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Pocket;0] Coleção L&pm pocket, vol. 260 Primeira edição na Coleção L&PM


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I
Não foi difícil contê-los. No sétimo dia morriam pelas esquinas em estilhaços metálicos e ruídos de ferragens. A epidemia se alastrara de tal modo que se tornara muito fácil surpreendê-los. Os policiais nem mais se preocupavam em armar ciladas, disfarçando-se de civis para poderem acompanhar e prevenir a evolução da peste. Os contaminados — assim haviam sido chamados pelo Poder — não suportavam o processo por mais de uma semana. Findo esse prazo, tombavam pelas praças e ruas, os olhos de vidro explodindo em pedacinhos coloridos, as engrenagens enferrujadas não obedecendo às ordens dos cérebros enfraquecidos. Alguns tomavam doses enormes de estimulantes para que o cérebro, funcionando em sua quase totalidade, enviasse ordens cada vez mais violentas aos membros entorpecidos. Mas os nervos tornados frágeis pela modificação súbita não resistiam muito tempo — e o primeiro sintoma da derrocada era a explosão dos olhos.

Milhares de olhos espatifados enchiam as avenidas. Os mais práticos procuravam as oficinas: mecânicos azeitavam rótulas e, no terceiro dia, todas as oficinas haviam se transformado em hospitais. Sabendo disso, e da possibilidade de, a cada dia, os contaminados descobrirem mais e mais formas de sobrevivência, o Poder retirou das farmácias o estoque de estimulantes e ordenou o fechamento de todas as oficinas. Legiões fugiam em direção ao campo, corriam boatos de que era a proximidade com as máquinas o que provocava as mutações. Mas sabendo também da possibilidade de se formarem grandes comunidades rurais, o Poder fechou todas as saídas das cidades. Então eles morriam feito ratos, sem que fosse necessário sequer procurá-los. Seus pedaços eram recolhidos tediosamente pelos caminhões de limpeza e encaminhados aos ferros-velhos, onde seriam vendidos como sucata.

Esperava-se também que, em breve, a epidemia fosse completamente esquecida pela faixa dita normal da população, e futuramente braços e pernas e seios e pescoços pudessem ser utilizados como objetos decorativos. Esperava-se ainda industrializar estilhaços de olhos para transformá-los em contas coloridas que seriam utilizadas na confecção de colares cheios de axé, para serem vendidos a turistas ávidos de exotismo. Esperava-se enfim conseguir a união entre as classes média e alta com as camadas sociais mais baixas pois, com todos utilizando objetos de origem ex-humana como decoração ou indumentária, estariam mais ou menos nivelados. Assim, tão logo começou a derrocada, o Poder divulgou comunicado aos órgãos de imprensa dizendo de seu interesse em aproveitar da melhor maneira possível os restos mortais dos contaminados. Houve grande entusiasmo por parte das indústrias, lojas de decoração, butiques e confecções — e imediatamente os ferros-velhos começaram a ser freqüentados por senhoras ricas e extravagantes. A crise parecia vencida. O Poder aumentou seu prestígio junto ao povo por ter sabido, uma vez mais, superar tudo de maneira tão eficiente e criativa.

II
A epidemia já era coisa do passado quando, em artigos publicados semanalmente, um jornalista começou a investigar as possíveis causas do fenômeno. A princípio a população irritou-se e o jornal baixou assustadoramente as vendas: era o preço que pagava por remexer em assunto tão superado. Mas, não se sabe como nem por que, o jornalista continuou a publicar seus artigos. Comentou-se que seria amante da duquesa proprietária do jornal, segundo alguns, ou amante do marido da duquesa proprietária do jornal, segundo outros, ou ainda amante de ambos, em bacanais verdadeiramente dionisíacas, segundo terceiros. Contradizendo esses rumores, ventilou- se também que o jornalista seria um impotente sexual assalariado por uma poderosíssima organização estrangeira, especialmente para minar o prestígio do Poder.

Talvez devido a esses boatos, ou mesmo porque o povo não havia realmente esquecido a Peste Tecnológica — como fora chamada para efeitos sociológicos —, ou ainda porque algumas das hipóteses aventadas pelo jornalista, e que não vêm ao caso, fossem bastante viáveis, o fato é que uns quinze dias mais tarde o jornal dobrou sua tiragem e o assunto passou a ser comentado nos bares da moda. Os costureiros lançaram a linha-robô, com roupas inteiramente de aço e maquiagem metálica, os oculistas criaram novas lentes de contato acrílicas, especialmente para dar aos olhos o efeito do vidro. Surgiram novos manequins, de movimentos endurecidos e olhos vidrados. Tornou-se extremamente chique freqüentar oficinas mecânicas em vez de saunas, academias de dança ou institutos de beleza. E o jornalista começou a sair na capa das revistas mais famosas, sucediam-se entrevistas e debates e depoimentos em programas de televisão, até mesmo um curta-metragem financiado pelo Poder e dirigido por um rebelde premiado no estrangeiro foi feito especialmente para mostrar a residência do novo mito das comunicações. Um chalezinho em chumbo, totalmente mecanizado, com plataformas no banheiro para lavagens parciais e totais.

Mais tarde, o jornalista cedeu seu nome e imagem para a publicidade de determinado óleo de determinada firma. Tornou-se tão conhecido como os mais conhecidos ídolos de futebol e da televisão. Aos poucos, as mulheres descobriam encantos secretos em seus ombros magros, seus olhinhos míopes e sua calva luzidia. Uma famosa atriz de telenovelas apaixonou-se por ele, abandonando sem hesitar o marido fiel e dois filhos em idade pré-escolar para cortar os pulsos e ingerir uma dose excessiva de barbitúricos, sendo providencialmente socorrida pelo mecânico que lhe fazia massagens às segundas, quartas e sextas. Amainado o escândalo, ambos concederam sóbria entrevista, afirmando serem apenas bons amigos e, um mês mais tarde, oficializaram seus divórcios casando-se num pequeno país vizinho. Tornaram-se o símbolo da nova mentalidade, e sua casa passou a ser freqüentada por escritores inéditos, atores em ascensão, manequins promissoras, costureiros inovadores, jornalistas em evidência, marchands sensibilíssimos, diretores de cinema alternativo e todos, afinal, que de uma ou outra forma procuravam contribuir para a evolução da cultura ocidental.

O Movimento Tecnológico — que a essa altura já influenciava seriamente a música, a literatura, as artes plásticas, a moda e demais formas de expressão — ultrapassou as limitadas fronteiras do país para atingir o mundo inteiro. O índice de exportações aumentou incrivelmente, o país viu crescer suas divisas, artistas estrangeiros e turistas animados invadiam as cidades e as praias. E um tempo de prosperidade começava.


III
Enquanto isso, em porões de um beco escuro, reproduziam-se como coelhos os remanescentes da epidemia. Quatro deles haviam-se isolado de rumores e máquinas, levando consigo uma grande quantidade de latas de óleo e estimulantes para sua manutenção e, como não fossem descobertos, organizaram aos poucos outro sistema de vida. Já eram mais de meia centena apertados em meio às paredes sujas de graxa, fazendo amor em ranger de metais e cintilações dos olhos de vidro. Dispunham-se a sair à superfície para tomarem o Poder quando foram inexplicavelmente descobertos e denunciados.

A rua suspeita foi cercada, os policiais derrubaram as portas com metralhadoras e encurralaram os contaminados contra uma parede úmida onde, com fortes jatos d’água, conseguiram enferrujar lentamente suas articulações. Morreram todos, da mesma maneira que seus precursores — à exceção de uma jovem inteiramente mecanizada, com grandes olhos em vidro rosa e magníficas pernas de aço. Foi imediatamente recolhida à prisão para ser encaminhada a um especialista em computadores, e seu nome e foto saíram em todas as páginas policiais. Seu fim teria sido desgraçadamente o mesmo de seus companheiros, se um famoso costureiro não tivesse se interessado por ela. Foi visitá-la na prisão e, por meio de vários e demorados contatos com figuras influentes, conseguiu libertá-la para mais tarde lançá-la como principal manequim de sua coleção de outono.

A jovem, conhecida artisticamente como Robhéa, alcançou um espantoso sucesso. Galgou todos os degraus da fama em pouquíssimo tempo, acabando por filmar com os cineastas mais em voga no momento, ganhando prêmios e mais prêmios em festivais internacionais e sendo eleita Rainha das Atrizes durante cinco carnavais segui- dos. Foi no último carnaval que, sem dar explicações, ela fugiu abruptamente do baile, espatifando a fantasia e repetindo em inglês que queria ficar sozinha. Retirou-se para uma ilha deserta e inacessível, onde viveu até o fim de seus dias. Comentou-se que seria homossexual, e fora obrigada pelos empresários a esconder esse terrível fato do grande público. Uma jovem que fora sua camareira publicou um diário chamado Minha vida com Robhéa, bestseller durante dez anos seguidos, com edições revistas pela autora, adaptações para rádio, televisão, cinema e fotonovela, proporcionando à ex-camareira a candidatura, ao mesmo tempo, aos Prêmios Nobel da Paz e da Literatura. Excursões e expedições foram organizadas por legiões de fãs em desespero para chegarem até a ilha, guardada por animais selvagens, najas venenosíssimas e plantas carnívoras. Tudo inútil.

Muitos anos depois, os jornais publicaram uma pequena nota comunicando que Robhéa, ex-manequim, ex-atriz de cinema e robô de sucesso em passadas décadas, suicidara-se em sua ilha deserta e inacessível tomando um fatal banho de chuveiro. Seus restos enferrujados e mumificados foram colocados na Praça da Matriz no planalto central e, desde então, foram publicados fascículos com sua vida completa e fotos inéditas, os travestis passaram a imitá-la em seus shows e, quando as discussões versavam sobre as grandes cafonas do passado, seu nome era sempre o primeiro a ser lembrado.


Retratos


Sábado:
Nunca havia reparado nele antes. Na verdade não tem nada que o diferencie dos demais. As mesmas roupas coloridas, os mesmos cabelos enormes, o mesmo ar sujo e drogado. Nunca os vira de perto como hoje. Da janela do apartamento eles pareciam formar uma única massa ao mesmo tempo colorida e incolor. Isso não me interessava. Nem me irritava. Mesmo assim cheguei a assinar uma circular dos moradores do prédio pedindo que eles se retirassem dali. Mas não aconteceu nada. Falaram-me no elevador que alguém muito importante deve protegê-los. Achei engraçado: parecem tão desprotegidos.

Creio que foi isso que me levou a descer até à praça hoje à tarde. Sim, deve ter sido. Não achei nada de estranho neles, nada daquilo que a circular dizia. Só estavam ali, de um jeito que não me ofendia. Um deles sorriu e me fez o retrato. Era como os outros, exatamente como os outros, a única coisa um pouco diferente era aquele colar com uma caveira. Todos usam colares, mas nenhum tem caveira. Uma pequena caveira, O retrato está bom. Não entendo nada de retratos, mas acho que está bom. Vou mandar colocar uma moldura e pregar no corredor de entrada.


Domingo:
Saí para comprar o jornal e encontrei com ele. Perguntou se eu queria fazer outro retrato. Eu disse: já tenho um, para que outro? Ele sorriu com uns dentes claros: faça um por dia, assim o senhor saberá como é seu rosto durante toda a semana. Achei engraçado. Você fará sete, então — eu disse. Ele disse: sete é um número mágico, farei sete. Pediu que eu sentasse no banco de cimento e começou a riscar. Observei-o enquanto desenhava. Na verdade, ele não se parece com os outros: está sempre sozinho e tem uma expressão concentrada. De vez em quando erguia os olhos e sorria para mim. Achei estranho porque nunca ninguém sorriu para mim — nunca ninguém sorriu para mim daquele jeito, quero dizer. A mão dele é muito fina, meio azulada. Quando desenha, tem uns movimentos rápidos. Quando não desenha fica parada. Às vezes chega a ficar parada no ar. É tão estranho. Nunca vi ninguém ficar durante tanto tempo com a mão parada no ar.

Enquanto ele desenhava, eu sentia vergonha — estava de terno, aquele terno velho que uso aos domingos, e gravata. Também não tinha feito a barba. A garrafa de leite pesava na minha mão, o jornal começava a manchar as calças de tinta. Por um momento senti vontade de sentar no chão, como eles. Creio que achariam ridículo. Me contive até que terminasse. Quando estendeu a folha eu não pude me conter e disse que tinha gostado mais do de ontem. Ele riu: sinal que no sábado seu rosto é melhor que no domingo. Paguei e vim embora. O de hoje está ao lado do de ontem. Pareço mais velho, mais preocupado, embora os traços sejam os mesmos. Amanhã perguntarei seu nome.


Segunda-feira:
Tinha me esquecido dele até a hora de voltar para casa. Trabalhei muito o dia inteiro. Voltei cansado, com vontade de tomar banho e dormir. Ele me encontrou na porta do edifício. O nosso trato, disse. Eu disse ah, sim, e acompanhei-o até a praça. Ele caminha devagar, não parece perigoso como os outros. Não sei exatamente o que, mas existe nele qualquer coisa muito diferente. Às vezes penso que vai ter uma tontura e cair. É quando fecha os olhos comprimindo uma das mãos contra a cabeça. Acho que sente fome. Pensei em convidá-lo para comer comigo, mas desisti. Os vizinhos não gostariam. Nem o porteiro. Além disso o apartamento é muito pequeno e está sempre desarrumado porque a empregada só vem uma vez por semana. Anda sempre descalço, tem os pés finos como as mãos. Parece pisar sobre folhas, não sei explicar, não existem folhas na praça. Não agora, só no outono. As unhas são transparentes. E limpas.

Quando estava terminando de desenhar, perguntei o seu nome, O meu nome não são letras nem sons — ele disse —, o meu nome é tudo o que eu sou. Quis perguntar que nome era, mas não houve tempo, ele já me estendia a folha de papel. Paguei e não olhei. Só vim olhar aqui em cima. Fiquei perturbado: não estou mais moço como ontem e anteontem. A cara que ele desenhou é a mesma que vejo naquele espelho da portaria que sempre achei que deforma as pessoas. Coloquei o papel em cima da mesa, ao lado dos outros. Depois achei melhor pregar na parede do quarto, em frente à cama. Espiei pela janela, mas não consegui distingui-lo no meio dos outros.


Terça-feira:
Quando saí, pela manhã, procurei por ele. Queria convidá-lo para tomar a média comigo no bar da esquina. Mas não o vi. Ontem à noite fez frio. Ouvi dizer que eles dormem na praia. De madrugada fiquei pensando nele, estendido na areia sobre aquele casaco militar puído que ele tem. Senti muita pena e não consegui dormir. Foi difícil trabalhar hoje. Percebi que a secretária tem as pernas peludas e o chefe está muito gordo. Sei que isso não tem importância, mas não consegui esquecer o tempo todo. De tardezinha, ele me esperou na esquina. Disse: hoje é o quarto. Faltam três, eu respondi. E senti um aperto por dentro. Tem uns olhos escuros que ficam fixos, parados num ponto, do mesmo jeito que as mãos no ar. A calça está rasgada no joelho. Nunca o vi falar com ninguém. Os outros ficam sempre em grupo, falando baixinho, olhando com desprezo para os de terno e gravata como eu. Ele está sempre sozinho. E não me olha com desprezo.

Terminou de desenhar e me ofereceu uma margarida junto com o papel. Eu nem tinha reparado que havia margaridas na praça. Para falar a verdade, acho que nunca tinha visto uma margarida bem de perto. Ela é redonda. Não exatamente redonda, quero dizer, o centro é redondo e as pétalas são compridas. O centro é amarelo, cheio de grãos. As pétalas são brancas. Coloquei num copo com água e um comprimido dissolvido dentro, disseram que faz a flor durar mais. O retrato é muito feio. Não que seja malfeito, mas é muito velho, tem uma expressão triste, cinzenta. Fiquei surpreso. Cheguei a sentir medo de me olhar no espelho. Depois olhei. Vi que é a minha cara mesmo. Acho que ele caprichou mais no primeiro porque não me conhecia: agora que sou freguês pode me retratar como realmente sou. Percebi que as vizinhas me observavam quando eu falava com ele.


Quarta-feira:
O dia custou a passar. São todos tão pesados no escritório que o tempo parece custar mais a passar. Logo que os ponteiros alcançaram as seis horas, apanhei o casaco e desci correndo as escadas. Esbarrei com o chefe no caminho. Percebi que ele caminha mal por causa dos pés inchados. Fiquei olhando para os pés dele: não parece pisar folhas. Na rua, vi uma vitrine cheia de colares, pensei que ele gostaria de um. Achei que seria bobagem, o mês está no fim, o dinheiro anda curto. Mas não me contive. Voltei e entrei na loja. A moça me olhou com uma cara estranha. É para minha filha, menti. Trouxe o embrulho pesando no bolso, com medo que ele não estivesse na esquina. Estava. De longe o vi, muito magro e alto. Baixei a cabeça fingindo preocupação. Ia passando por ele, mas me segurou pelo braço. Segurou devagar. Mesmo assim senti a pressão de seus dedos. Fazia frio. Perguntei a ele se não sentia frio. Disse: não esse mesmo frio que o senhor sente. Não entendi.

O desenho ficou muito feio. Coloquei-o na parede, ao lado dos outros. Pareço cada dia mais velho. Acho que é porque não tenho dormido direito. Tenho olheiras escuras, a pele amarelada, as entradas afundam o cabelo. Apertei a mão dele. É muito fria. Faltam só dois. Descobri hoje que seus olhos não são completamente escuros. Têm pequenos pontos dourados nas pupilas. Como se fossem verdes. As vizinhas me observavam pelas janelas e falavam baixinho entre si. Pela primeira vez deixei de cumprimentá-las.


Quinta-feira:
Novamente não consegui dormir. Fiquei olhando os retratos na parede branca. E horrível a diferença entre eles, envelheço cada vez mais. Senti muito medo quando pensei no sétimo retrato. E fechei os olhos. Quando fechei os olhos julguei sentir na testa o mesmo contato frio de sua mão na minha, ontem à tarde. Um toque frio e ao mesmo tempo quente, ao mesmo tempo forte e ao mesmo tempo leve. De repente lembrei do que ele disse no dia em que me deu a margarida. Flor e abismo. Ou seria:
flor é abismo? Não lembro. Sei que era isso. Não sei como tinha esquecido. Levantei para olhar a margarida. Continuava amarela e branca, redonda e longa.
O dia no escritório foi desesperador. Errei várias vezes nos cálculos. Fui grosseiro com a secretária quando ela me chamou a atenção. Ela ficou ofendida, foi fazer queixa ao chefe. Temi que ele me chamasse em sua sala, mas isso não aconteceu. Pretextei uma dor de cabeça para sair mais cedo. Sentei num bar e tomei duas cervejas. Quando botei a mão no bolso senti o peso do colar que não tive coragem de dar a ele. A cidade estava toda cinzenta, embora houvesse sol. As pessoas tinham medo no rosto. Dez para as seis, me levantei. Ele estava no mesmo lugar. Precisei me conter para não correr até ele. Tratei-o com frieza. Mas quando ele disse que o dia estava bonito hoje, não pude me segurar mais e sorri. Estava realmente um bonito dia, as pessoas todas alegres. Não olhei para ele, não quero que pense que sinto inveja ou qualquer coisa assim.

Trouxe o retrato embrulhado. Pela primeira vez, o ascensorista não me cumprimentou nem abriu a porta do elevador. Pareço um cadáver no retrato. Não, é exagero. Estou mesmo muito abatido. Mas não tenho aquela pele esverdinhada. Continua fazendo frio. Amanhã comprarei uma cama, quero convidá-lo para dormir aqui nestas noites frias. Direi que a cama é de minha irmã que está viajando. Não tive coragem de dar a ele o colar, poderia pensar coisas, não sei. Amanhã não comprarei cigarros para poder pagar o último retrato.


Sexta-feira:
Trabalhei só pela manhã, hoje. Ao meio-dia senti que não suportava mais aquele ambiente, aquelas pessoas pesadas como elefantes esmagando os tapetes, aquelas máquinas batendo. Disse ao chefe que me sentia mal. Ele foi compreensivo. Disse que notou que ando meio abatido. Tirei um vale, menti que era para comprar remédio. Entrei num cinema, assisti a duas sessões seguidas esperando as seis horas. No filme tinha um moço de motocicleta parecido com ele, só parecido, descobri que não existe ninguém igual a ele. Lembrei da minha infância, não sei por que, e chorei. Fazia muito tempo que eu não chorava. Às seis horas, fui até a praça. Mas ele não estava. Subi para tomar banho. Daqui a pouco vou descer de novo. Não sei por que, mas estou chorando outra vez.

Mais tarde:
Aconteceu uma coisa horrível. É muito tarde e ele não veio. Não consigo compreender. Talvez tenha ficado doente, talvez tenha sofrido um acidente ou qualquer coisa assim. É insuportável pensar que esteja sozinho, com suas mãos paradas no ar, ferido, talvez morto. Chorei muitas vezes olhando a margarida que ele me deu. Logo hoje que ia desenhar o último retrato, que eu ia dar a ele o colar, convidá-lo para dormir aqui, para comer comigo. Acabei de tomar três comprimidos para dormir, estou me sentindo amortecido. Amanhã talvez ele venha.
Sábado:
Acordei muito cedo e fui para a praça. Mas não consegui encontrá-lo. Tomei coragem, aproximei-me dos outros e perguntei onde ele andava. Alguns nem responderam. Outros ficaram irritados, perguntaram o nome? mas o senhor não sabe nem o nome dele? Eu fiquei com vergonha de repetir o que ele tinha dito. Não fica bem para um homem da minha idade dizer essas coisas. Ninguém sabia. Descrevi seu jeito, seu rosto, sua calça azul furada no joelho, suas mãos, aos poucos fui perdendo a vergonha e falei no seu caminhar sobre folhas, das suas mãos paradas no ar, seus olhos fixos. Ninguém sabia. Perguntei às vizinhas. Três delas me bateram com a porta na cara, resmungando coisas que não entendi. Outras duas disseram que tinham quartos para alugar, o que também não entendi. Saí a caminhar pela cidade, gastei o resto do dinheiro em cerveja, não consegui encontrá-lo. Telefonei para todas as delegacias e hospitais, fui ao necrotério. Não estava. Voltei para casa todo molhado de chuva, tossindo e espirrando. Caí na cama e dormi.
Domingo:

Passei o dia na praça. Ele não apareceu. Levei os retratos comigo. Olhei-os, atentamente. São seis. O último parece um cadáver. Eles me olhavam com desprezo, os retratos. Levei a margarida. Fez calor o dia inteiro. Suei. Esqueci de fazer a barba. A tarde, a secretária passou com o namorado e me viu deitado na grama. Não me cumprimentou e cochichou qualquer coisa com o namorado. Quando já era muito tarde percebi que ele não viria. Nunca mais. Voltei devagar para casa, mas o porteiro não me deixou entrar. Mostrou-me uma circular feita pelas vizinhas dizendo coisas que não li. Vim para o bar onde estou escrevendo. Chove. Talvez ele tenha ido embora, talvez volte, talvez tenha morrido. Não sei. A minha cabeça estala. Eu não suporto mais. Espalhei os retratos em cima da mesa. Fiquei olhando. Despetalei devagar a margarida até não restar mais que o miolo granuloso. O sexto retrato é um cadáver. Acho que sei por que ele não veio. O barulho da chuva é o mesmo de seus passos esmagando folhas que não existiam.



Flor é abismo, repeti.

Flor e abismo. E de repente descobri que estou morto.



Beta
Estive doente

doente dos olhos, doente da boca, dos nervos até.

Dos olhos que viram mulheres formosas

da boca que disse poemas em brasa

dos nervos manchados de fumo e café.

Estive doente estou em repouso, não posso escrever.

Eu quero um punhado de estrelas maduras eu quero a doçura do verbo viver.”
(De um louco anônimo — transcrito por Caco Barcelos na reportagem “Crime e loucura “, publicada na extinta Folha da Manhã, Porto Alegre, RS.)

Uma veste provavelmente azul
Eu estava ali sem nenhum plano imediato quando vi os dois homenzinhos verdes correndo sobre o tapete. Um deles retirou do bolso um minúsculo lenço e passou-o na testa. Pensei então que o lenço era feito de finíssimos fios e que eles deviam ser hábeis tecelões. Ao mesmo tempo, lembrei também que necessitava de uma longa veste:
uma muito longa veste provavelmente azul. Não foi difícil subjugá-los e obrigá-los a tecerem para mim. Trouxeram suas famílias e levaram milênios nesse trabalho. Catástrofes incríveis: emaranhavam-se nos fios, sufocavam no meio do pano, as agulhas os apunhalavam. Inúmeras gerações se sucederam. Nascendo, tecendo e morrendo. Enquanto isso, minha mão direita pousava ameaçadora sobre suas cabeças.

Eles
O que eles deixaram foram estes três postulados: importante é a luz, mesmo quando consome; a cinza é mais digna que a matéria intacta e a salvação pertence apenas àqueles que aceitarem a loucura escorrendo em suas veias. Nem foram notados a princípio, por isso ninguém sabe dizer a data exata de sua chegada. É provável que desde o começo tivessem se estabelecido no bosque, afinal você sabe que por aqui não há outro lugar onde pessoas como eles pudessem passar assim despercebidas como eles passaram, a princípio. Aqui todos se conhecem, tudo é pequeno e sem mistério, ou era, antes, há apenas esse bosque sobre a colina, e talvez por medo de penetrarem no impenetrável de um mistério qualquer, ou mesmo por preguiça de se movimentarem de seus lugares, os moradores daqui nunca vão ao bosque, ou nunca iam, não sei mais. Apenas alguns namorados, mas muito raramente, porque ao voltarem todos sabiam que tinham ido e as mulheres daqui, as mulheres mais velhas, não perdoam jamais. Por isso, às vezes, eu penso que talvez eles estivessem aqui desde sempre, desde um começo que não se sabe quando começou. E ninguém saberia jamais se aquele menino não tivesse ido lá.

Aqui as pessoas dormiam muito, você sabe, não há sequer lenhadores porque existe o mar do outro lado, e é sempre mais fácil pescar do que derrubar árvores. Naquele tempo, as pessoas dormiam, pescavam, à noite colocavam suas cadeiras na frente das casas e ficavam olhando o céu. Às vezes apareciam luzes estranhas no céu, luzes estranhas fazendo estranhos percursos, mas nem isso os interessava, antes. Eu? Eu não tenho importância, não procure saber nada sobre mim porque ninguém saberá dizer, nem eu próprio, estou apenas contando esta história que não é minha e a que assisti como todos os outros habitantes da vila assistiram, talvez com um pouco mais de lucidez, eu, mas de qualquer forma, embora a bomba esteja nas minhas mãos, estamos todos no mesmo barco, no mesmo beco.

Se você quer ouvir, ouça. Mas não pergunte nada além do que eu direi, porque eu não saberia dizer, ou talvez não devesse, ou talvez mesmo eu chegue a dizer — por que não? Se você não quiser ou achar que estou mentindo ou que a história é desinteressante, diga logo, você não precisa ouvir, ninguém precisa ouvir: eu só queria que vocês soubessem que eles estão aqui, no meio de vocês, ainda que vocês não queiram ou não saibam.

Mas como eu ia dizendo, se aquele menino não tivesse ido lá ninguém saberia jamais, porque não creio que um outro menino ou qualquer outra pessoa se atrevesse a ir, inventavam coisas, cobras, plantas, animais estranhos, medos — e não se atreviam. Aquele menino, não. Aquele menino trazia na testa a marca inconfundível: pertencia àquela espécie de gente que mergulha nas coisas às vezes sem saber por que, não sei se na esperança de decifrá-las ou se apenas pelo prazer de mergulhar. Essas são as escolhidas — as que vão ao fundo, ainda que fiquem por lá. Como aquele menino. Ele não voltou. Quero dizer, ele voltou, mas já não era o mesmo, e quando se foi em definitivo não era mais o mesmo menino que tinha ido ao bosque um dia.

Não sei se você sabe que muitas pessoas trazem a mesma marca daquele menino. Algumas, a maioria delas, passam a vida inteira sem saber disso, outras descobrem cedo, outras tarde, algumas tarde demais, algumas nunca. Sei que se o menino não tivesse ido lá, não teria descoberto, seria no máximo um desses pescadores que olham o mar com olhar profundo. Você deve ter notado que há os que olham o mar com olhar profundo e os que olham o mar com ar torvo. Não só o mar. Os que trazem a marca, mesmo que não saibam dela, esses olham as coisas com olhar de sangue. Os que sabem da marca ganham uma luz estranha e uma lentidão e um jeito de quem sabe todas as coisas. Os outros todos olham todas as coisas com um olhar torvo. Os outros são escuros, estúpidos, pobres. Os outros não sabem. Quando aquele menino foi lá pela primeira vez, tinha apenas um olhar de sangue — mas quando foi pela última vez, o seu olhar já era de luz, era todo lentidão, complacência, compreensão, todo ele amor e sol.

Ele não era um menino comum, isso eu soube desde que o vi. Ainda que andasse vestido da mesma maneira que os outros, tivesse as mesmas conversas e as mesmas brincadeiras, eu sempre pressenti nele aquele sangue que não corria nos outros. As vezes, fazia perguntas que assustavam. E ficava horas sentado num lugar olhando qualquer coisa sem importância, uma pedra, um inseto, um grão de areia. Ninguém compreendia. Andava sozinho por lugares desconhecidos e voltava com o sangue dos olhos quase em luz. Eu pressentia que ele acabaria descobrindo, porque só ele poderia descobrir. Não, eu não sabia deles, talvez eu soubesse sempre, mas no fundo, ou na superfície, não sei, eu não sabia, não me pergunte agora, em algum lugar de mim eu não sabia, embora em outros soubesse, não tem importância que você não compreenda isso, porque estou acostumado com a incompreensão alheia, com a minha própria incompreensão, mais do que tudo.

Da minha janela eu via quando o menino voltava, todas as tardes, e foi numa dessas tardes que eu o vi descendo lento o caminho do bosque. Vinha mais lento do que de costume, e desde o momento em que sua silhueta apareceu na curva do morro, desde esse momento eu soube. Não que houvesse algo especial, além daquela lentidão não havia nada — mas é preciso estar com as sete portas abertas para saber quando as coisas se modificam. As coisas começaram a se modificar quando o menino apareceu lento na curva que levava ao bosque.

Foi quando eu senti, mais uma vez, que amar não tem remédio.

Acho que ele soube que eu sabia, porque baixou a cabeça quando me viu. Nunca tínhamos conversado, nunca conversei com ninguém daqui, desde que cheguei, e faz muito tempo, mas havia uma espécie de clima, eles tinham um certo respeito por mim, os habitantes da vila, e assim o menino. Por isso não me surpreendi quando a mãe dele me procurou, no dia seguinte. Chegou acanhada, sentou num canto, fez comentários sobre o tempo, olhou espantada para esses livros e esses quadros, e depois de várias palavras sem importância disse que estava muito preocupada com o filho. Então contou: ele havia visto três seres estranhos no bosque. Não sabia dizer se homens ou mulheres, eram altos, claros, tinham grandes olhos azuis e gestos compassados, cabelos compridos até os ombros, movimentavam-se mansos dentro de vestes brancas com amuletos sobre o peito. Falavam uma língua estranha e sorriam fazendo círculos em torno do menino e tocando-o de leve às vezes nos ombros, no peito, na testa Agora de tinha febre e delirava. Ela me pediu que eu fosse ao bosque, e eu disse que esperaria o menino melhorar para irmos juntos. Ela achou que eu tinha medo e disse que não queria que o menino voltasse lá. Mas eu disse que não iria sozinho, que o bosque era muito grande e apenas o menino poderia mostrar-me onde estavam as criaturas. Ela concordou, e quando o menino melhorou, poucos dias depois, uma tarde subimos ao bosque.

Nem eu nem ele falamos nada enquanto subíamos a montanha. Não era preciso. Quando entramos no bosque, senti que ele se modificava e seu olhar ganhava aquela espécie de luz de que falei a você. Foi então que eu o senti maior do que eu — maior porque sendo apenas um menino se atrevera a penetrar no que me assustava, embora soubesse do irreversível do que o menino vira. Porque você não pode voltar atrás no que vê. Você pode se recusar a ver, o tempo que quiser: até o fim de sua maldita vida, você pode recusar, sem necessidade de rever seus mitos ou movimentar-se de seu lugarzinho confortável. Mas a partir do momento em que você vê, mesmo involuntariamente, você está perdido: as coisas não voltarão a ser mais as mesmas e você próprio já não será o mesmo. O que vem depois, não se sabe. Há aquele olhar de que lhe falei, e aquelas outras coisas, mas nada sei de você por dentro, depois de ver.

Por isso eu não compreendia mais aquele menino a partir do momento em que penetramos no bosque. Não compreendia seu ato de coragem e seu despojamento em enfrentar o que eu desconhecia, e sua disponibilidade em se modificar penetrando em regiões talvez escuras e perigosas. Aquele menino era um homem mais velho e mais corajoso do que eu quando entramos no bosque. Não foi difícil encontrá-los. Acho que vieram logo ao sentir a presença do menino. Chegaram devagar, do meio das árvores, com suas vestes brancas e seus enormes olhos de luz.

Não sei explicá-los. Sei que eram espantosos. Pareciam não pisar sobre o chão, pareciam não ter peso nenhum: eram inteiros leveza, amor, bondade, embora houvesse na lentidão de seus gestos qualquer coisa de definitivo. Ainda que fossem belos e bons e mansos, qualquer coisa no seu gesto pressagiava o terrível de sua condição. Eram fortes. Cercaram o menino como velhos amigos, talvez irmãos, pois o menino se parecia com eles no jeito e no olhar. Emitiam sons estranhos e fragmentados, andavam à volta do menino numa ciranda, tocavam-no no ponto central da testa, e então seus olhos se faziam ainda mais claros, tocavam-no no plexo, e eu senti que o coração do menino batia com mais força, renovando um sangue que fluía nas veias feito fogo.

A mim? quase não deram atenção. Lembro apenas que em certo momento um deles tentou tocar-me, da mesma maneira como tocavam o menino, mas os outros dois detiveram seu gesto. Confabularam um instante entre si, depois sorriram como a desculpar-se por não poderem iniciar-me, por enquanto, pelo menos. Mas não fiquei humilhado. Sabia que meu papel era outro, sabia que eu ficaria, assim como o menino também sabia o que lhe estava destinado.

Apoiado numa árvore, deixei-me ficar durante muito tempo olhando aquela espécie de dança, e acho que de repente adormeci, um pouco porque anoitecia, mas principalmente porque talvez a minha ausência talvez fosse importante naquela hora. Quando acordei, estava tudo escuro e em silêncio. Não consegui encontrá-los, nem ao menino. Lembrei então que me espreitavam, antes que eu dormisse, e que colavam seus pulsos aos pulsos do menino e comunicavam qualquer coisa como ordens, e ele parecia entender, concordar. Um pressentimento me veio. Soube apenas que precisava voltar o quanto antes à vila. Era difícil me movimentar no meio dos galhos e das folhas e das raízes sem enxergar absolutamente nada, formas se enredavam em meus pés, coisas geladas tocavam meus braços, arranhavam meu rosto. Não sei quantas horas fiquei por ali, tentando sair, andando em círculos, aquele pressentimento negro me oprimindo o peito.

Acho que já era muito tarde quando consegui alcançar a estrada. E lá de cima vi o fogo. A vila ardia. Desci a montanha correndo, estava muito cansado mas havia alguma coisa que precisava ser salva antes que fosse demasiado tarde, embora eu soubesse que não conseguiria salvar nada, e que tanto o menino como aqueles três seres haviam escolhido o mais fundo que a simples salvação. Quando cheguei, a vila era um inferno. As casas queimavam e as pessoas corriam desesperadas tentando apagar o fogo. Fui perguntando como aquilo acontecera, disseram-me que tudo havia começado na casa do prefeito e se alastrara depois pelas casas dos outros líderes e que ninguém sabia ao certo como tudo começara: haviam apenas visto aquele menino olhando fixamente do meio da praça para a casa do prefeito, e depois o fogo, e que o menino não se movera do meio da praça, e repetira que o mais importante é a luz, mesmo quando consome, isso lhe dissera o primeiro ser, e que a cinza é mais digna que a matéria intacta, isso lhe dissera o segundo ser, e que se salvariam apenas aqueles que aceitassem a loucura escorrendo em suas veias. Com o olhar, ateava fogo às casas dos líderes, um a um. Chamaram sua mãe para que o detivesse, e foi ela quem falou dos estranhos seres. Dividiram a população em dois grupos: um deles tentava apagar o fogo enquanto o outro partia armado de tochas em direção à montanha.

Fiquei um instante sem saber o que fazer, procurei o menino no meio da praça, dos escombros e da cinza, mas não consegui encontrá-lo. Saí então para a montanha, tentei chegar na frente do grupo, mas eles estavam enfurecidos, os olhos torvos, as bocas cheias de espuma, ódio, incompreensão e noite. Eles estavam os três na entrada do bosque, como se esperassem. Exatamente como se esperassem. Não reagiram quando as pessoas caíram sobre eles, espancando-os até que uma substância clara e perfumada começasse a escorrer das feridas. Ao aspirarem essa substância as pessoas caíam ao chão, os olhos desmesurados, os movimentos descontrolados, fazendo e dizendo coisas sem nexo, como se tivessem tomado alguma droga. Pareciam embriagadas, loucas e felizes com o sangue dos três seres alucinando suas mentes. Não teriam conseguido subjugá-los se alguns dos habitantes não tivessem arrancado as camisas para taparem as narinas, evitando aspirar aquele perfume enlouquecedor.

A mim, não aconteceu quase nada: pouco mais que uma vertigem e algumas cores nunca suspeitadas e extremamente nítidas. Os homens com os narizes tapados pelas camisas amarraram e amordaçaram os três seres, depois carregaram-nos a pontapés pela montanha abaixo. Levei algum tempo para despertar da tontura e daquela loucura de cores e formas que envolviam meus sentidos. Quando consegui movimentar-me desci correndo a montanha. Ao chegar à vila era madrugada, o fogo fora dominado, embora as casas estivessem calcinadas e a cinza cobrisse as ruas. Havia apenas um grande fogo no meio da praça. Caminhei até lá, na esperança de salvá-los. Mas já não era possível. Estavam os três sobre uma fogueira que começava a lamber-lhes os pés. Afastei as pessoas que jogavam pedras e gritavam insultos — alguma coisa me dizia que precisava tocá-los. Quando consegui me aproximar, os três deixaram seu olhar cair sobre mim, seus olhos de luz deslizaram por sobre todo meu corpo até se deterem nos pulsos.

Então, senti a carne queimar e abrir numa ferida — voltaram os próprios olhos para os próprios pulsos, abrindo as mesmas feridas que libertaram uma substância clara —, depois, um de cada vez, colaram seus pulsos escorrendo substância clara contra meus pulsos escorrendo sangue. Senti que o meu sangue se dissolvia em contato com o sangue deles — e em breve sentia escorrer dentro de minhas veias aquele mesmo líquido ardente de loucura e alegria. O fogo já atingia seus joelhos quando, entontecido, comecei a me afastar. As cores se chocavam contra minhas retinas. E tudo era: belo não: não belo tudo: as coisas: elas próprias: as coisas verdadeiras: e profundas belas como: pode ser belo: também o terrível eu: me afastava entre céu e inferno tentando ver: beleza no fogo carbonizando: suas carnes claras o líquido: escorria farto e as: pessoas correndo enlouquecidas: vastas e miúdas: ruas. Fui afundando aos poucos numa vertigem em direção sem direção às cores multifacetadas multifacientes as faces e as formas e depois os roxos do amor e do nojo sobre um branco silêncio em branco como contra um muro nem fundo sem fim.

Quando acordei, só restavam cinzas. Três pequenos montículos de cinza clara boiando na substância estagnada — loucura coagulada. A população enlouquecida se estraçalhava pelas ruas. E de repente vi outra vez o menino: saía da vila em direção ao bosque. Corri atrás dele quis detê-lo para que me explicasse alguma coisa, mas quando voltou-se tive certeza de que não conseguiria mais atingi-lo: não era mais aquele menino. Era um deles, com os mesmos olhos azuis em luz, sem sexo, lento e decidido. Voltou-se e disse a única coisa que ouvi de sua voz. Uma coisa assim:

Deixa que a loucura escorra em tuas veias. E quando te ferirem, deixa que


o sangue jorre enlouquecendo também os que te feriram
. Depois se foi.

Nunca mais o vi. Mas sei que existem outros como ele, isso eu queria dizer a você: eles estão aqui.

Os habitantes da vila levaram muitos dias para voltarem ao normal — depois dos homens terem provado do sexo de outros homens, e também dos peitos das mães e das irmãs, e de terem bebido dos pais o mesmo líquido de que foram feitos, e de terem cruzado com animais e se submetido à luxúria dos cães e dos cavalos e dos touros, e de terem possuído a terra e a palha como se fossem mulheres ou o reverso de homens iguais a eles —, mas não voltaram. Agora os dias não são mais de pesca, sono, sesta, cadeiras sem procuras na frente das casas. Todos buscam com olhos desvairados luzes estranhas no céu, alfa, beta, gama, delta, sinas, signos, cumprem esquisitos rituais de devoção e perdição. Nada sabem. Nem sequer lembram dos três seres e do menino: foram apenas despertos para o oculto. Mas não sabem o que fazer do desconhecido — do imensamente permitido — revelado. E não podem voltar atrás.

Eu disse a você que ver era irreversível. Eles viram. Às vezes penso se eles não sabem que eu sei, e desta substância clara correndo dentro de minhas veias. Às vezes escuto murmúrios indistintos e agressivos quando saio às ruas. Mais cedo ou mais tarde, alguma coisa vai acontecer. Talvez me firam, mas, quando isso acontecer, das minhas veias vai escorrer tanta loucura que eles não voltarão nunca do inferno onde serão jogados por meu sangue. Ainda não os odeio o suficiente. Mas esse ódio cresce dia a dia: eles mataram a claridade. Não souberam entender que haviam sido escolhidos. Os seres não voltarão jamais. A vingança foi perfeita. Eles ficarão perdidos na treva da insatisfação até o fim de seus dias. E mesmo aquele menino que eu amava porque era como eu não me atrevi a ser ou os outros como ele que existem por aí consigam que a luz se faça em outros pontos do mundo, aqui não chegará um raio.

Por isso meu ódio cresce Quando atingir um nível insuportável, não será difícil: basta uma lâmina contra o pulso. Nem isso. Uma simples picada de alfinete. Menos até Um arranhão. Talvez aquele menino volte, talvez eu esteja mesmo sozinho, talvez você ache que sou louco. Queria que você entendesse que apenas contei o que realmente aconteceu, e se isso que aconteceu é loucura, quem enlouqueceu foi o real, não eu, ainda que você não acredite. Não tem importância. A história é essa, talvez eu tenha falado mais do que devia, mas tenho uma certeza dura de que nem você nem os outros todos perdem por esperar. Cuidado: eles estão aqui: à nossa volta: entre nós: ao seu lado: dentro de você.

Sarau
Estou certo de que se não tivesse ido à cozinha aquela noite não os teria encontrado. Apenas não era possível ficar sem fazer nada enquanto meus pais jogavam cartas na sala. Tinham-me perguntado duas ou três vezes se eu não queria jogar — e duas ou três vezes respondi que não. Talvez houvesse falado secamente, porque eles baixaram a cabeça como se estivessem sendo agredidos e, espantosamente, continuaram a jogar. Digo espantosamente porque era quase inacreditável a lentidão com que movimentavam os braços para depositar cartas sobre a toalha de plástico. As vezes os movimentos se espaçavam a tal ponto que, suspenso, eu esperava o momento em que um deles dissesse não suportar mais. Mas embora os espaços aumentassem, ninguém dizia nada A impressão que eu tinha era de que o jogo ganhava a forma de enormes intervalos de silêncio, cada vez mais vazios, interligados por uma ou outra carta. Desde sempre jogavam assim, ninguém ganhava, ninguém ganharia nunca — dizia-me lentamente enquanto olhava para suas cabeças falsamente absortas. Olhei em volta, mas também ali não acontecia nada. Algumas folhas batiam na vidraça, e nada mais que isso.

Foi então que surpreendi os dois olhando para mim como se esperassem. Mas não havia nada para dar a eles. Rapidamente, então, imaginei uma cimitarra e, sem parar de pensar, dotei-a de uma infinidade de movimentos circulares — como se dançasse. Só que não havia nenhuma mão a sustentá-la. Eles continuavam me olhando enquanto o som do relógio crescia, espalhado quase insuportável por entre as cartas e os espaços vazios. E foi ainda então que houve a necessidade de um gesto meu. Levantei-me e enveredei em direção à cozinha. Debrucei a cabeça sobre a mesa limpa como se chorasse. Apenas como. Não havia porquê, e eu sempre pensava que devia haver uma motivação a orientar qualquer gesto meu. Rocei a face contra a superfície da madeira. Ela me feriu de leve com suas aparas quase imperceptíveis.

Fechei os olhos e julguei descobrir alguma coisa no fundo das pupilas: criavam-se certos movimentos verticais, tão imprecisos quanto bruscos, e apertando mais os olhos eles se alargavam, ganhando alguns toques dourados. Esse era um dos meus divertimentos favoritos nos últimos tempos: acreditava sentir em mim remotas forças reveladas e expressas naquelas sombras que moravam no fundo de meus olhos. Não sabia que espécie de forças, afinal de contas sempre fui um desconhecido para mim mesmo — sabia porém que eram violentas essas forças, diria mesmo fortes forças, não fosse sem sentido. Mas essas forças, ou o que quer que fossem aqueles movimentos escuros e verticais, nunca chegavam além das pálpebras. Foi pensando nisso que abri os olhos e encontrei a cimitarra. Ela avançava para mim com seus movimentos circulares, como se desejasse cortar-me. Como não me surpreendi, ela parou no meio do caminho.
Saí da cozinha e desci velozmente as escadas sem parar na sala. À porta do edifício detive brusco os passos e olhei para trás, a ver se ela me seguia. Não consegui enxergar nada na escuridão: abri a porta e saí para a noite. Sentei num dos bancos do jardim do edifício e fiquei ali, perdido entre as hortênsias meio murchas, até que um contato frio no ombro esquerdo obrigou minha cabeça a voltar-se. Independente de meu comando, ela voltou-se e viu a cimitarra. Não posso negar que seus movimentos eram doces, e não foi por outro motivo que obriguei meus olhos a encararem-na sérios, talvez excessivamente sérios, porque seus movimentos começaram a intensificar-se de tal maneira que fui obrigado a suspirar, exausto.

A verdade é que ela me cansava um pouco com seus movimentos sempre iguais, e principalmente com aqueles vulgares reflexos da lua em sua lâmina polida. Mas não podia negar também que era bela, tão bela quanto pode ser uma cimitarra, apesar de um tanto acadêmica. Bocejei, tentando fechar novamente os olhos para voltar à minha brincadeira. Mas não foi possível descobrir no fundo das pupilas os mesmos objetos imprecisos, contraindo-se vertical e horizontalmente, como numa dança hindu. Agora eram duas cimitarras de lâminas cintilantes que, nítidas, oscilavam por entre as pálpebras. Dentro e fora de meus olhos, a paisagem era a mesma. Resolvi, portanto, abri-los, o que fiz com certo cuidado, temeroso de que um gesto brusco pudesse provocar o desabamento de qualquer coisa que eu não conseguia precisar o que fosse.


Olhei primeiro as hortênsias, depois a luz, depois espalmei a mão sobre o cimento do banco, certifiquei-me de que não havia estrelas, constatei a frieza do cimento, tentei sentir um pouco de frio — mas finalmente fui obrigado a admitir o impossível: a cimitarra havia-se multiplicado em cinco. Essas cinco cimitarras agora estavam paradas à minha volta, poderia mesmo dizer que: expectantes. Não fiz nenhuma pergunta: limitei-me apenas a observá-las com mais cuidado que antes. Mas não havia nada de extraordinário nelas.

Pensei ficar mais tranqüilo com essa descoberta, mas aos poucos fui distinguindo alguns contornos bastante esmaecidos por trás delas. Forcei a vista e, à medida que me empenhava em ver cada vez melhor, mais esmaecidas se faziam as formas. Depois de alguns minutos, desisti. No momento em que julguei ter desistido, as sombras se tornaram mais acentuadas e, sem nenhum esforço de minha parte, transformaram-se em cinco seres desconhecidos. Tinham a mesma aparência — todos baixos, musculosos, de cabeças raspadas, narinas largas e olhos inteiramente verdes, sem pupila, íris ou esclerótica, seu lábios eram grossos e traziam argolas nas orelhas.

“Mas eu nunca os imaginei” — tentei dizer-lhes, ao mesmo tempo em que, sem saber exatamente a razão, achava-os parecidos com uma tapeçaria que vira em algum antiquário no mercado persa da cidade. Ao mesmo tempo em que abri a boca, senti contra os lábios o contato da madeira. Isso era impossível, porque eu estava sentado num banco de cimento. Sem me mover, percebi que meus olhos estavam fechados, e erguendo uma das mãos apalpei a superfície onde estava debruçado. Parecia uma mesa, a mesma da cozinha de nossa casa. Deve ser um sonho — pensei sem originalidade. Vim até a cozinha e dormi. Mas ao abrir olhos verifiquei que, embora realmente estivesse na mesa da cozinha, os seres continuavam presentes.

Não movi um músculo, com a intenção de não fazer absolutamente nada enquanto não fosse usada a violência. Mas lentamente alguma coisa em meu cérebro começou a pulsar. Julguei que fosse uma célula, embora não soubesse ao certo o que seria uma célula. Pulsava do lado esquerdo de minha fronte, exatamente como pulsaria uma veia. Levando as mãos à testa, porém, percebi que a veia continuava imóvel, no mesmo lugar de sempre, e por entre as gotas de suor continuei sentindo o pulsar invisível da coisa, cada vez mais intenso. Já quase dilacerava meu cérebro, me impedindo de pensar, ensurdecedora, absurda — quando tive a sensação que gritava.

Os cinco seres tiveram um quase imperceptível movimento de alegria quando fiz menção de levantar. Havia-se formado entre nós uma espécie de corrente telepática: olhando a extensão inteiramente verde de seus olhos percebi que sorriam e me incitavam a ir adiante no que começara. Tentei dizer que não começara coisa alguma, mas imediatamente senti quase como um soco a extraordinária beleza daqueles cinco seres e suas cimitarras. Enquanto avançava na compreensão do que eles me ditavam, ia descobrindo com mais precisão o sentido de tudo aquilo.

Não hesitei quando um deles me empurrou em direção à porta. Entrando na sala, percebi com surpresa que o ponteiro dos minutos do relógio quase não se movera desde a última vez que eu o olhara. E, no entanto, a minha sensação era de que tinham se passado horas. Curvados sobre a mesa, os meus pais continuavam seu espaçado jogo. Cruzei os braços e me recostei à janela, abrindo-a para que entrasse um pouco de ar

Quando senti que tudo estava preparado, fiz um sinal em direção aos dois velhos e esperei. Os cinco seres deixaram-se cair sobre eles. Dois seguraram meu pai enquanto outros dois seguravam minha mãe e o quinto cortava-os rapidamente com golpes de cimitarra. Cortaram-nos em inúmeros pedaços que caíram espalhados pelo chão, sem sangue nem gritos. Em seguida reuniram-se em torno da carne e banquetearam-se fartamente, sem deixar vestígios. Antes de terminarem, um deles me ofereceu um pedaço das costas de meu pai, mas preferi ir até a geladeira e beber um copo de leite.

O afogado
Para Augusto Rigo
“Sim, nada é mais difícil e delicado, até mesmo sa-grado, quanto o ser humano. Nada pode igualar o poder voraz desses misteriosos elementos que, sem grandeza ou finalidade, nascem entre desconhecidos para acorrentá-los pouco a pouco com elos terríveis”

(Witold Gombrowicz: Bakakai)

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