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Pocket;0] Coleção L&pm pocket, vol. 260 Primeira edição na Coleção L&PM


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Gama

Curioso es que la gente crea que tender una cama es exactamente lo mismo que tender una cama, que dar la mano es siempre lo mismo que dar la mano, que abrir una lata de sardinas es abrir al infinito la misma lata de sardinas.”


(Julio Cortázar: Las armas secretas)
Harriett
Para

Luzia Peltier que soube dela
“No fundo do peito, esse fruto apodrecendo a cada dentada.”

(Macalé & Duda Machado: Hotel das Estrelas)


Chamava-se Harriett, mas não era loura. As pessoas sempre esperavam dela coisas como longas tranças, olhos azuis e voz mansa. Espantavam-se com os ombros largos, a cabeleira meio áspera, o rosto marcado e duro, os olhos escurecidos. Harriett não brincava com os outros quando a gente era criança. Harriett ficava sozinha o tempo todo. Mesmo assim, as pessoas gostavam dela.

Quase todo mundo foi na estação quando eles foram embora para a capital. Ela estava debruçada na janela, com os cabelos ásperos em torno das maçãs salientes. Eu fiquei olhando para Harriett sem conseguir imaginá-la no meio dos edifícios e dos automóveis. Acho que senti pena — e acho que ela sentiu que eu sentia pena dela, porque de repente fez uma coisa completamente inesperada. Harriett desceu do trem e me deu um beijo no rosto. Um beijo duro e seco. Qualquer coisa como uma vergonha de gostar.

Essa foi a primeira vez que eu vi os pés dela. Estavam descalços e um pouco sujos. Os pés dela eram os pés que a gente esperava de uma Harriett. Pequenos e brancos, de unhas azuladas como de criança. Eu queria muito ficar olhando para seus pés porque achei que só tinha descoberto Harriett na hora dela ir embora. Mas o trem se foi. E ela não olhou pela janela.

Um tempo depois a gente viu uma fotografia dela numa revista, com um vestido de baile. Harriett era manequim na capital. Todo mundo falou e comprou a revista. Quase todos os dias a gente via a foto dela nos jornais. Harriett era famosa. A cidade adorava ela, mas ela nunca escreveu uma carta para ninguém.

Muito tempo depois, eu a vi outra vez. Eu estava trabalhando num jornal e tinha que fazer uma entrevista com ela. Harriett estava sozinha e não ficou feliz em me ver. Continuava grande e consumida e tinha nos olhos uma sombra cheia de dor. Fumava. Falei da cidade, das pessoas, das ruas — mas ela pareceu não lembrar. Contou-me de seus filmes, seus desfiles, suas viagens — contou tudo com uma voz lenta e rouca. Depois, sem que eu entendesse por que, mostrou-me uma coisa que ela tinha escrito. Uma coisa triste parecida com uma carta. Tinha um pedaço que nunca mais consegui esquecer, e que falava assim:
sabe que o meu gostar por você chegou a ser amor pois se eu me comovia vendo você pois se eu acordava no meio da noite só pra ver você dormindo meu deus como você me doía vezen quando eu vou ficar esperando você numa tarde cinzenta de inverno bem no meio duma praça então os meus braços não vão ser suficientes para abraçar você e a minha voz vai querer dizer tanta mas tanta coisa que eu vou ficar calada um tempo enorme só olhando você sem dizer nada só olhando olhando e pensando meu deus ah meu deus como você me dói vezenquando
Quando terminei de ler, tinha vontade de chorar e fiquei uma porção de tempo olhando para os pés dela. E pensei que ela parecia ter escrito aquilo com seus pés de criança, não com as mãos ossudas. Eu disse para Harriett que era lindo, mas ela me olhou com aquela cara dura que a gente não esperava de uma Harriett e disse que não adiantava nada ser lindo. Tive vontade de fazer alguma coisa por ela. Mas eu só tinha uma vaga numa pensão ordinária e um número de telefone sempre estragado. Eu não podia fazer nada. E se pudesse, ela também não deixaria. Fui embora com a impressão de que ela queria dizer alguma coisa.

Três dias depois a gente soube que ela tinha tomado um monte de comprimidos para dormir, cortou os pulsos e enfiou a cabeça no forno do fogão a gás. Foi muita gente no enterro e ficaram inventando histórias sujas e tristes. Mas ninguém soube. Ninguém soube nunca dos pés de Harriett. Só eu. Um desses invernos eu vou encontrar com ela no meio duma praça cinzenta e vou ficar uma porção de tempo sem dizer nada só olhando e pensando: que pena — que pena, Harriett, você não ter sido loura. Vezenquando, pelo menos.



O dia de ontem
Para
Vera Lopes, que gostava dos meus contos
Ainda ontem à noite eu te disse que era preciso tecer. Ontem à noite disseste que não era difícil, disseste um pouco irônica que bastava começar, que no começo era só fingir e logo depois, não muito depois, o fingimento passava a ser verdade, então a gente ia até o fundo do fundo. Eu te disse que estava cansado de cerzir aquela matéria gasta no fundo de mim, exausto de recobri-la às vezes de veludo, outras de cetim, purpurina ou seda — mas sabendo sempre que no fundo permanecia aquela pobre estopa desgastada.

Perguntaste se o que me doía era a consciência. Eu te disse que o que me doía era não conseguir aceitar minha pobreza. E que eu não sabia até quando conseguiria disfarçar com outros panos aquele outro, puído e desbotado, e que eu precisava tecer todos os dias os meus dias inteiros e inventar meus encontros e minhas alegrias e forjar esperas e me cercar de bruxos anjos profetas e que naquele momento eu achava que não conseguiria mais continuar tecendo inventos. Perguntei se achavas que minha fantasia me doía, e se me doendo também te doía. E não disseste nada. Embora estivéssemos no escuro, consegui distinguir tua mão arroxeada pela luz de mercúrio da rua apontando em silêncio o telefone calado ao lado de minha cama. O telefone em silêncio no silêncio.

Então eu te disse que me doíam essas esperas, esses chamados que não vinham e quando vinham sempre e nunca traziam nem a palavra e às vezes nem a pessoa exatas. E que eu me recriminava por estar sempre esperando que nada fosse como eu esperava, ainda que soubesse. Disseste de repente que precisavas ter os pés na terra, porque se começasses a voar como eu todas as coisas estariam perdidas. A droga corria em meus adentros abrindo sete portas entorpecendo o corpo e fazendo cintilar a mancha escura no centro de minha testa. Mas eu te ouvia dizer que sabias ser necessário optar entre mim e ela, e que optarias por ela por comodidade, para não te mexeres daquele canto um pouco escuro e um pouco estreito, mas teu — e que optarias por ficar comigo porque a minha loucura te encantaria e te distrairia, embora precisasses te agitar e negar e ouvir e sobretudo compreender novamente tudo todos os dias. E disseste que optavas por mim. Eu já sabia. Por isso não te disse que comigo seria mais difícil do que com ela. Porque sabias também que em todos os de-repentes eu estaria abrindo as asas sobre um desconhecido talvez intangível para ti. Não dissemos, mas concordamos no silêncio cheio de livros e jornais entre nossas duas camas, que querias a salvação e eu a perdição — ainda que nos salvássemos ou nos perdêssemos por qualquer coisa que certamente não valeria a pena. Nem era preciso dizer que não era preciso dizer: eu era o teu lado esquerdo e tu eras o meu lado direito: nos encontrávamos todas as noites no espaço exíguo de nosso quarto.

Eu viajava no meio de pinheiros brancos quando disseste que a única coisa que havias desejado o dia inteiro era chorar sem salvação, num canto qualquer, sem motivo, sem dor, até mesmo sem vontade, de mágoa, de saudade, de vontade de voltar. Não haviam permitido, inclusive eu. Mas percebes tanto: quando eu me dobrava em remorso pediste para que eu cantasse cantigas de ninar, que cantei com a voz rouca de cigarros e drogas. E enquanto adormecias, lembrei da tarde.

Era feriado na manhã, na tarde e na noite de ontem à noite. Eu lembrava da tarde e pedia para bichos-papões saírem de cima do telhado: nós comíamos lentamente bolachas com requeijão e leite — e lembro tão bem que ainda que não tivesse sido ontem, continuaria sendo ontem na memória — quando comecei a cantar um samba antigo, que nem lembrava mais porque acordava em mim uma coisa que eu não seria outra vez. Foi então que começaste a chorar e eu sentei a teu lado e não compreendendo te disse que não, te disse inúmeras vezes que não, que não era bom, que não era justo, que não era preciso — mas choravas e dizias que era tão bonito quando ele tocava violão cantando aquela música e que fazia tanto tempo e que o filho dele se chamava Caetano e tinha morrido de repente ai uma vida tão curtinha mas tão bonita sem que ninguém entendesse e que havias falado com ele pelo telefone e que o tempo todo aquele samba antigo dizendo que era melhor ser alegre que ser triste ficava te machucando no fundo de tudo o que dizias e pensavas em relação a ele e que querias chorar um três cinco sete dias sem parar sentindo vontade mansa de voltar.

Mais tarde, bem mais tarde, diríamos rindo que afinal não havíamos passado noites inteiras indo e vindo num trem da Central, sem ter onde dormir, dormindo nas areias do Leme, em todos os bancos de todas as praças, fazendo passeatas, sentindo fome, tentando suicídio, criando filosofias, desencontrando, procurando emprego, apartamento, amparo, amor — que não havíamos feito tudo isso para desistir agora, sem mais nem menos, no meio dum feriado qualquer, e que agora a gente só tinha mesmo que continuar porque a casca tinha endurecido — e riríamos muito, mais tarde, cheios de vitalidade e vontade de abrir janelas — mas por enquanto choravas com a cabeça escondida no travesseiro, e eu não compreendia. Talvez estivesse entrando numa compreensão, talvez voltasse ao meu livro e te deixasse em paz com tua vontade de afundar se os outros não tivessem chegado. Instalaram-se no nosso mundo como astronautas pisando no insólito sem-cerimônia, fecharam seus cigarros devagar, então ela chegou e pediste que ficasse perto, e senti medo e ciúme e de repente achei que optarias por ela, que te divertia e te mostrava as manchas roxas de chupadas pelo corpo e eu ria também porque te queria rindo e porque também gostava dela apesar da dureza de seus maxilares de pedra: gostava dela porque às vezes era criança e principalmente porque agora te fazia afastar a cabeça do travesseiro para observar nossos movimentos concentrados de quem começa a decolagem.

Decolamos em breve, nós três no meu planeta, vocês duas no teu: quando percebi, começara a chover. Chovia lá fora e eu estava parado no meio do quarto. Estava parado no meio do quarto e olhava para fora. Olhava para fora e repetia: nunca esquecerei daquela tarde de chuva em Botafogo, quando pensei de repente que nunca esqueceria daquela tarde de chuva em Botafogo. Tive vontade de dizer da minha suspeita, porque me sabias assim desde sempre sabendo anteriormente do que ainda não se fizeram. Assustavam-me essas certezas súbitas, tão súbitas que eu nada podia fazer senão aceitá-las, como todas as outras. Os próximos passos me eram dados sem que eu pedisse, e sem aqueles entreatos vazios, sala de espera, quando os outros propunham jogos da verdade e nós ríamos da sofreguidão deles em segurar com mãos limosas o que sequer se toca.

Te mostrei então o livro aberto, e a dedicatória para aquele remoto e provavelmente doce Paco — nos encontramos no espaço cósmico entre nossos dois planetas, e de repente disseste que precisavas sair para tomar um pico e eu disse que precisava sair contigo e comecei a pular em cima da cama e achei bom que fôssemos passear com chuva e eu não ficasse esperando o telefonema que não viria e a campainha que não tocaria e os astronautas que não voltariam a seu módulo sem nos esgotar inteiramente e a batalha que nos recusávamos a travar com eles e unimos nossas duas órbitas e deixamos os outros habitantes e visitantes espantados com a nossa retirada e nossa decisão e nossa contagem sete seis cinco quatro três dois um

— decolamos em direção à sala, alcançamos o patamar, a escada, a porta, a estratosfera. Viajamos pela rua sem direção e quando percebemos estávamos dentro do cemitério e eu cantava para uma sepultura vazia e misturávamos Hamlet com pornografia e João Cabral de Mello Neto e as pessoas nos olhavam ofendidas e gritávamos os deuses vivos Bethânia Caetano para a cova rendilhada de cimento e não compreendíamos além do irreversível daquele poço limitado por cimento ser o nosso único e certo limite limitado por cimento. Passeávamos devagar entre as sepulturas. Eu cantava incelenças e disseste que eu era inteligentinho porque te mostrara a dedicatória de Cortázar na hora em que precisavas de humildade porque fôramos como as ervas mas não nos arrancariam ainda que eu não fosse humilde até então eu não era humilde e recobria minha estopa matéria gasta perfurada com a vontade de te fazer explodir colorida e simultânea. A chuva fria varava nossas roupas, mas não chegava até a pele: nossa pele quente recobria nossos corpos vivos e passeávamos entre túmulos e eu dizia que no meu túmulo queria um anjo desmunhecado e não dizias nada e eu cantava e de repente olhaste uma flor sobre uma sepultura e disseste que gostavas tanto de amarelo e eu disse que amarelo era tão vida e sorriste compreendendo e eu sorri conseguindo e vimos uma margarida e nem sequer era primavera e disseste que margarida era amarelo e branco e eu disse que branco era paz e disseste que amarelo era desespero e dissemos quase juntos que margarida era então desespero cercado de paz por todos os lados.

Era o dia de ontem e era também feriado: sentamos sobre um túmulo e inventamos historinhas e nos deitamos de costas sobre o mármore do túmulo branco e lemos os nomes das três pessoas enterradas e eu pensei que estávamos recebendo os fluidos talvez últimos das três pessoas enterradas e fiquei aterrorizado porque não soube precisar se eram positivos ou negativos e chovia chovia chovia e a alameda de ciprestes ensombrecia as aléias vazias e subi no túmulo e imitei Carmen Miranda e disseste que ela estava enterrada naquele cemitério e pensamos: se um raio rompesse agora o cimento do túmulo e ela saísse linda e tropical com o turbante cheio de bananas pêras uvas maçãs abacaxis laranjas limões & goiabas dizendo que não voltara americanizada com trejeitos brejeiros e transluciferinos e de repente entrou um enterro de pessoas cabisbaixas e dissemos que a visão ocidental da morte era demais trágica mesmo para ex-suicidas como nós e que já era já era já era e eu repeti aos gritos que queria um anjo bem bicha desmunhecando em cima do meu túmulo sobre o cadáver do que eu fui ontem.

Mas de repente o medo que os portões fechassem porque anoitecia. O cemitério no meio do vale: o Cristo, montanhas, favelas, edificios, ruas, automóveis, pontes, mortes. Foi na saída que houve um entreato: paramos sobre uma poça d’água e eu te convidei para ver o nosso amigo árabe que a gente amava tanto porque ria em posições estranhas e tinha um irmão que viera do Piauí e não conhecia sorvete e disseste que precisavas ver teus tios que tinham vindo do sul para te ver e que querias ver o Juízo Final. E que ou víamos nosso amigo árabe e bruxo ou íamos aos teus tios e ao Juízo. Eu não soube escolher. Pedi que não me fizesses tomar decisões ontem hoje ou amanhã quaisquer que fossem — porque também sabíamos ambos que queríamos alguma coisa acontecendo nítida depois do cemitério. Foi então que aquele carro parou e perguntou sobre uma rua de Copacabana e informamos e lembramos que teus tios estavam em Copacabana e fomos de carona até Copacabana que, desta vez, não nos enganaria. Dentro do carro repeti o que acabavam de me dizer: espera que o inesperado dê o sinal.
Vermelho-verde-verde-vermelho.

Entrei com medo da recusa que sempre sentia nos olhos e nos gestos de todos que possuíam coisas e perguntaste se não seria melhor eu desamarrar o cabelo mas eu disse que não porque ia ficar enorme e eu não queria assustar nem agredir naquela hora exata eu não queria afastar nem amedrontar. A empregada abriu a porta para nós. E de repente aquela mulher começou a olhar para nós e a falar de seus transportes e viagens astrais. Alfa Centauro. Luz. Era espantoso uma mulher de vestido estampado fumando com piteira sobre tapetes quase tapeçarias e ar condicionado dizer que era filha de Oxum e que via no espelho rostos que não eram o seu e que uma vez voara suspensa sobre o próprio corpo gelado sem poder voltar. Era espantoso que tu a conhecesses há anos e nunca tivesses suspeitado daquela face oculta e louca e mágica atrás da máscara marcada mascarada mascar a máscara de nácar da aquariana.

Ontem, nós estávamos muito loucos. Voltamos de ônibus para comer atum e vermos o Juízo, e fizemos tudo rapidamente, e rapidamente encontramos um argentino que veio em nossa direção e viu o livro aberto de Cortázar e disse que era Peixes e eu disse Virgem e disseste Leão e dividimos com ele nosso atum e nossas bolachas roubadas de supermercados e convidamos ele para sair com a gente e gostamos dele e ele gostou de nós dum jeito tão direto e não me importou que meu amigo não tivesse telefonado e nenhuma carta tivesse chegado ainda que eu estivesse distraído. Quisemos que nosso novo amigo que escrevia e estudava arquiteturas há muito corrompidas bem antes e há tanto tempo fosse até o fim do dia de ontem conosco. Mas nos perdemos na porta do julgamento.

Depois eu chamei Baby de menina suja e gritei para ela: come chocolates, come chocolates, menina suja, e ela ria e explodia mais e nós ouvíamos sacudindo os cabelos repetindo juntos que éramos todos amor da cabeça ao pés. Depois nos esperavam a avenida deserta no Leblon e a Mona Lisa tomando suco de laranja. Já não era feriado, já não era ontem e nós apodrecíamos em tempoespaçoagora. Descemos do ônibus pisando em poças de lama, subimos devagar as escadas e foste conversar com nossa amiga loura e dura, às vezes criança, e lembrei que precisava achar um lugar para morar dentro de nove dias, agora oito, e que não tínhamos dinheiro nenhum, e que eu tinha medo, e que eu estava cansado de ser pago para guardar minha loucura no bolso oito horas por dia, e deitei, e olhei pela janela aberta, e fumei na piteira de marfim quebrado para economizar o cigarro, não por requinte, entende, éramos tão pobres, e quis não pensar, e abri Cortázar e li, e não li, e quis morrer, e lembrei que não conseguiria, e senti a insônia chegando, e soube que não resistiria, e lembrei que havias pedido que eu lesse Cortázar para ti, pausadamente, e soube que não conseguiria, e lembrei do amanhã sem feriado e da minha janela aberta sobre o aterro onde longe, no mar, vejo navios que vêm e vão à Europa, ao Oriente, a Madagáscar, e enquanto conversavas com nossa amiga loura e dura e raras vezes criança, eu ficava sozinho no nosso quarto, e quis te dizer de como era bom que a gente tivesse se encontrado, assim, sem pedir, sem esperar, e soube que não saberia, e precisei tomar os comprimidos amarelos para não afundar e sentir o telefone calado gritando em silêncio na cabeceira, e soube que nem o nosso nem outro qualquer encontro solucionava ou consolava exconsolatrix, e de repente percebi que os papéis tinham rasgado, o veludo esgarçado, as sedas desbotadas, e o que ficava era aquela estopa puída velha gasta: a pobreza indisfarçável de ser o que eu não tinha. Um tempo depois, seria mau contigo.

Então voltaste. E eu te disse que além do que não tínhamos, não nos restava nada. Disseste depois que o dia inteiro só querias chorar, e que eu aceitasse. Eu disse que achava bonito e difícil ser um tecelão de inventos cotidianos. E acho que não nos dissemos mais nada, e dissemos outra vez tudo aquilo que já havíamos dito e diríamos outras e outras vezes, e de repente percebemos com dureza e alívio que já não era mais o dia de ontem — mas que conseguíramos sentir que quem não nascer de novo já era no Reino dos Céus. Não sei se não ouviste, mas ele não veio e a noite inteira o telefone permaneceu em silêncio. Foi só hoje de manhã que ele tocou e ouvi tua voz perguntando lenta se eu ia continuar tecendo. Olhei para tua cama vazia, e para os livros sobre o caixote branco, e para as roupas no chão, e para a chuva que continuava caindo além das janelas, e para a pulseira de cobre que meu amigo me deu, e para a ausência do amigo queimando o pulso direito, mas perguntaste novamente se eu estava disposto a continuar tecendo — e então eu disse que sim, que estava disposto, que eu teceria. Que eu teço.
Uns sábados, uns agostos
Eles vinham aos sábados, sem telefonar. Não lembro desde quando criou-se o hábito de virem aos sábados, sem telefonar — e de vez em quando isso me irritava, pensando que se quisesse sair para, por exemplo, passear pelo parque ou tomar uma dessas lanchas de turismo que fazem excursões pelas ilhas, não poderia porque eles bateriam com as caras na porta fechada e ficariam ofendidos (eles eram sensíveis) e talvez não voltassem nunca mais. E como, aos sábados, eu jamais faria coisas como ir ao parque ou andar nessas tais lanchas que fazem excursões pelas ilhas, era obrigado a esperá-los, trancado em casa. Certamente os odiava um pouco enquanto não chegavam: um ódio de ter meus sábados totalmente dependentes deles, que não eram eu, e que não viveriam a minha vida por mim — embora eu nunca tivesse conseguido aprender como se vive aos sábados, se é que existe uma maneira específica de atravessá-los.

Disse-lhes isso, certa vez. Creio que se sentiram lisonjeados, como se debaixo daquilo que eu dizia friamente, como quem comunica, por exemplo, ter tomado um banho, nas entrelinhas eu dissesse, pudico e reservado, que simplesmente não saberia o que fazer de meus sábados, se não viessem sempre. Tremi quando cheguei a perceber o equívoco, pois era como uma declaração de amor velada e, de certa forma, criava entre nós um compromisso extremamente sério. Quase como se, mentalmente, assinássemos um contrato estabelecendo que: a) a partir daquele momento, eu me comprometia a jamais sair aos sábados; b) a partir daquele momento, eles se comprometiam a jamais deixar de me visitar aos sábados. Desde então, tudo ficou mais definido. Ou, melhor dizendo, mais oficializado. E afinal, chovesse ou fizesse sol, sagradamente lá estavam eles, aos sábados. Naturalmente chovesse-ou-fizesse-sol é apenas isso que se convencionou chamar força de expressão, já que há muito tempo não fazia sol, talvez por ser agosto — mas de certa forma é sempre agosto nesta cidade, principalmente aos sábados.

Não é que fossem chatos. Na verdade, eu nunca soube que critérios de julgamento se pode usar para julgar alguém definitivamente chato, irremediavelmente burro ou irrecuperavelmente desinteressante. Sempre tive uma dificuldade absurda para arrumar prateleiras. Acontece que não tínhamos nada em comum, não que isso tenha importância, mas nossas famflias não se conheciam, então não podíamos falar sobre os meus pais ou os avós deles, sobre os meus tios ou os seus sobrinhos ou qualquer outra dessas combinações genealógicas. Também não sabia que tipo de trabalho faziam, se é que faziam alguma coisa, nem sequer se liam, se estudavam, iam ao cinema, assistiam à televisão ou com que se ocupavam, enfim, além de me visitar aos sábados.

Então era natural que nossos encontros fossem um tanto estéreis, já que nunca ninguém tinha nada a dizer. Procurávamos compensar os enormes silêncios que invariavelmente se instalavam feito furos nos nossos esfarrapados diálogos, sobretudo eu, pois sempre achei que quem recebe deve se esmerar para evitar silêncios ou ruídos excessivos, embora não seja exatamente o que se possa chamar de um anfitrião mas, em todo caso, me esforçava. Assim, corria a fazer chá ou distribuir cinzeiros, abrir ou fechar janelas, colocar algum disco na vitrola e regular o volume de acordo com o gosto deles, tarefa essa em que gastava, no mínimo, uns trinta minutos. E ainda assim criavam-se furos em que os chás haviam acabado, e ninguém queria mais, as janelas estavam fechadas, e ninguém queria abri-las, os cinzeiros estavam vazios, mas ninguém queria fumar, o toca-discos em silêncio, mas ninguém queria ouvir música. Tudo assim como que perfeito, e não existe nada mais esterilizante do que a perfeição de não se querer nada além do que está à nossa volta. O furo se tornava tão espesso que, quando alguém falava, a voz soava áspera e brusca, como se tirasse uma lasca do silêncio. E atribuo a seu senso estético (ao meu também) o fato de, então, preferirmos ficar mesmo calados, por mais embaraçoso ou insuportável que fosse. Evidente que, quando eles saíam, os meus nervos estavam simplesmente aos pedaços, e acredito que também os deles não andassem em muito bom estado, embora sorrissem sempre e procurassem manter-se simpaticamente compreensivos para com a minha absoluta falta de habilidade em lidar com as pessoas.

Sei que fica um-pouco-não-sei-como falar sobre tudo isso sem detalhar nada, falar deles assim, em termos tão gerais — mas eu ficava tão submerso na tarefa de me sentir sendo visitado que sobrava pouco tempo para fazer qualquer coisa além de abrir ou fechar janelas etc. etc. Mesmo assim, havia brechas inesperadas na minha capacidade de observação, e lembro que num dos últimos sábados fiquei profundamente espantado ao perceber que um deles usava sapatos de pano. Tentando situar na memória o exato momento em que se deu essa percepção: creio que consigo situá-lo num daqueles instantes de perfeição, quando inconscientemente eu procurava algo destoante, pois só poderia falar sobre algo assim. Mas seria tão indelicado referir-me a seus sapatos de pano como uma imperfeição dentro de um daqueles sábados, sobretudo depois daquele nosso contrato, que achei bem mais educado calar-me, e nem sequer tentar subir os olhos procurando encaixar aqueles sapatos num par de meias, calças ou talvez saias e, quem sabe, uma cabeça.

Para eliminar, portanto, essa desagradável impressão de generalidade, posso dizer a meu favor isto: que um deles usava — ou usou, certa vez, e disso estou absolutamente certo — um par de sapatos de pano, e mais exatamente, pano marrom, e é bem possível ainda que houvesse junto ao salto e ao bico algumas partículas de lama endurecida, já que chovia tanto naqueles agostos, e já que lembro também de, mais tarde, quase madrugada, ter apanhado uma vassoura para varrer do tapete alguns fios de linha, cinzas, pontas de cigarro e — justamente — uma placa de lama endurecida, que não poderiam ter vindo de outro lugar senão de sapatos, embora não necessariamente de pano, e menos necessariamente ainda de pano marrom.

Uma dessas outras lembranças indiscutíveis foram umas flores amarelas que me trouxeram certa vez, embora não possa dizer se foram exatamente para mim. Quero dizer: compradas ou colhidas com a intenção específica de dá-las justamente a mim, pois reconheço friamente que minha aparência não convida muito a dar flores, e creio que eles eram desses que dão às pessoas coisas que a aparência dessas pessoas dê margem a suposições do gênero: gostará mais de cravos ou de rosas? em se tratando de rosas, amarelas, brancas ou vermelhas? se forem vermelhas, com ou sem espinhos? Mas tudo isso é inútil, porque as flores que me trouxeram — ou, mais verdadeiramente, como estou tentando dizer, as flores com que entraram no meu quarto e que deixaram sobre a mesa ao sair —, essas flores não eram rosas. Também não consegui saber o que eram, apesar de amarelas e um tanto moles, quase gordas, com as pétalas manchadas por uma matéria escura que parecia, a princípio, cinza — mas que soprada permanecia perfeitamente imóvel, como se fizesse parte mesmo das pétalas, um pigmento ou qualquer dessas coisas científicas que os vegetais costumam ter.

Como durante vários dias me esqueci dessas flores, elas perderam lentamente as pétalas, que precisei juntar uma a uma para jogar no corredor, depois varrêlas e colocá-las no lixo. Mas sobre isso, creio que poderá informar melhor algum vizinho ou mesmo o lixeiro: nesses agostos não é comum ver flores amarelas, mesmo murchas, esquecidas pelas latas de lixo. E isso, quero dizer, o lixeiro ou algum vizinho, será no mínimo mais uma testemunha das visitas deles. Se é que a estas alturas alguém ainda tem dúvidas a respeito de sua existência. Eu nunca duvidei, parece que isso está bastante óbvio — contudo reconheço não ser a minha linguagem exatamente aquilo que se possa chamar de clara ou/e objetiva.

Não me peça para descrevê-los ou dizer pelo menos quantos eram, eu não saberia. Não saberia dizer também a partir de quando deixaram de vir. Certamente que, na primeira vez em que violaram nosso contrato, devo ter ficado ansioso, pois nada fazia aos sábados a não ser recebê-los, e certamente devo ter corrido várias vezes do relógio para a janela, como é de praxe nessas situações. Embora não os amasse, em absoluto, disso tenho a maior e talvez única certeza. Às vezes chego a pensar que nem sequer os suportava. Apenas, os sábados eram tão longos e aquele agosto não terminava nunca mais, havia sempre o frio e a chuva, e se eles não viessem provavelmente eu ficaria enrolado neste cobertor ainda mais tempo do que fico agora, ouvindo os velhos discos e de vez em quando espiando sobre o telhado que há embaixo da minha janela. Com as chuvas freqüentes, começaram a nascer algumas plantinhas sobre esse telhado, mas as crianças não brincam mais no quintal do edifício vizinho.

Creio que se eles voltassem outra vez, eu lhes falaria dessas coisas, como quem prepara um chá ou vira um disco. Mas não virão mais, e não sei se isso me alivia. Me pergunto às vezes se eu mesmo não os teria expulsado com palavras duras num sábado qualquer, especialmente monótono. Não que os odiasse, isto é, odiava-os sim, mas só às vezes: o que me desagradava neles era principalmente serem um atestado tão veemente da minha profunda falta de assunto, do meu absoluto não ter aonde ir aos sábados e em todos os outros dias. Mas era bom sentir a tarde dobrando o meio-dia e depois ouvir o portão batendo e o barulho de seus passos no cimento da entrada e logo após o som da campainha: então eu me interrompia no que não estava fazendo e me preparava para a visita, como quem espera que algo aconteça. Embora nada chegasse a acontecer realmente: eles pertenciam a essa raça simpática e um pouco amorfa que, por delicadeza, nunca provoca acontecimentos que poderiam degenerar em situações embaraçosas, na opinião deles, pois na minha nada podia haver de mais embaraçoso do que permanecer dentro de um daqueles furos. E, então, mesmo abrir a janela era uma lasca.

Mas desde que não vieram mais, meus sábados inteiros são feitos de duras lascas que vou arrancando com movimentos desajeitados pelas salas e escadas desta casa vazia, à espera de que um daqueles ruídos antigos e inúteis como o portão batendo ou os passos deles no cimento ou a campainha tocando me puxe do centro desse agosto que não acaba. Ainda que fosse para tirar mais lascas ou permanecer em silêncio. Fico pensando se, com o tempom, não acabaríamos por nos desinibir, e talvez então até me convidassem para passear no parque ou numa dessas lanchas de turismo que fazem excursões pelas ilhas. Nem era preciso tanto: bastava que eu me tornasse capaz de perceber detalhes mesmo insignificantes, como um anel no dedo de um deles, ou mesmo um botão, um sorriso ou ainda apenas uma face. Qualquer coisa como aqueles sapatos de pano marrom. Mas nem sequer tenho telefone para que possam me avisar de uma provável volta.


Noções de Irene
Levou algum tempo para abrir a porta, a campainha soando sem resposta até que ele terminasse de ajeitar cuidadosamente as duas poltronas, uma em frente À outra. Depois entreabriu a pequena janelinha e simulou uma espécie de espanto:

– Ah, é você — e abriu a porta para que o outro entrasse. – Você foi pontual — acrescentou, apontando para uma das poltronas. – Sente-se, por favor. Estava com medo que você não viesse.

– Medo?

– É, não exatamente medo. Você compreende, praticamente não me conhecia. Deve ter ficado surpreso com o convite.



O outro sacudiu ligeiramente a cabeça. Parecia mesmo espantado, as mãos um pouco tensas sobre os joelhos dos jeans desbotados. Ele encaminhou-se para a mesinha e mostrou a garrafa de uísque.

– Muito ou pouco gelo?

– Puro, por favor.

Espantou-se também, um pouco. Mas imediatamente conteve-se: era preciso que tudo fosse feito com muito cuidado, e que todas as palavras e movimentos se encaminhassem para um único fim. Enquanto enchia o copo, examinou-o disfarçadamente. Tão jovem, pensou com uma sombra que chamaria amargura, não estivesse tão empenhado em delicadezas. Voltou com os dois copos e, sentando, não soube por onde começar. Hesitava entre falar diretamente ou esperar que um clima de cordialidade — certa cordialidade, pelo menos, concedeu — se estabelecesse enquanto os copos eram esvaziados. Então percebeu que o outro olhava para os discos.

– Gosta de música?

– Muito.



Claro, claro — pensou. — Todos eles gostam de música. Fez um movimento como se fosse levantar.

– Quer ouvir alguma coisa? — Sorriu. – Curtir um som... não é assim que vocês dizem?

O outro também sorriu:

– Sim.


– Bem, acho que não tenho exatamente aquilo que vocês gostam de ouvir. Irene sempre se queixa disso — estremeceu. Mas não havia nenhuma premeditação. O nome dela saíra naturalmente, assim como se não tivesse importância. Caminhou até a vitrola e perguntou: – Rock?

– Bach.


Escolheu rapidamente e voltou a sentar. Surpreso. Porque, afinal, não era como esperava. Talvez tivesse sido demasiado apressado em julgar, catalogar gostos, rotular expressões, como se nenhum deles fosse capaz de alguma individualidade. Afundou na poltrona. Os olhos muito claros do outro. Ou, quem sabe, estava apenas representando, justamente para confundi-lo.

– Não queria que fosse como um jogo.

– Como?

– O quê?

– Desculpe, não entendi direito o que você disse.

Cruzou as pernas, contrafeito:

– Falei sem pensar, desculpe. Ou melhor, pensei em voz alta. Disse que não queria que fosse como um jogo. — Ouviu a própria voz, um pouco rouca. Estava se comportando como um idiota. Mas subitamente resolveu dizer: – Bem, suponho que sabe por que pedi que viesse aqui.

– Sei. Suponho que sei.

Já havia começado. Não poderia mais voltar atrás:
ele olhou para cima da mesa e viu o porta-retratos voltado para baixo. Estendeu o prato com biscoitos. O outro serviu-se devagar.

– Estes biscoitos têm gosto de flor, não é?

O outro tornou a sorrir, os dentes aparecendo súbitos entre os fios de barba manchados de sol e fumo, os cabelos enormes. Ele levou o copo até a boca e ficou sentindo as pedras de gelo baterem contra os lábios. Arrancou um fio invisível da perna da calça.

– Quero dizer, se você sabe, ou se acha que sabe por que o convidei, bem, creio que não há necessidade de ficarmos... Bem, de ficarmos falando sobre outras coisas. Afinal, somos homens civilizados, não é?

O outro concordou sem falar, contraindo imperceptivelmente as sobrancelhas. Ele julgou perceber ironia no movimento, e por um instante odiou: todo concentrado em odiar profundamente. Falou rápido:

– Sou só um pouco mais velho que vocês. Uns dez anos. — Lembrou da outra vez que o vira, dizendo convicto: todo homem com mais de trinta anos é um canalha. Voltou a odiar um ódio compacto e breve: – Talvez daqui a vinte anos isso seja uma diferença insignificante. Mas por enquanto é terrível, quase um abismo. — Levantou-se brusco, não suportando o olhar muito claro do outro e suas mãos magras sobre os jeans desbotados. Afastou as cortinas e ficou olhando para fora: — O que quero dizer é que...

Deteve-se. No lado oposto da rua a pequena loja de flores fechava suas portas. Era quase noite. Sem sentir, fez uma longa pausa, praticamente esquecido do outro. Depois completou:

– Não me surpreende que ela vá embora.

Olhou-o. E de repente a música começou a ter importância: as notas subiam e baixavam, davam voltas concêntricas sobre um ponto desconhecido, subitamente se espatifavam para voltarem a recompor-se, cheias de pequenos movimentos internos, mas sem perderem a continuidade, escorrendo, fluidas. O outro, na esquina, os dedos formando um V, os dentes entre os fios manchados de barba, os cabelos crespos, enormes: – Grande lance, bicho. — Sentou-se com um suspiro:

– Quero dizer que não pretendo colocar a mínima dificuldade. Entendo perfeitamente tudo. E depois, mesmo que não entendesse, não adiantaria nada. Ela sempre fez o que quis. Mas não com... com agressividade, entende? Quero dizer, ela está sempre tão dentro dela mesma que qualquer coisa que faça não é nem certa nem errada, é simplesmente o que ela podia fazer. — Parou por um momento, talvez estivesse sendo subjetivo demais, quase literário. Não queria parecer ridículo, nem demasiado velho. Mesmo porque não sou velho. Nem ridículo. Tornou a levantar-se.

– Quer mais uísque?

O outro disse que não.

Encheu um copo e trouxe a garrafa para perto da poltrona. De repente perguntou, quase alegre:

– Sabia que Irene é um nome de origem grega?

O outro perguntou: – O quê?

– Quer dizer Mensageira da Paz — continuou, sem dar atenção. – Gozado, não é? Uma vez eu disse isso a ela, ela riu, disse que era besteira. Mas outro dia eu fiquei pensando e achei que tudo foi realmente muito calmo. Mesmo agora, não está sendo difícil. — Ergueu o copo. – Sabe, nunca houve assim... grandes cenas, choros ou desesperos, tentativas de suicídio ou sequer ameaças. Nenhuma dessas coisas. Ela tem horror de tragédia. — Sentou-se, o copo na mão. E repetiu: – Ela tem horror de tragédia. Às vezes, na hora do jantar, a televisão ficava ligada e a gente via umas novelas. Sabe, eu chorava potes com aquelas coisas, separações lancinantes, amores impossíveis. Ela ria o tempo todo e dizia que eu era uma besta. Ou então aqueles concursos de empregada mais desvelada, eu precisava sair da sala para que ela não me chamasse de besta. — A voz dele ficou um pouco mais baixa, quase inaudível. – Mas uma vez eu voltei de repente e surpreendi ela com uma lágrima escorrendo pela face. Desculpou-se e disse que às vezes era mesmo meio cafona. E mais baixo ainda: – Faz tanto tempo.

Estremeceu. Como se, de repente, percebesse que enveredava por um caminho perigoso. Sacudiu os ombros e reaprumou-se na poltrona. Riu alto e meio desafinado, enquanto tornava a encher o copo:

– A gente está falando dela como se estivesse morta. Mas está tão viva, não é?

Levantou-se para virar o disco. Depois voltou-se e perguntou:

– Você leu Cleo e Daniel?

Não prestou atenção na resposta. Apoiou a mão no encosto da cadeira:

– A primeira vez que vi vocês juntos, foi o que lembrei. Cleo e Daniel. Tudo era parecido, até aquela quantidade incrível de bolinhas brancas que você tirava do vidro enquanto ela formava figuras sobre a toalha. Ficava assim tão... tão doce, depois. Ou então falava horas. Às vezes sentava no chão e ficava enrolando aqueles cigarros fininhos, que eu achava com um fedor horrível. Dizia que eu estava por fora, me chamava de careta e ficava horas fazendo uns desenhos malucos.

Interrompeu-se para olhá-lo fixamente:

– Você é pintor, não é? Lembro que ela falou que uma vez você tinha feito uma exposição na praça, e que a polícia chegou e rasgou todos os quadros, menos os dois que ela tinha comprado. — E sem mudar de tom: – Talvez eu seja mesmo um chato. — Dobrou-se sobre a poltrona: – Você acha que eu sou um chato?

Olhou longamente para o outro, para as pernas cruzadas sobre a poltrona, como um iogue. Mas não ouviu a resposta.

– Lembra daquela cena, quando ela está deitada e passa alguém na rua cantando? Lembra aquela cena?

– De Cleo e Daniel?

– Não, não. Um livro não tem cenas, tem trechos. — Olhou para o próprio dedo, parado no ar. – Às vezes eu fico meio didático, não dê importância. — Acrescentou:

– Quem tem cenas é um filme.

– Qual era o filme?

– Filme?

– É, quando ela estava deitada e passava alguém na rua, cantando.

– Ah, você lembra, então? — Sorriu largo. – Sempre soube que você tinha visto aquele filme. Lembra da música?

– O quê?

– A música. A música que alguém passava cantando. Era assim: lo che non vivo piú di un‘ora senza te... Não lembro o resto. Faz tanto tempo. Acho que foi o primeiro filme que vimos juntos. Ela chorou o tempo inteiro.

Deslizou para a poltrona, tornou a encher o copo e virou-o de uma só vez:

– Talvez eu esteja falando demais: logo, isto não é um diálogo, é um monólogo. — Repetiu: – Às vezes eu fico meio didático. Mas fale alguma coisa, você não disse quase nada. Pode crer que nada me choca. Não que eu espere ouvir somente coisas chocantes de você, não é isso. Mas acho que vocês pensam que me chocam o tempo todo. Vocês não acham mesmo que sou muito velho e muito careta? Afinal, já tenho alguns anos de canalhice.

O outro disse que absolutamente. Então ele disse que achava que aquela música já estava enchendo, mas o outro não disse nada, então ele permaneceu durante muito tempo na mesma posição, acompanhando com a cabeça o som do cravo. Só parou para encher mais uma vez o copo. Subitamente falou em voz muito baixa:

– Sabe, não é verdade que eu entenda tudo.

– Não?


– Não, não é verdade. Não entendo, por exemplo, como é que ela pode trocar a segurança de ficar comigo pela insegurança de ficar com você. Vocês são todos tão... tão... — Interrompeu-se, procurando a palavra. – Tran-sitó-ri-os, é isso. Vocês são muito transitórios, entende? Tão instáveis, hoje aqui, amanhã ali. Eu sei, também já fui assim. Só que chega um ponto que a gente cansa, que não quer mais saber de aventuras ou de procuras, entende? Acho que é isso que vocês não são capazes de compreender, que a gente, um dia, possa não querer mais do que tem. É isso que ela não compreendia. Acho que é por isso que ela foi embora. Talvez as coisas comigo fossem muito chatas, muito arrumadas. Acordar todos os dias à mesma hora para encontrar a mesma cara. É engraçado. Ela dizia sempre que morreria qualquer dia, de susto, de bala ou vício. Acho que citava algum verso de um desses cantores que vocês tanto gostam, desses que morrem por excesso de drogas.

Levantou-se, o passo precário. Deu algumas voltas sem direção, depois tornou a encarar o outro:

– Sabe, acho que ela vai se destruir com você.

Virou mais uma vez o disco. Sabia que estava saindo tudo errado. Não era aquilo o que planejara, detalhado, meticuloso, arrumando as duas poltronas, uma em frente à outra, a mesinha com uísque, o balde de gelo. Talvez até chorasse agora, admitiu. A sala inteira girava quando ele se encaminhou para a janela. Espiou pelas dobras da cortina. Havia anoitecido. A loja de flores estava fechada, as latas de lixo transbordavam cravos, palmas, crisântemos. Deixou-se cair sobre os joelhos e não fez o menor esforço para levantar-se, as costas apoiadas contra a superfície fria da parede. O outro levantou-se e perguntou se não achava que estava bebendo demais. Ele disse que não, que não achava. E perguntou mais uma vez se não era mesmo um chato. O outro fez que não com a cabeça. Que de maneira alguma. Então ele disse que precisavam ainda conversar muitas coisas, com muita calma, com muito tato, como homens civilizados.

– Não é verdade que somos homens civilizados?

O outro disse que sim, disse muitas vezes que sim — e subitamente apertou o ombro dele com aquelas mãos magras e nervosas, como se compreendesse. Vistos de perto, os olhos eram ainda maiores e mais claros, um brilho seco nas pupilas dilatadas. A barba crescida, manchada de sol e fumo. Depois saiu devagar, fechou a porta atrás de si. Então ele encostou a cabeça na parede e ficou ouvindo aquelas notas subindo e baixando, dando voltas concêntricas sobre um pequeno ponto desconhecido, mas sem perderem a continuidade. De certa forma, disse baixinho, de certa forma Irene era assim.



A margarida enlatada

I
Foi de repente. Nesse de repente, ele ia indo pelo meio do aterro quando viu um canteiro de margaridas. Margarida era um negócio comum: ele via sempre margaridas quando ia para sua indústria, todas as manhãs. Margaridas não o comoviam, porque não o comoviam levezas. Mas exatamente de repente, ele mandou o chofer estacionar e ficou um pouco irritado com a confusão de carros às suas costas. O motorista precisou parar um pouco adiante, e ele teve que caminhar um bom pedaço de asfalto para chegar perto do canteiro. Estavam ali, independentes dele ou de qualquer outra pessoa que gostasse ou não delas: aquelas coisas vagamente redondas, de pétalas compridas e brancas agrupadas em torno dum centro amarelo, granuloso. Margaridas. Apanhou uma e colocou-a no bolso do paletó.

Diga-se em seu favor que, até esse momento, não premeditara absolutamente nada. Levou a margarida no bolso, esqueceu dela, subiu pelo elevador, cumprimentou as secretárias, trancou-se em sua sala. Como todos os dias, tentou fazer todas as coisas que todos os dias fazia. Não conseguiu. Tomou café, acendeu dois cigarros, esqueceu um no cinzeiro do lado direito, outro no cinzeiro do lado esquerdo, acendeu um terceiro, despediu três funcionários e passou uma descompostura na secretária. Foi só ao meio-dia que lembrou da margarida, no bolso do paletó. Estava meio informe e desfolhada, mas era ainda uma margarida. Sem saber exatamente por que, ficou pensando em algumas notícias que havia lido dias antes: o índice de suicídios nos países superdesenvolvidos, o asfalto invadindo as áreas verdes, a solidão, a dor, a poluição, a loucura e aquelas coisas sujas, perigosas e coloridas a que chamavam jovens. De repente, a luz. Brotou. Deu um grito:

—É isso!

Chamou imediatamente um dos redatores para bolar um slogan e esqueceu de almoçar e telefonou para suas plantações e mandou que preparassem a terra para novo plantio e ordenou a um de seus braços-direitos que comprasse todos os pacotes de sementes encontráveis no mercado depois achou melhor importá-las dos mais variados tamanhos cores e feitios depois voltou atrás e achou melhor especializar-se justamente na mais banal de todas aquela vagamente redonda de pétalas brancas e miolo granuloso e conseguiu organizar em poucos minutos toda uma equipe altamente especializada e contratou novos funcionários e demitiu outros e precisou tomar uma bolinha para suportar o tempo todo o tempo todo tinha consciência da importância do jogo exaustou afundou noite adentro sem atender aos telefonemas da mulher ao lado da equipe batalhando não podia perder tempo quase à meia-noite tudo estava resolvido e a campanha seria lançada no dia seguinte não podia perder tempo comprou duas ou três gráficas para imprimir os cartazes e mandou as fábricas de latas acelerar sua produção precisava de milhões de unidades dentro de quinze dias prazo máximo porque não podia perder tempo e tudo pronto voltou pelo meio do aterro as margaridas fantasmagóricas reluzindo em branco entre o verde do aterro a cabeça quase estourando de prazer e a sensação nítida clara definida de não ter perdido tempo. Dormiu.
II
No dia seguinte, acordou mais cedo do que de costume e mandou o chofer rodar pela cidade. Os cartazes. As ruas cheias de cartazes, as pessoas meio espantadas, desceu, misturou-se com o povo, ouviu os comentários, olhou, olhou. Os cartazes. O fundo negro com uma margarida branca, redonda e amarela, destacada, nítida. Na parte inferior, o slogan:
Ponha uma margarida na sua fossa.

Sorriu. Ninguém entendia direito. Dúvidas. Suposições: um filme underground, uma campanha antitóxicos, um livro de denúncia. Ninguém entendia direito. Mas ele e sua equipe sabiam. Os jornais e revistas das duas semanas seguintes traziam textos, fotos, chamadas:


O índice de poluição dos rios é alarmante.

Não entre nessa.

Ponha uma margarida na sua fossa.
Ou
O asfalto ameaça o homem e as flores.

Cuidado.

Use uma margarida na sua fossa.
Ou
A alegria não é difícil.

Fique atento no seu canto.

Basta uma margarida na sua fossa.
Jingles. Programas de televisão. Horário nobre. Ibope. Procura desvairada de margaridas pelas praças e jardins. Não eram encontradas. Tinham desaparecido misteriosamente dos parques, lojas de flores, jardins particulares. Todos queriam margaridas. E não havia margaridas. As fossas aumentaram consideravelmente. O índice de alcoolismo subiu. A procura de drogas também. As chamadas continuavam.

O índice de suicídios no país aumentou em 50%.

Mantenha distância.

Há uma margarida na porta principal.
Contratos. Compositores. Cibernéticos. Informáticos. Escritores. Artistas plásticos. Comunicadores de massa. Cineastas. Rios de dinheiro corriam pelas folhas de pagamento. Ele sorria. Indo ou vindo pelo meio do aterro, mandava o motorista ligar o rádio e ficava ouvindo notícias sobre o surto de margaridite que assolava o país. Todos continuavam sem entender nada. Mas quinze dias depois: a explosão.

As prateleiras dos supermercados amanheceram repletas do novo produto. As pessoas faziam filas na caixa, nas portas, nas ruas. Compravam, compravam. As aulas foram suspensas. As repartições fecharam. O comércio fechou. Apenas os supermercados funcionavam sem parar. Consumiam. Consumavam. O novo produto:


margaridas cuidadosamente acondicionadas em latas, delicadas latas acrílicas. Margaridas gordas, saudáveis, coradas em sua profunda palidez. Mil utilidades: decoração, alimentação, vestuário, erotismo. Sucesso absoluto. Ele sorria. A barriga aumentava. Indo e vindo pelo aterro, mergulhado em verde, manhã e noite — ele sorria. Sociólogos do mundo inteiro vieram examinar de perto o fenômeno. Líderes feministas. Teóricos marxistas. Porcos chauvinistas. Artistas arrivistas. Milionários em férias. A margarida nacional foi aclamada como a melhor do mundo: mais uma vez a Europa se curvou ante o Brasil.

Em seguida começaram as negociações para exportação: a indústria expandiu-se de maneira incrível. Todos queriam trabalhar com margaridas enlatadas. Ele pontificava. Desquitou-se da mulher para ter casos rumorosos com atrizes em evidência. Conferências. Debates. Entrevistas. Tornou-se uma espécie de guru tropical. Comentava-se em rodinhas esotéricas que seus guias seriam remotos mercadores fenícios. Ele havia tornado feliz o seu país. Ele se sentia bom e útil e declarou uma vez na televisão que se julgava um homem realizado por poder dar amor aos outros. Declarou textualmente que o amor era o seu país. Comentou-se que estaria na sexta ou sétima grandeza. Místicos célebres escreviam ensaios onde o chamavam de mutante, iniciado, profeta da Era de Aquarius. Ele sorria. Indo e vindo. Até que um dia, abrindo uma revista, viu o anúncio:


Margarida já era, amizade.

Saca esta transa:

O barato é avenca.
III
Não demorou muito para que tudo desmoronasse. A margarida foi desmoralizada. Tripudiada. Desprestigiada. Não houve grandes problemas. Para ele, pelo menos. Mesmo os empregados, tiveram apenas o trabalho de mudar de firma, passando-se para a concorrente. O quente era a avenca. Ele já havia assegurado o seu futuro — comprara sítios, apartamentos, fazendas, tinha gordos depósitos bancários na Suíça. Arrasou com napalm as plantações deficitárias e precisou liquidar todo o estoque do produto a preços baixíssimos. Como ninguém comprasse, retirou-o de circulação e incinerou-o.

Só depois da incineração total é que lembrou que havia comprado todas as sementes de todas as margaridas. E que margarida era uma flor extinta. Foi no mesmo dia que pegou a mania de caminhar a pé pelo aterro, as mãos cruzadas atrás, rugas na testa. Uma manhã, bem de repente, uma manhã bem cedo, tão de repente quanto aquela outra, divisou um vulto em meio ao verde. O vulto veio se aproximando. Quando chegou bem perto, ele reconheceu sua ex-esposa.

Ele perguntou:

– Procura margaridas?

Ela respondeu:

– Já era.

Ele perguntou:

– Avencas?

Ela respondeu:

– Falou.


Do outro lado da tarde
Para

Maria Zali Folly
Sim, deve ter havido uma primeira vez, embora eu não lembre dela, assim como não lembro das outras vezes, também primeiras, logo depois dessa em que nos encontramos completamente despreparados para esse encontro. E digo despreparados porque sei que você não me esperava, da mesma forma como eu não esperava você. Certamente houve, porque tenho a vaga lembrança — e todas as lembranças são vagas, agora —, houve um tempo em que não nos conhecíamos, e esse tempo em que passávamos desconhecidos e insuspeitados um pelo outro, esse tempo sem você eu lembro. Depois, aquela primeira vez e logo após outras e mais outras, tudo nos conduzindo apenas para aquele momento.

Às vezes me espanto e me pergunto como pudemos a tal ponto mergulhar naquilo que estava acontecendo, sem a menor tentativa de resistência. Não porque aquilo fosse terrível, ou porque nos marcasse profundamente ou nos dilacerasse — e talvez tenha sido terrível, sim, é possível, talvez tenha nos marcado profundamente ou nos dilacerado — a verdade é que ainda hesito em dar um nome àquilo que ficou, depois de tudo. Porque alguma coisa ficou. E foi essa coisa que me levou há pouco até a janela onde percebi que chovia e, difusamente, através das gotas de chuva, fiquei vendo uma roda-gigante. Absurdamente. Uma roda-gigante. Porque não se vive mais em lugares onde existam rodas-gigantes. Porque também as rodas-gigantes talvez nem existam mais. Mas foram essas duas coisas — a chuva e a roda-gigante —, foram essas duas coisas que de repente fizeram com que algum mecanismo se desarticulasse dentro de mim para que eu não conseguisse ultrapassar aquele momento.

De repente, eu não consegui ir adiante. E precisava: sempre se precisa ir além de qualquer palavra ou de qualquer gesto. Mas de repente não havia depois: eu estava parado à beira da janela enquanto lembranças obscuras começavam a se desenrolar. Era dessas lembranças que eu queria te dizer. Tentei organizá-las, imaginando que construindo uma organização conseguisse, de certa forma, amenizar o que acontecia, e que eu não sabia se terminaria amargamente — tentei organizá-las para evitar o amargo, digamos assim. Então tentei dar uma ordem cronológica aos fatos: primeiro, quando e como nos conhecemos — logo a seguir, a maneira como esse conhecimento se desenrolou até chegar no ponto em que eu queria, e que era o fim, embora até hoje eu me pergunte se foi realmente um fim. Mas não consegui. Não era possível organizar aqueles fatos, assim como não era possível evitar por mais tempo uma onda que crescia, barrando todos os outros gestos e todos os outros pensamentos.

Durante todo o tempo em que pensei, sabia apenas que você vinha todas as tardes, antes. Era tão natural você vir que eu nem sequer esperava ou construía pequenas surpresas para te receber. Não construía nada — sabia o tempo todo disso —, assim como sabia que você vinha completamente em branco para qualquer palavra que fosse dita ou qualquer ato que fosse feito. E muitas vezes, nada era dito ou feito, e nós não nos frustrávamos porque não esperávamos mesmo, realmente, nada. Disso eu sabia o tempo todo.

E era sempre de tarde quando nos encontrávamos. Até aquela vez que fomos ao parque de diversões, e também disso eu lembro difusamente. O pensamento só começa a tornar-se claro quando subimos na roda-gigante: desde a infância que não andávamos de roda-gigante. Tanto tempo, suponho, que chegamos a comprar pipocas ou coisas assim. Éramos só nós dois na roda-gigante. Você tinha medo: quando chegávamos lá em cima, você tinha um medo engraçado e subitamente agarrava meu braço como se eu não estivesse tão desamparado quanto você. Conversávamos pouco, ou não conversávamos nada — pelo menos antes disso nenhuma frase minha ou sua ficou: bastavam coisas assim como o seu medo ou o meu medo, o meu braço ou o seu braço. Coisas assim.

Foi então que, bem lá em cima, a roda-gigante parou. Havia uma porção de luzes que de repente se apagaram — e a roda-gigante parou. Ouvimos lá de baixo uma voz dizer que as luzes tinham apagado. Esperamos. Acho que comemos pipocas enquanto esperamos. Mas de repente começou a chover: lembro que seu cabelo ficou todo molhado, e as gotas escorriam pelo seu rosto exatamente como se você chorasse. Você jogou fora as pipocas e ficamos lá em cima: o seu cabelo molhado, a chuva fina, as luzes apagadas.

Não sei se chegamos a nos abraçar, mas sei que falamos. Não havia nada para fazer lá em cima, a não ser falar. E nós tínhamos tão pouca experiência disso que falamos e falamos durante muito e muito tempo, e entre inúmeras coisas sem importância você disse que me amava, ou eu disse que te amava — ou talvez os dois tivéssemos dito, da mesma forma como falamos da chuva e de outras coisas pequenas, bobas, insignificantes. Porque nada modificaria os nossos roteiros. Talvez você tenha me chamado de fatalista, porque eu disse todas as coisas, assim como acredito que você tenha dito todas as coisas — ou pelo menos as que tínhamos no momento.

Depois de não sei quanto tempo, as luzes se acenderam, a roda-gigante concluiu a volta e um homem abriu um portãozinho de ferro para que saíssemos. Lembro tão bem, e é tão fácil lembrar: a mão do homem abrindo o portãozinho de ferro para que nós saíssemos. Depois eu vi o seu cabelo molhado, e ao mesmo tempo você viu o meu cabelo molhado, e ao mesmo tempo ainda dissemos um para o outro que precisávamos ter muito cuidado com cabelos molhados, e pensamos vagamente em secá-los, mas continuava a chover. Estávamos tão molhados que era absurdo pensar em sairmos da chuva. Às vezes, penso se não cheguei a estender uma das mãos para afastar o cabelo molhado da sua testa, mas depois acho que não cheguei a fazer nenhum movimento, embora talvez tenha pensado.

Não consigo ver mais que isso: essa é a lembrança. Além dela, nós conversamos durante muito tempo na chuva, até que ela parasse, e quando ela parou, você foi embora. Além disso, não consigo lembrar mais nada, embora tente desesperadamente acrescentar mais um detalhe, mas sei perfeitamente quando uma lembrança começa a deixar de ser uma lembrança para se tornar uma imaginação. Talvez se eu contasse a alguém acrescentasse ou valorizasse algum detalhe, assim como quem escreve uma história e procura ser interessante — seria bonito dizer, por exemplo, que eu sequei lentamente os seus cabelos. Ou que as ruas e as árvores ficaram novas, lavadas depois da chuva. Mas não direi nada a ninguém. E quando penso, não consigo pensar construidamente, acho que ninguém consegue. Mas nada disso tem nenhuma importância, o que eu queria te dizer é que chegando na janela, há pouco, vi a chuva caindo e, atrás da chuva, difusamente, uma roda-gigante. E que então pensei numas tardes em que você sempre vinha, e numa tarde em especial, não sei quanto tempo faz, e que depois de pensar nessa tarde e nessa chuva e nessa roda-gigante, uma frase ficou rodando nítida e quase dura no meu pensamento. Qualquer coisa assim: depois daquela nossa conversa depois daquela nossa conversa na chuva, você nunca mais me procurou.
O ovo apunhalado
Para ler ao som de Lucy in the Sky with Diamonds,

de Lennon & McCartney.
Ao ovo dedico a nação chinesa.”

(Clarice Lispector: A legião estrangeira)
Ele saiu da moldura e veio caminhando em minha direção. Olhei para outro lado, mordi o lábio inferior, mas nada aconteceu: os carros passavam por cima da minha imagem refletida nas vidraças, os carros corriam e a minha imagem mordia o lábio inferior. Quando tornei a me voltar, ele continuava ali, a casca branca, as linhas mansas de seu contorno: um ovo. Disse-lhe isso — mas ele não parou —, você não vê que não tem a menor originalidade — e ele não parou—, todos já disseram tudo sobre você, qualquer cozinheira conhece o seu segredo.

Foi então que ele se voltou meio de lado, sobre a base mais larga, num movimento suave e um pouco cômico, como uma dessas mulheres de ombros caídos, seios pequenos, quadris fartos e pernas grossas. Eu comecei a rir e disse que tinha tido uma namorada assim, e como se não bastasse, ainda por cima se chamava Marizeti, veja só: Vera Marizeti. Mas ele não interrompeu o movimento. Continuou a voltar-se, até que eu pudesse ver o punhal cravado em seu dorso branco. Não gritei, não um desses gritos de voz, mas alguma região dentro de mim estremeceu num terror e numa náusea tão violentos que a dona da galeria voltou-se e me encarou de repente, com um ar pálido.

Que foi, ela disse. Eu disse: é um bonito ovo, não é um ovo como os outros. Ela aproximou-se sorrindo, parou ao lado dele e estendeu um braço por cima de sua casca, tão desenvolta como se nunca em sua vida tivesse feito outra coisa senão apoiar-se em ovos apunhalados. Não é mesmo? disse. Tão liso, tão oval, veja como sua superfície é mansa, veja como minha mão desliza por ela, sinta como ele vibra quando eu o toco, agora veja como ele incha todo e parece aumentar de tamanho, veja como meu corpo se encosta ao dele, veja como minha boca se abre e minha língua freme, ouça esse gemido saindo de minha garganta, toque meus olhos fechados, acompanhe os movimentos de meu corpo contra o dele, observe como minha carne morena se confunde com sua casca branca e como eu enterro as unhas na sua superfície macia, e como eu o atraio para mim e como nos confundimos, até que eu me torne numa coisa entre ovo e mulher, ovomulher, enquanto ele se torna numa coisa entre mulher e ovo, mulherovo, e como rolamos juntos pelo tapete, prove a espuma roxa que escorre da minha boca, não tenha medo: venha, veja, toque, sinta, seja.

Como se atreve, como se atreve? eu gritei, eu gritei então um grito de voz, de garganta, de estômago, de víscera. Mas eles não ouviram. Rolavam pelo tapete verde, sem se importarem com os encontrões que davam nas esculturas. Algumas pessoas se aglomeravam na porta, e foi com dificuldade que consegui abrir caminho entre elas, afastando braços, pernas, sacolas recheadas de tomates maduros que escorregavam pelas bordas, achatando-se contra o chão de cimento. Esbarrei num guarda e parei em frente a um cinema. Fiquei olhando os cartazes sem ver os cartazes, ouvindo sem ouvir uma música que vinha da casa ao lado. Levei o braço até a cabeça para ajeitar uma mecha de cabelo que o guarda havia desarrumado, mas detive o gesto no momento em que percebi a esteira colorida que meu braço ia deixando no ar. Então houve um momento em que os cartazes se tornaram apenas cartazes, a música apenas música, e o meu braço não ia além de um braço parado no ar, em meio a um gesto interrompido.

Por favor, eu disse para ninguém — e comecei a contar para mim mesmo uma história que só eu conhecia. Uma história assim: ao lado da minha casa, moram uns meninos que passam o dia inteiro ouvindo música. A música é quase sempre esta: you may say I’m a dreamer but I’m not the only one imagine there’s no countries nothing to kill or die for all the people living in peace2. É bonita, a música. Os meninos também. Bonitos, eles são bonitos, quero dizer. Claro, nunca falei com eles. Acho mesmo que nunca prestei bem atenção na cara de algum deles, mas eu sei que são muito bonitos. Uma tarde eu coloquei uma cadeira de balanço no pátio de minha casa e fiquei ouvindo essa música. Tinha umas roupas brancas corando no varal, um sol forte batendo bem na minha cara, eu comecei a suar, mas não tinha importância: eu queria ficar ali, no meio das roupas brancas, sentindo o sol quente bater na minha cabeça, balançando a cadeira e ouvindo aquela música. Quando o sol estava se tornando insuportável — porque sempre chega um momento em que até o bom se torna insuportável —, quando chegou esse momento eu olhei para a janela deles e vi uma menina me olhando atrás das grades. Quando ela viu que eu olhava, começou a erguer devagar a blusa, uma blusa curta, cheia de listras coloridas, e me mostrou os seios. Entre os seios recém-nascidos, havia um ovo com um punhal cravado no centro de onde escorria um fio de sangue que descia pelo umbigo da menina, escorregava por cima do fecho da calça e pingava devagar bem no meio da clareira de sol onde eu estava.

— Meu nome é Lúcia — ela disse. — Eu estou no céu com os diamantes.



A minha cabeça gira. Não. A minha cabeça não gira. A minha cabeça cresce e se derrama pela rua e eu fico vendo as pessoas caminharem por entre meus cabelos. No começo elas têm alguma dificuldade, mas sorriem e vão afastando pacientemente os fios, mas os fios aumentam e se tornam cada vez mais espessos, mais intransponíveis. Então as pessoas se enfurecem, apanham foices, tesouras, facas, agulhas, e voltam com ódio saindo pelos olhos, e enquanto eu me deito sobre o asfalto elas vão cortando e furando meus cabelos que não param de crescer sobre a cidade de pessoas enfurecidas.

É difícil chegar até a beira da calçada, fazer sinal para o táxi, ouvi-lo frear, correr, abrir a porta, sentar, dar o endereço ao motorista e pedir que ande depressa porque as pessoas armadas batem contra as vidraças do carro, e eu digo ao motorista que corra, que corra. Então ele corre e eu jogo meu corpo contra o assento, e abaixo a cabeça no momento em que um tomate maduro vem esborrachar-se contra o plástico vermelho. O vermelho do plástico suga o vermelho do tomate: estou sentado sobre tomates esborrachados, mas não quero pensar nisso, é preciso que o motorista não perceba.

Então, para disfarçar, digo ao motorista que me sinto sozinho. Mas ele não ouve, e eu entendo que desse jeito não irei muito longe. Então pergunto a ele sejá leu Goethe, se já leu Werther. Ele pergunta o que, mas faço que não entendo — retiro do bolso uma edição portuguesa de 1916 e digo que ele deveria ler, que ele não sabe o que está perdendo, e abro à toa e leio um trecho assim: Ella não vê, não sente que está preparando um veneno que será mortal para ambos nós. E eu... bebo com avidez, com soffreguidão, a taça fatal que ella me apresenta. O que significa o meigo olhar com que muitas vezes me contempla? Ela se chama Lúcia, esclareço, mora ao lado da minha casa e costuma estar no céu com os diamantes. Mas julgo perceber um brilho assassino nos olhos que me espreitam pelo espelho retrovisor. Fecho o livro, sorrio um sorriso compreensivo, bem-educado, discreto, tolerante — é, eu sou assim quase o tempo todo, compreensivo, bem-educado, discreto, tolerante. Cruzo as pernas e os braços, sei que é preciso tentar novamente, prendo no bolso o tentáculo que insiste em escapar de minha cintura e digo que Cleópatra era apenas uma prostituta, bem como dois e dois são cinco, também como a soma do quadrado dos catetos, o próprio binômio de Newton que, dizem, é mais bonito que a Vênus de Milo, apesar de Angela Davis ter sido a melhor aluna de Marcuse, para ser bem claro, exatamente como aquele umbu no pátio da casa de minha avó e, concluindo, para dizer a verdade, bem, não costumo ser assim o tempo todo...

O carro pára e o motorista me olha: sua cara é um ovo macio, redondo, liso e branco, com um punhal fincado no centro. Sorrio para ele, bato-lhe devagar no ombro, querendo dizer que compreendo, que não tenho preconceitos. Pago e desço e entro em minha casa e corro para o pátio, sento na cadeira de balanço e fico ouvindo a música. Mas não há música. O varal está vazio e não há mais sol. O sol acabou de se pôr. A casa ao lado está vazia. Olho para a janela. A janela tem grades. Olho para trás das grades, onde estava a menina de seios nus. Ela se chama Lúcia e, naquela tarde, estava no céu com os diamantes. Mas não há nada lá. Sobre o muro está sentado um ovo de pernas cruzadas.

Sorrio para ele e digo: olá, Humpty-Dumpty, como vai Alice? Mas ele descruza as pernas e arma o salto. Pressinto que vai cair sobre mim e corro para a cozinha. Atravesso a cozinha, a sala, o corredor, olho por cima dos ombros e vejo que ele não me segue, talvez porque minhas vibrações coloridas tomem toda a passagem atrás de mim. A cozinha, a sala e o corredor estão cheios de eus azuis, vermelhos, amarelos, roxos, eus brilhantes que deslizam e flutuam e se fundem uns com os outros, e depois se desdobram em vários outros eus ainda mais coloridos e mais brilhantes que deslizam e flutuam. Gostaria de ficar olhando para eles, mas lembro do ovo, empurro a porta do banheiro, encosto meu corpo em sua superfície quando ela se fecha sobre mim: agora a câmara se aproximaria em zoom e daria um dose nas minhas narinas ofegantes, meus olhos esgazeados, uma gota de suor escorrendo da testa, depois baixaria até as mãos e ficaria fixa durante algum tempo, as minhas mãos crispadas contra a madeira da porta. Acho tão bonito que quero ver meu rosto espavorido no espelho. Olho meu rosto espavorido no espelho: a gota de suor não é uma gota de suor, é uma gota de sangue. As minhas narinas ofegantes não são narinas ofegantes, são o cabo de bronze de um punhal. E meu rosto espavorido não é um rosto espavorido. É um ovo.

Ele saiu do espelho e veio caminhando em minha direção. Olhei para outro lado, mordi o lábio. Quis brincar com ele, cheguei a sorrir, perguntei se queria ouvir uma história, movimentei meu braço, veja como são bonitos esses outros braços coloridos que ele vai deixando atrás de si, veja como são evanescentes, não é linda essa palavra? e-va-nes-cen-tes, veja como sei fazer caras engraçadas, veja os meus eus coloridos escorregando por baixo da porta, ouça minha voz dizendo todas essas coisas, sinta como ela ressoa cristalina pelos azulejos azuis do banheiro, não é interessante? cristalina crista cristal sua casca também é de cristal cristalina Krishnamurti, veja que relações loucas eu faço, veja como eu vibro, como eu vivo, como eu vejo: veja.



Mas ele não se move. Está parado à minha frente e volta-se devagar para que eu fique cara a cara com o punhal cravado em suas costas. É quando julgo perceber nele uma espécie de súplica: socorra-me, poupe-me, abrevie-me. Agora é um ovo delicado, tenro, humilde, e não tenho medo, e sinto pena dele, quase ternura. Então estendo os meus muitos braços coloridos e toco no cabo de bronze do punhal. A sua casca está manchada pelo fio de sangue coagulado. Hesito um pouco, mas fecho os olhos no mesmo momento em que meus dedos se cerram em torno do punhal. Meus olhos são janelas, minhas pálpebras grades, minhas mãos tentáculos, meus dedos ferro. Uma breve hesitação, depois empurro lento, firme. E sinto uma lâmina penetrando fundo em minhas costas, até o pesado cabo de bronze onde dedos comprimem com força, perdidos entre as espáduas. Lúcia grita, mas é tarde demais. Vejo minha casca clara partir-se inteira em cacos brilhantes que ficam cintilando pelo chão do banheiro. O sangue escorre e eu, agora, também estou no céu com os diamantes.


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1 Magliani

2 Imagine, John Lennon.
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