, calculado e inconsciente, como se, sob a aparente espontaneidade da linguagem e a dispersão temática, também aparentemente involuntária, o autor fosse movido por uma mais pro­funda intenção: justificar-se aos olhos do leitor e, talvez, aos seus próprios olhos.

Mas para compreender esse «despropositado e inclassificável livro» (segundo as próprias palavras de Garrett), torna-se necessário recordar a sua génese, pois as circunstâncias que mais directamente o motivaram e o género de publicação a que inicialmente se destinava explicam o carácter digressivo da obra, assim como a pluralidade de temas e a liberdade que presidiu à sua ordenação.

Em 1843, de Agosto a Dezembro, em plena ditadura de Costa Cabral, a Revista Universal Lisbonense, dirigida então por António Feliciano de Casti­lho, publicou em folhetins os seis primeiros capítulos de um romance, da autoria de João Baptista de Almeida Garrett — Viagens na Minha Terra. Interrom­pida a publicação e só retomada em Junho de 1845, todos os capítulos, incluindo os seis já anteriormente publicados, estavam impressos, também em folhetins, na [24] mesma revista, em Novembro de 1846. Nesse mesmo ano, vem a lume a primeira edição independente, em dois volumes, mas o texto apresentava correc­ções relativamente ao dos folhetins.

A obra revelava, porém, certa ambiguidade, não só ao nível da estrutura, na medida em que se afastava dos modelos literários mais em voga, não respeitando os princípios estéticos que presidem à classificação dos géneros literários, mas, sobretudo, porque se prestava a uma leitura política imediata.

Com efeito, o romance é constituído fundamentalmente pelo relato de um facto verídico: a viagem de Garrett, de Lisboa a Santarém, para visitar Passos Manuel, o ex-chefe dos setembristas, e, consequentemente, o principal opositor à ditadura de Costa Cabral. No entanto, embora a opinião pública atribuísse a essa visita um objectivo político, nada prova que fosse essa a intenção de Garrett, ao aceitar o convite que o amigo lhe dirigira, em 6 de Julho desse ano. E ele próprio confessa, no I capítulo das Viagens, as razões de tal decisão: «Abalam-me as instâncias de um amigo, decidem-me as tonterias de um jornal, que por mexeriquice quis encabeçar em desígnio político determinado a minha visita.»

No entanto, a ambiguidade que envolveu a visita de Garrett é habilmente explorada no romance, onde o autor revela a sua arte consumada em despertar a curiosidade do leitor e em mantê-lo na expectativa, no fim de cada folhetim. (Recorde-se que cada capítulo correspondia a um folhetim, pormenor a ter em conta na análise da estrutura da obra.) E, certamente com o mesmo intuito — confundir os leitores apenas atraídos pela curiosidade política —, Garrett evidencia, logo de início, o valor literário do romance, que abre com uma citação de Xavier de Maistre (1763-1852) e uma referência à sua principal obra, Voyage autour de ma chambre (1795), apresentada ao leitor como inspiradora das Viagens; também no prefácio que precedia a nova publicação dos folhetins, em 184S, volta a citar aquele escritor francês e ainda os humoristas ingleses Swift (1667-1745) e Sterne (1713-1768), cuja Sentimental Journey through France and Italy (1787) deve ter influído consideravelmente na elaboração das Viagens. E no prefácio anónimo, mas redigido por Garrett, que antecede a primeira edição do romance insiste na mesma ideia: «Em obras literárias e ricas do género desta, o estilo é o fundo principal e às vezes o todo; a doutrina «ocupa o segundo lugar e às vezes nenhum.» Mas uma tal insistência na defesa e valorização do elemento estético pode também significar que Garrett, artista e consciente, reconhecia a originalidade do romance, ultrapassava os padrões da época, na medida em que alargava o conceito de literatura à linguagem baseada no código oral e às impressões de viagem que, aparentemente, se poderiam confundir com uma reportagem.

«São 17 deste mês de Julho, ano da graça de 1843, uma segunda-feira [...]. Seis horas da manhã a dar em S. Paulo, e eu a caminhar para o Terreiro do Paço» — assim se inicia, com a precisão de uma obra histórica, a narrativa da viagem, de que Garrett é simultaneamente o protagonista e o narrador. Para a [25] tornar mais real, evidencia-se a coincidência entre o eu biográfico e o eu artístico: o homem e o artista, identificando-se, produzem um relato que encanta pela variedade de motivos: realistas, líricos, humorísticos, históricos, artísticos, literários e políticos; mas todos exprimem o amor por tudo o que é nacional, genuíno, marcadamente português.

Com o que enriquece e dá originalidade a esta narrativa da viagem de Lisboa a Santarém são as digressões ou divagações do narrador, que, a propósito do que vê ao longo do itinerário do passeio, comenta, medita, evoca, num «monólogo dialogado» com o leitor (ou a leitora...), cuja presença pressupõe, e a quem interpela directamente, como se o leitor, obrigado a participar, entrasse no plano narrativo e se tornasse personagem.

Na verdade, no início do I capítulo, Garrett adverte: «Vou nada menos que a Santarém; e protesto que de quanto vir e ouvir, de quanto eu pensar e sentir se há-de fazer crónica.» Assim se justifica o título no plural — Viagens, pois não se trata só de uma viagem até ao Ribatejo, mas de viagens pela história, pela arte, pela tradição e pela literatura portuguesas; e assim Garrett criou o estilo digressivo, aparentemente espontâneo, como se a obra se organizasse na presença do leitor, com quem dialoga familiarmente, em tom despreocupado, como se brincasse, mas a quem simultaneamente se confessa, num tom íntimo, que parece verdadeiro.

Mas as Viagens na Minha Terra não são apenas constituídas por esta narrativa principal ou crónica da viagem, aproveitada habilmente por Garrett para exibir perante o leitor a cultura, o gosto, a sensibilidade estética, a experiência humana e o à-vontade de «um verdadeiro homem do mundo, que tem vivido nas cortes com os príncipes, no campo com os homens de guerra; no gabinete com os diplomáticos e homens de Estado, no parlamento, nos tribunais, nas academias, com todas as notabilidades de muitos países — e nos salões enfim com as mulheres e com os frívolos do mundo, com as elegâncias e com as fatuidades do século», como ele próprio escrevia no prefácio à primeira edição das Viagens.

Com efeito, encaixada nesta narrativa principal ou crónica, e alternando frequentemente com ela, encontra-se uma segunda narrativa — uma novela sentimental, a «história da Menina dos Rouxinóis», assim vulgarmente desig­nada, embora tenha por protagonista uma personagem masculina, Carlos.

Narrada a Garrett, após a chegada ao Vale de Santarém, por um compa­nheiro de viagem (em relação a este narrador, Garrett torna-se ouvinte; mas, relativamente ao leitor, continua a ser narrador, pois é ele quem conta a história), a novela desenrola-se desde o capítulo X, que pode considerar-se a sua introdução, até ao último capítulo do romance, mas em alternância com o plano da viagem. No entanto, a partir do capítulo XLIII, os dois planos (plano da viagem e plano da novela) fundem-se, pois Garrett, o protagonista da viagem, encontra as personagens da «história da Menina dos Rouxinóis» e, dialogando com uma delas, adquire ele próprio o estatuto de personagem.

[26] Com efeito, é preciso não esquecer que a narrativa da viagem se baseia num facto verídico e as suas personagens são reais; a narrativa encaixada, a novela, é obviamente uma obra de ficção, embora Garrett se esforce por apresentá-la como verídica, tão verídica como a sua viagem, e por isso considere o narrador da novela como «historiador» («o historiador que tantos capítulos nos reteve no vale, contando-nos os sucessos de Joaninha e da sua família»). Assim, por este artifício da narração, realidade e ficção fundem-se nas Viagens na Minha Terra, de acordo com a ideia defendida pelos Românticos: identificação entre Vida e Literatura.

Mas nas Viagens há também dois tempos narrativos: o tempo do discurso, isto é, da narrativa produzida por Garrett, relativamente ao plano da viagem; e o tempo da novela, que não é linear, mas está sujeito a recuos, a rápidos avanços, de acordo com o desenvolvimento, mais lento ou mais rápido da acção. O primeiro, o tempo do discurso, tem os seguintes limites, indicados pelo narrador: de 17 a 22 de Julho de 1843, de segunda a sábado. (Embora se saiba, por informação de um biógrafo de Garrett, que este passeio durou nove dias, não nos interessa o tempo cronológico, mas sim o tempo narrativo.) Quanto ao tempo da história ou da novela, as primeiras cenas (capítulos XI, XII, XIV) situam-se no Verão de 1832, mas, pela técnica narrativa, a acção recua no tempo (1830), para regressar a 1832 e depois avançar rapidamente até 1834; a partir do capítulo XLIII, os dois tempos coincidem, tal como os planos narrativos.

Após a localização temporal, que tem a função de criar uma atmosfera de presságios, na medida em que a sexta-feira está ligada à superstição popular, o Leitor trava conhecimento com as personagens, à excepção de Carlos, e os seus retratos físicos e morais dão origem a comentários do ouvinte-narrador. O capítulo XVI é constituído pela narrativa do passado das personagens, o que explica o recuo no tempo: em 1830, Carlos, o protagonista, formado em Direito e convertido ao Liberalismo, emigra. Mas o capítulo XVII situa-se novamente em 1832, oito dias após a primeira cena apresentada, portanto também numa sexta-feira. Nos capítulos XVIII e XIX, relatam-te rapidamente acontecimen­tos da guerra civil entre Liberais e Absolutistas, posteriores ao Verão de 1832, até que, em Abril de 1834, o Vale se encontra ocupado pelos exércitos rivais, o que dá origem ao encontro entre um oficial dos Constitucionais, Carlos, e sua prima, Joaninha. O capítulo XXVI, que coincide com a chegada de Garrett a Santarém, marcava o fim do 1.º volume, na primeira edição.

Os primeiros capítulos do 2.º volume iniciavam-se com a narrativa da visita a Santarém e só no segundo dia da estada (19 de Julho) a novela recomeça (capítulo XXXII), mas com novo cenário: uma cela do Convento de S. Francisco, em Santarém. O leitor conhece então outra personagem: Georgina, a inglesa. Os capítulos XXXIV e XXXV são os mais importantes no desenvolvi­mento da acção da novela, visto que nos são revelados segredos de família que preparam o desenlace, isto é, a catástrofe. Depois de nova interrupção na novela, aproveitada pelo narrador da viagem para, a pretexto das visitas a [27] Santarém, criticar o desleixo dos Portugueses, esta prossegue no capítulo XL, com uma cena passada no Convento das Claras, de Santarém, também em 1834, cena habilmente aproveitada por Garrett para, numa crítica indirecta à expulsão dos religiosos, comentar: «Os tempos são outros hoje: os liberais já conhecem que devem ser tolerantes, e que precisam de ser religiosos.»

No capítulo XLIII, Garrett, já de regresso a Lisboa (desembarcará no Terreiro do Paço, às cinco horas da tarde do dia 22 de Julho, depois de ter pernoitado no Cartuxo, conforme declara no ultimo capítulo do romance), encontra-se no Vale e dialoga com Frei Dinis: é sexta-feira, dia 21 de Julho. E os capítulos XLIV a XLVIII são preenchidos com novo encaixe: uma narra­tiva retrospectiva de análise psicológica (a carta de Carlos), que se integra simultaneamente nos dois planos narrativos: completa a novela, porque justifica as atitudes do protagonista e esclarece a sua maneira de ser; liga-se à narrativa principal, na medida em que o leitor da carta, Garrett, se identifica com a autobiografia de Carlos, como se ele próprio estivesse a desvendar, não a Joaninha, mas ao leitor, o seu drama pessoal.

Efectivamente, neste ano de 1843, Garrett atravessava uma crise moral: debatia-se entre a fidelidade à memória de Adelaide Deville Pastor, que lhe dedicara a mocidade e lhe deixara uma filha, e a paixão nascente pela Viscon­dessa da Luz, a inspiradora das Folhas Caídas. No capítulo XI , Garrett alude, em tom meio jocoso, meio sério, a esse dilema: «... eu que já não tenho que amar neste mundo senão uma saudade e uma esperança — um filho no berço e uma mulher na cova [...]. E posto que hoje, faz hoje um mês, em tal dia como hoje, dia para sempre assinalado na minha vida, me aparecesse uma visão, uma visão celeste que me surpreendeu a alma por um modo novo e estranho .. . » E, exactamente no parágrafo seguinte, inicia-se a «história da Menina dos Rouxi­nóis», cujo protagonista é Carlos, projecção literária de Garrett.

Ora o drama de Carlos reside na instabilidade afectiva, na inconstância amorosa. Carlos é um homem dividido por sentimentos contraditórios e inconci­liáveis, partilhado entre o passado, o amor de Georgina (o diálogo entre ambos é revelador desse conflito), e Joaninha, a quem, e Carlos sabe-o bem, não poderá ser fiel, de cujo amor não é digno: «... Conheci que era a ti só que eu tinha amado sempre, que para ti nascera, que teu só devia ser, se eu ainda tivera coração que te dar, se a minha alma fosse capaz, fosse digna de juntar-se com essa alma de anjo que em ti habita.» Conclui-se, pois, que, sob o à-vontade, o tom frívolo e humorístico, as Viagens reflectem um conflito moral e psicológico grave, tão grave que a novela sentimental que o exprime obedece ao esquema aristotélico da tragédia.

Se analisarmos a «história da Menina dos Rouxinóis», verificaremos que nela existem efectivamente dois conflitos e dois protagonistas distintos, embora ligados por laços de sangue: Frei Dinis e Carlos. O primeiro, dominado por um amor pecaminoso, é vítima do Destino, tal como o protagonista da tragédia grega, e o seu caso inspira temor e compaixão. Embora viva acabrunhado de [28] remorsos, não é realmente culpado das desgraças que provocou, e resgata-se aos olhos do leitor pela sua coragem moral e pelo sofrimento, às vezes expresso por atitudes melodramáticas e em tiradas solenes e algo retóricas.

Embora Carlos participe da tragédia da família e esteja marcado por ela, o seu conflito é diferente, porque é pessoal, independente do conflito familiar: Joaninha e Georgina são vítimas da sua maneira de ser, da sua incapacidade de amar, de se fixar afectivamente, porque, amando simultaneamente várias mulheres, Carlos só se ama a si mesmo. Por isso a tragédia de Carlos, em contraste com a de Frei Dinis, é toda interior, só o próprio a conhece por um esforço de análise psicológica: «Eu sou um monstro, um aleijão moral [...]. Tenho espanto e horror de mim mesmo.» Mas Carlos, como todos os heróis românticos, compraz-se nessa deformidade moral, orgulha-se do seu coração «grande demais», na medida em que assim se torna diferente do homem vulgar.

Mas, embora Carlos, ao contrário de Frei Dinis, se possa considerar responsável pelo sofrimento que provoca, Garrett, ouvinte-narrador dentro da estrutura da novela, tenta desculpá-lo: Carlos é um «ingénuo», em luta com a hipocrisia social, de acordo com omito do «bom selvagem», difundido pela obra de Rousseau: «Poucos filhos do Adão social tinham tantas reminiscências da outra pátria mais antiga, e tendiam tanto a aproximar-se do primitivo tipo que safra das mãos do Eterno, forcejavam tanto por sacudir de si o pesado aperto das constrições sociais, e regenerar-se na santa liberdade da natureza, como era o nosso Carlos.» Indivíduo naturalmente destinado a uma vida simples e pura («Eu sim tinha nascido para gozar as doçuras da paz e da felicidade domésti­ca ...»), Carlos reconhece-se ainda vítima do destino: «Eu não me fiz o que sou, não me talhei a minha sorte, e a fatalidade que me persegue não é obra minha.» Assim Garrett, pelas palavras de Carlos, se desculpava a si próprio. E, simultaneamente, ao criar zona personagem que se analisa, que se debruça sobre uma dualidade Intima sem solução, Garrett, ultrapassando os limites impostos ao herói romântico, introduzia na literatura portuguesa um novo tipo de perso­nagem: o herói moderno, complexo e lucidamente frustrado.

Com efeito, a modernidade de Carlos é uma das inovações desta novela sentimental que entronca na tradição literária portuguesa, devido ao cenário bucólico e idílico e ao lirismo que se desprende da figura de Joaninha, descen­dente directa da «menina» dos Cancioneiros trovadorescos, e criada à imagem da «menina e moça» da novela de Bernardim Ribeiro, autor evocado por Garrett na introdução à «história da Menina dos Rouxinóis».

A novela, porém, apresentava ainda outros aspectos inovadores, entre os quais o tema contemporâneo em que se inspira, a ausência de convencionalismo, e, sobretudo, a estrutura dramática. Com efeito trata-se de uma novela-drama, pois a acção desenvolve-se segundo um ritmo dramático, o enredo obedece ao esquema da estrutura da tragédia e a técnica teatral está patente nos efeitos cénicos, obtidos através do diálogo fluente e vivo, que exprime os conflitos das personagem e revela as situações dramáticas. Além disso, a intriga [29] desenvolve­-|se por cenas e actos, segundo a terminologia do autor, que é simultaneamente novelista e dramaturgo.

Efectivamente, Garrett serve-se do termo «prólogo» para classificar o capí­tulo X, aquele que introduz a acção da novela; e, no fim do capítulo XXVI, observa: «Houve mutação de cena. Vamos a Santarém, que lá se passa o segundo acto.» Mas, ao contrário das sugestões cénicas de Garrett, é preferível dividir a novela em três actos: 1.º acto (capítulos XI a XVIII); 2.º acto (capítulos XIX a XXV); 3.º acto (capítulos XXXII a XXXV).

Também o local onde decorrem as cenas tem a função de cenário, a enquadrar a personagem, e é indissociável das características da acção que nele se situa. E o caso do Vale de Santarém, descrito como um local privilegiado, que recorda o paraíso terrestre, e onde necessariamente só podem viver pessoas boas, puras, angélicas, afastadas do pecado do mundo, tais como Joaninha e a Avó, mas onde Carlos já não pode integrar-se e aí descobre a sua duplicidade interior. No segundo acto, porém, com a presença das tropas, o vale perde a serenidade edénica e essa intromissão do mundo exterior anuncia o desencontro trágico, a impossibilidade de realização do amor. O terceiro acto apresenta um cenário totalmente diferente: uma cela do Convento de S. Francisco, transformada em enfermaria, alumiada por uma só vela de cera e mergulhando na penumbra as personagens, sugere a gravidade da cena que aí se vai desenrolar e a aproxima­ção da catástrofe.

Contudo, o que mais impressiona nesta novela é a obediência perfeita ao esquema trágico. Assim, por exemplo, a neutralidade aparente das personagens e do ambiente quebra-se, logo de início, quando conhecemos a Avó, cega e atormentada, para quem o habito religioso tem o efeito de uma mortalha; e, quando aparece Frei Dinis, suspeitamos que algo irá acontecer, algo terrível, como afigura e as falas do frade. A presença desta personagem influi profunda­mente na criação da atmosfera trágica, na medida em que, além de protagonista da sua história, tem a função de «Coro» da tragédia, pois prevê os acontecimen­tos e comenta-os. Assim, pela «epístase» (a que actualmente se dá o nome de «suspense») se intensificam a expectativa e o terror, que o uso dos presságios acentua. Além disso, o leitor-espectador compreende, pela narrativa retrospec­tiva e pela acção, que os factos se encadeiam de uma maneira opressiva para as personagens (é o «clímax»), as quais se sentem dominadas por remorsos e terrores (é o «pathos»). Enfim, o capítulo XXXV, aquele em que Carlos fica a saber que é filho ilegítimo de Frei Dinis, corresponde à «peripécia», ou cena nuclear da tragédia, a qual, segundo Aristóteles, devia consistir num reconhecimento ou identificação («anagnórisis»). A partir desta cena, ou capítulo, as situações precipitam-se até ao desenlace fatal («catástrofe»), pois morrem todos: Joaninha enlouqueceu e morreu; Georgina, ao professar, morre para o mundo; a Avó está demente; Frei Dinis continua a expiar os seus pecados e por isso não morreu; Carlos morre também, de uma morte moral, pior do que a física: «Caiu no indiferentismo absoluto, [...] fez-se o que chamam céptico, [...] morreu-lhe o [30] coração para todo o afecto generoso, e deu em homem político ou em agiota. » E a informação final sobre Carlos é ainda mais reveladora da sua morte moral: «Engordou, enriqueceu, e é barão [...] e vai ser deputado qualquer dia.»

Mas esta tragédia familiar tem como pano de fundo uma tragédia colectiva — a guerra civil entre Absolutistas e Liberais —, desenvolve-se em paralelo com ela e é o seu símbolo. Com efeito, o conflito que opõe Carlos a Frei Dinis constitui uma imagem da própria guerra civil: filhos lutando contra pais e contra os valores que estes representavam; total ruptura com o passado; repúdio dos princípios em que até aí se firmara a sociedade portuguesa.

Duas personagens da novela estão directamente ligadas à guerra, embora de maneira oposta: Carlos, que nela participou; Frei Dinis, que lhe sofreu as consequências. Para este, que continua a desempenhar a função de «Coro», como comentador dos acontecimentos que dividiram então o País, «morreu Portugal». E, como porta-voz de Garrett na sua aversão ao Cabralismo, Frei Dinis faz um exame de consciência, concluindo por afirmar com pessimismo mas também com lucidez confiante: «Tivemos culpa nós, é certo; mas os liberais não tiveram menos [...]. Errámos e sem remédio. A sociedade já não é o que foi, não pode tornar a ser o que era; — mas muito menos ainda pode ser o que é. O que há-de ser, não sei. Deus proverá.»

Na verdade, Garrett identifica-se com Frei Dinis na medida em que este, como frade, se opõe ao barão, «o mais desgracioso e estúpido animal da criação», aquele que personificava a traição ao liberalismo e o triunfo do materialismo. Com efeito, nessa antítese que domina o romance — idealis­mo / materialismo, ou seja, D. Quixote / Sancho —, «o frade era, até certo ponto, o D. Quixote da sociedade velha», «o barão é, em quase todos os pontos, o Sancho Pança da sociedade nova», empregando as palavras de Garrett. E, sob um regime liberal, embora firmado numa oligarquia de financeiros, como era o governo de Costa Cabra!, Garrett acentua a coerência de Frei Dinis e a coragem com que defendia valores necessários, que tinham sido esquecidos na formação da nova sociedade: «Para entender a liberdade é preciso crer em Deus, para acreditar na igualdade é preciso ter o Evangelho no coração.» Mas Garrett não se limita a opor o frade ao barão, prefere aquele («antes queria a oposição dos frades que a dos barões) e faz com desencanto o balanço político: «Quando vejo os conventos em ruínas, os egressos a pedir esmola e os barões de berlinda, tenho saudades dos frades.» E no entanto era com o dinheiro dos barões que Costa Cabral iniciava a política de fomento, na qual se incluía a construção da primeira linha férrea, de Lisboa ao Carregado (inaugurada em 1856), projecto que merece a Garrett, ele que era «ministerial do Progresso», o comentário irónico: «Nos caminhos de ferro dos barões é que eu juro não andar.»

Ora, Carlos, o liberal emigrado, o soldado ferido em combate, acaba barão. Aparentemente, ele é um exemplo da traição aos ideais por que se batera, um representante dos liberais que se deixaram perverter pelo materialismo triunfan­te. No entanto, a carta a Joaninha explica as razões que levaram Carlos a [31] tornar-se político e agiota, isto é, justifica o seu suicídio moral. Apesar disto, podemos ver em Carlos o símbolo do burguesismo que se impunha com a ditadura de Costa Cabra!, e que Garrett ataca abertamente nessa viagem, em que «está simbolizada a marcha do nosso progresso social», como ele acentua com amarga ironia, ao mesmo tempo que comenta: «Ficou o materialismo estúpido, alvar, ignorante, devasso e desfaçado, a fazer gala de sua hedionda nudez cínica no meio das ruínas profanadas de tudo o que elevava o espírito...»

Pelo contrário, Joaninha encarnaria o ideal, todos os valores puros que, aniquilados pelos novos-ricos e pelos políticos corruptos e oportunistas, são enaltecidos por Garrett nas Viagens. Deste modo, no vale, onde passara a infância, deixara Carlos, para sempre, a sua autenticidade, o mesmo é dizer, a capacidade de amar e a pureza de ideais que defendera e pelos quais arriscara a vida. Portanto, a figura complexa de Carlos exprime também a frustração política de Garrett, que via adulterados os princípios por que sempre tinha lutado.

Analisando agora a narrativa da viagem, importa considerar a importância da presença do protagonista-narrador, Garrett, tal como se apresenta ao leitor, «em calças largas, fraque verde, chapéu branco, gravata de cor, chicotinho de cauchu na mão», pois é ele o centro da obra, o elo de ligação entre os dois planos narrativos; e é essa presença constante que imprime unidade às Viagens, apesar da sua aparente dispersão temática. E nas suas digressões, que constituem um dos raros encantos do romance, predomina também um sentimento: o grande amor por tudo o que é português, numa reafirmação do nacionalismo estético que caracteriza toda a obra garrettiana.

Efectivamente, neste passeio pelo Ribatejo, o leitor diverte-se como debate entre Ílhavos e Campinos (cap. 1), assiste ao diálogo imaginário com uma figura histórica (cap. VI), descobre a beleza da charneca (cap. VIII), encanta-se com lendas e romances tradicionais (caps. XXIX, XXX e XXX VII) e revolta-se com o abandono a que estavam votados os monumentos (caps. XXXIX e XLII). Mas outros assuntos, inspirados na realidade nacional, tais como a literatura e a política, são dignos de merecer a atenção do leitor, como, por exemplo, a sátira à literatura romântica (cap. V) e ao barão cabralista (cap. XIII).

No entanto, a grande originalidade das Viagens reside na prosa, uma prosa maleável, baseada no código oral mas aproveitando também, com valor expres­sivo, o código escrito, e em que os níveis de língua se misturam e interpenetram, embora predomine o nível familiar. E, a propósito das Viagens, tem de se repetir necessariamente o lugar-comum: a prosa moderna portuguesa nasceu com este livro de Garrett.

Embora o estilo coloquial, criado por Garrett neste romance, se caracterize pela espontaneidade e facilidade, sabe-se, porém, que a fluência, a graça, a vivacidade da linguagem são fruto de labor artístico, de gosto apurado, de uma sensibilidade linguística requintada e formada no conhecimento da língua vernácula. Portanto, quando Garrett recorre aos estrangeirismos, não o faz por [32] ignorância linguística ou pobreza de vocabulário, mas, pelo contrário, obede­cendo a um critério estético e no intuito de enriquecer a língua portuguesa com termos que correspondiam a conceitos, a hábitos ou a objectos que desconhecía­mos. Além disso, por meio dos estrangeirismos, puros ou aportuguesados, Gar­rett descreve, com pitoresco e requinte, ambientes e personagens estrangeiras. Assim acontece com o emprego de vocábulos como desapontar, flartar, anglicismos que soube adaptar à prosódia portuguesa. Mas muitos outros anglicismos se encontram nas Viagens, tais como fashionável, também exemplo de adapta­ção linguística, mas que não vingou, e toast, parlour, gin, lady, sempre escritos em itálico, assim como os francesismos boudoir, demi-jour, élancée, tran­chons le mot, e muitos mais, além de chaperão, tapessada, ao grande trote, e outros também aportuguesados.

Além de Garrett ter sabido adoptar processos da linguagem familiar, entre os quais o sufixo afectivo, também o seu estilo se enriquece com características da linguagem popular, tais como inversões expressivas, concordâncias por atrac­ção, a anteposição dos pronomes, a repetição de sinónimos ou quase sinónimos para intensificar, por aproximações sucessivas, o que se pretende exprimir. De acordo com a transcrição do código oral, em que o emprego dos sinais de pontuação tem de sugerir o ritmo e a entoação da fala, e ainda os matizes psicológicos, a Pontuação adquire nesta obra um valor estilístico que também constitui uma inovação.

Mas Garrett tira ainda efeitos humorísticos do emprego do adjectivo, que, só, ou em associações imprevistas, ganha um valor impressionista, assim como o advérbio de modo (processo, entre outros, herdado e desenvolvido por Eça de Queirós). igualmente as séries de diminutivos são por vezes empregadas com Intenção caricatural, e a repetição de vocábulos, de que tira frequentemente efeitos de aliteração, serve-lhe para descrever ambientes, caracterizar persona­gens. (Todos estes aspectos estilísticos foram magistralmente analisados pelos Profs. Jacinto do Prado Coelho e Ofélia Paiva Monteiro.)

Muito mais havia a acrescentar sobre o estilo de Garrett e sobre o romance, mas o leitor se encarregará de completar as lacunas, descobrindo novos, ou renovados, encantos nesta «espirituosa excentricidade literária», classificação atribuída às Viagens na Revista Universal Lisbonense.


Texto

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MONTEIRO, Ofélia Paiva. Algumas reflexões sobre a novelística de Garrett. Colóquio/Letras. Lisboa, n. 32, p. 13-29, mar. 1976.

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