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Pocket;0] Coleção L&pm pocket, vol. 260 Primeira edição na Coleção L&PM


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II
Ele tinha medo porque não sabia onde se encontrava. Ainda não havíamos falado: eu estava sentado no meio do circo e, deitado sobre a plataforma, envolto em renda vermelha, ele me dizia devagar que estava perdido. Para tranqüilizá-lo, ou para tranqüilizar a mim mesmo, fui dizendo no mesmo ritmo que era talvez um templo dos tempos futuros, onde cada um faria o que bem entendesse.
Ave templo dos escolhidos — ele disse sorrindo. E eu sorri também, um sorriso idiota, como pedindo desculpas por não ter ousado dar o nome que ele dava. Ele sorriu novamente, desta vez como se compreendesse e avisasse que aqueles eram os últimos instantes antes da perdição. Tive medo de compreender, e acrescentei rapidamente que talvez estivéssemos sendo raptados por um disco voador: ele ficou sério. Sem sentir eu penetrava no mesmo e doce pânico. Procurei ver seu corpo, coberto por renda vermelha, naquele momento exato o importante era distinguir seu sexo, a idade, a cor dos cabelos, dos olhos, a conformação da boca, a consistência da pele, os ossos da bacia — naquele momento tentei percebê-lo concreto e absoluto, e se tivesse conseguido sei que a salvação teria começado no mesmo momento em que a perdição se armava, sem se interligarem num único caminho — como mais tarde aconteceu. Mas um grupo de pessoas colocou-se entre nós e eu o perdi de vista. Só depois de muito tempo é que se afastaram e consegui olhar para ele. Mas nada vi. A renda vermelha libertava apenas dois pés assexuados, anônimos, incógnitos, sozinhos. Esperei.

E não mais ouvi seu medo porque depois as luzes apagaram, nasceu uma claridade roxa dos cantos e, enquanto movimentos estremeciam os corpos deitados ao lado dele, suspeitei que o ritual começara: a missa ou a decolagem em direção a Alfa Centauro. A missa celebrando a loucura divina: o sumo sacerdote suspendendo um lindo sonho dourado em suas mãos pálidas. Alfa Centauro — a meta. Apertei as duas mãos contra a poltrona e tentei voltar às folhas amarelecidas de meu álbum. Ah como quis de repente estar outra vez debruçado na janela aberta para os jasmins da ruazinha estreita. Como quis de repente aquela crença antiga e aquele cavalo jovem galopando no meu corpo. Como quis os jasmins enquanto abria as portas para cruzar sete passagens tão amedrontado como se não me julgasse feito e consumado e consumido. Não tinha sequer uma memória quando ele começou a despir suas vestes vermelhas.


III
Não sei se alguém mais percebeu. De qualquer maneira, eu estava tão sozinho dentro daquilo que tudo que percebesse seria somente meu. O detalhe. Não aquelas centenas de pessoas nuas correndo pelas plataformas, nem o som estridente das guitarras elétricas, nem o vermelho das paredes ou o metal das cadeiras, a lona do teto, o todo, o tudo. Separei-o cuidadoso e voluntário dos outros. E vi.

A renda escorregou aos poucos revelando um corpo talvez masculino, o sexo oculto por um pequeno retalho preto. A conformação suave dos ombros, uma fragilidade inesperada no plexo liso equilibrado sobre uma bacia de ossos salientes como facas e pernas fortes nascendo e pés de longos dedos magros e pobres com suas unhas rentes, brancas, limpas. Depois escorregou o capuz e desvendou súbito um emaranhado de cabelos crespos civilizados por gestos bruscos que os afastavam para trás libertando uma testa lisa de enormes olhos claros desenhados e um sorriso de mil anos atrás da estrutura mansa de uma boca feita em dentes brancos e língua terna. Não consegui acompanhar seus movimentos descontrolados, até o momento em que comecei a perceber qualquer coisa como um adolescente habitando aquele corpo. Afundei num espanto pesado. E olhei. Durante muito tempo olhei sem ver o que via, com medo do terrível entrincheirado dentro do adolescente nu. Mas não gritei.

Aos poucos, um todo começou a se formar à sua volta. Aos poucos, ele começou a se tornar o centro daquele todo. Aos poucos, ele se desdobrou em faces e formas para cada um dos que o viam. E não eram muitos. Mas desses escolhidos ele escolheria o que ousasse para assassiná-lo pouco a pouco em dentadas estraçalhantes: o sangue jorraria de todas as veias abertas para regar uma semente plantada por seus gestos luzidios como o fio de uma navalha. Equilibrava-se em sua própria lâmina e morria em cada movimento, explodindo escuro e colorido no meio da plataforma. Aceitei.
IV
Depois de muito tempo, percebi que procurava sempre um ponto de onde pudesse ser visto por mim, e percebi que quando a luz violeta batia em seus olhos claros eles estavam fixos em mim, e quando havia luz sobre minha cabeça ele olhava e sorria e triturava palavras incompreensíveis entre os dentes brancos. E quando tudo se aproximava do fim ele assumiu ainda outras formas, como se me convidasse a escolher a que mais me convinha, sem saber que eu aceitaria qualquer forma e qualquer face, sem saber absolutamente nada de mim. Quando tudo terminava, ele morreu e explodiu mais vezes sobre a plataforma roxa à minha frente. Sem sentir, comecei a aplaudi-lo em pé e a sorrir-lhe como se houvesse um pacto entre nós, e a olhá-lo de maneira tão funda e tão oblíqua quanto a que ele me olhava. E de repente estávamos nós dois sozinhos dentro do circo.

Não houve necessidade de palavras. Avancei entre as cadeiras de metal, vencendo corredores vazios, aos poucos caminhando em direção a ele, que me esperava com sua túnica branca sobre o corpo molhado de suor. Estendi os braços em sua direção e depois de algum tempo as pontas de meus dedos tocaram as pontas de seus dedos e descargas elétricas e fluxos e raios e nervos se interpenetraram enlouquecidos até que minhas mãos conseguissem atingir seus ombros e suas mãos atingissem meus ombros e seu peito ficasse colado ao meu e seus cabelos roçassem com força contra meu rosto e seus olhos de imensas pupilas dilatadas se afastassem depois de um tempo que me pareceu interminável e se unissem à voz rouca para dizer alguma coisa que não consegui entender mas que soou como um aviso um perigo não entre não entre no definitivo mas eu não conseguia entender enquanto seus olhos fixos desprendiam raios e sua voz libertava avisos seculares medos de lugares desconhecidos eu já não conseguia voltar atrás havia rompido com todas as mitologias para penetrar num escasso ou amplo espaço de onde não sabia se sairia vivo ou morto ou renovado sentia ao mesmo tempo no contato das mãos e dos raios todos os jasmins das ruazinhas fechadas e fotografias antigas manhãs e a janela aberta mostrando uma brecha entre as nuvens e o sol lavando o outro lado da baía e as caminhadas e os canteiros e toda a chuva afogando sem distinção os becos e as avenidas da cidade onde habitava desamparado e heróico dentro do meu medo e da minha incompreensão eu não queria mas abrira sem sentir a porta de um poço sem fundo e sem volta.


V
Um tempo depois, contou-me histórias sob este mesmo teto claro, seu corpo dúbio preenchendo a ausência onde agora minha mão esquerda grita. Mostrou-me com dedos longos a pequena mancha escura no centro da testa, e sem que dissesse mais nada eu imediatamente soube que vinha dali a sua força. Mas não tive medo. Aos poucos, eu também conseguiria formar essa pequena mancha para que nos transformássemos em profetas do mesmo apocalipse. Disse-me depois — e nesse dia chovia como agora — que vinha de um mundo paralelo, e traçou com dedos cruzados estranhos signos no espaço que separava sua boca da minha. Falou-me de sua revolta e de seu cérebro e dos cérebros de seus compatriotas: feitos de fios e microtransistores programados e ligados e desligados à vontade de um Poder Central Incógnito. Falou-me de seu corpo humano e de sua mente elaborada pacientemente por cientistas altamente especializados. Falou-me das extensas legiões de robôs em seu mundo árido, e de sua marginalidade: revoltara-se contra o Poder e voluntariamente conseguira desprogramar-se para programar-se outra vez segundo sua própria vontade. Teve alguns companheiros segregados a vales e cavernas insuspeitados naquele mundo de vidro. Pretendiam uma revolta para que todos aos poucos conseguissem condições para desprogramar-se, programando-se segundo suas vontades individuais e segundo um mínimo de exigência do grupo, visando à ordem dentro da desordem absoluta e primitivismo consciente e sobretudo amor de mãos dadas. Todos concordavam. Surgiam novos adeptos. Aos poucos conseguiam programar-se segundo as ordens do Poder apenas nas horas de trabalho, para programarem-se segundo eles próprios nas horas de descanso. Essa dupla vida não os deixava mais desligarem-se, e seus corpos humanos ficaram com as peles marcadas por uma profunda palidez, olheiras esverdeadas surgiam sob os olhos de pupilas imensas, suas mãos tremiam e suas bocas ressecadas libertavam palavras lúcidas e cósmicas: apreendiam o universo e transmitiam-no pelos vales a discípulos espantados e ávidos. As iniciações seguiam um ritual ao mesmo tempo requintado e bárbaro:
curtos-circuitos terríveis carbonizavam os fios, os microtransistores explodiam — e em breve formavam uma seita tão vasta que não mais se preocupavam em programar-se segundo o Poder. Na testa de cada um nasceu uma pequena mancha escura: ampliavam-se dia a dia, reproduzindo-se e imprimindo-se nos demais de tal forma que quase não podiam ser distinguidos uns dos outros. Mesmo assim, eram ainda uma minoria. E foram denunciados, sem que soubessem como nem por quem. O Poder Central Incógnito capturou-os um a um: os que ainda não haviam aderido foram programados para dar caça a qualquer membro da seita. Os insurretos escondiam-se pelos vales e cavernas, mas o mundo de vidro revelava-os em sua transparência e aos poucos iam sendo executados em cadeiras elétricas dispostas no meio da praça principal. Três deles, os líderes, haviam evoluído tanto em sua autoprogramação que conseguiram programar-se de acordo com um mundo paralelo ao seu — o nosso — e transportaram-se para cá, dispondo-se em pontos estratégicos sobre a Terra. Não perdera o contato com os outros dois, mas pouco quis falar sobre eles. Disse apenas que mantinham um constante triálogo para poderem cumprir sua missão: colocavam obscuros e misteriosos avisos em teatros, cinemas, bares, metrôs, farmácias, muros. Esperavam aos poucos reunir uma nova seita que pudesse retornar ao mundo de vidro para destruir o Poder.

Disse-me ainda que o primeiro sinal para os escolhidos seria uma pequena mancha escura nascida no meio da testa, idêntica à sua. E que todos os que conseguissem formar essa marca seriam iniciados e teriam seus cérebros libertados para que pudessem se autoprogramar segundo sua própria mitologia e crença. E que de toda essa legião partiriam profetas para todos os lados e, dentro de um tempo impreciso, os que sobrevivessem e fossem suficientemente fortes para aceitar todas as novas mensagens e proposições — esses teriam uma vida total, e poderiam morrer de amor, se quisessem, ou não morrer.

Calou e sorriu. E calando e sorrindo pouco depois de falar em amor, ganhou uma inesperada doçura: suas palavras deixaram de ser frias, e dispôs sinais estranhos sobre minha fronte, e pela última vez penetramos um no outro através dos dedos e dos raios emitidos pelos dedos e a mesma luz roxa se fez novamente e novamente me senti caminhando em direção à sua túnica branca — mas desta vez meu cérebro estava suficientemente livre para que eu não temesse. E mesmo sabendo que aquele poço não tinha fundo nem volta deixei que suas paredes translúcidas envolvessem meus membros e sua cintilante escuridão repleta de pontos fosforescentes penetrasse e perpetrasse em minha carne e em minha mente a semente plantada daquilo que eu não suspeitava e que cresceria escondida em suas folhas verdes até que uma chuva inesperada e terrível afogasse a cidade em suas águas e fizesse essa semente explodir numa manhã sem sol em que com a mão esquerda eu acariciaria a ausência do que me trouxe para esta fronteira e com a mão direita conduziria um cigarro até meus lábios secos sob um teto de madeiras claras e a semente banhada pela chuva tropical explodisse dentro de mim em galhos verdes e pequenas sementes e ramagens e folhas até que dessa árvore nascesse um fruto miúdo e escuro: um miúdo fruto escuro na parte superior da árvore confirmaria minha escolha e minha desgraça.
VI
Percebi que voltava quando meus dedos contraíram-se em contato com a brasa do cigarro. O verde se desfez aos poucos, abandonando o externo para se avolumar dentro de mim. Os ouvidos se abriram novamente para a chuva cessando sobre os telhados de zinco e os olhos divisaram aos poucos as madeiras muito claras do teto. Desdobrei os olhos pelos cantos do quarto, mas os sinais concretos de sua passagem tinham desaparecido. Pensei em procurá-los, mas imediatamente soube da inutilidade da procura, e percebi que ele havia tomado diversas formas para chegar até mim, das mais cotidianas às mais insólitas.

Saí da janela e, enquanto um sol rompia devagar as nuvens do outro lado da baía, curvei-me para o cheiro limpo da terra molhada, o verde renascido de todas as plantas. Então compreendi todos os avisos e os estranhos acontecimentos e os inexplicáveis encontros e desencontros e o processo de seleção e aquelas pessoas pálidas de pupilas enormes encontradas pelas esquinas antes dele, e ele próprio. Observei o que antes chamara de ausência sobre a cama, e percebi que meu corpo ainda humano sentia na carne a falta das descargas elétricas de seus dedos, mas que em meu cérebro estranhos circuitos geravam suas próprias imagens e sua memória e sua mitologia e que eu dispunha de mim como se fosse meu próprio dono e que se meu corpo ainda humano sofria fomes e ausências esse cérebro guardava todas as coisas não mais como um álbum de retratos mas como partes integrantes e integradas de mim mesmo. Não sentia mais sua ausência porque eu também era ausência. Não me sentia sozinho nem desorientado porque sabia que se não era ao mesmo tempo todas as outras pessoas e todas as coisas havia pelo menos alguns que haviam sido também escolhidos e que nos encontraríamos e que talvez já nos tivéssemos encontrado e que nosso caminho a princípio escuro era o mesmo. Soube para sempre que ele não voltaria. E que não tinha me abandonado.

Na frente do espelho, toquei meu tronco nodoso e forte e estendi meus galhos em direção às janelas e a chuva cessou e o sol acabou de romper as nuvens espalhado nítido em raios sobre o verde intenso de meu corpo. Então qualquer coisa como dedos delicados tocou suave e firmemente um pequeno fruto escuro recém-nascido no centro de minha testa. A marca.
Cavalo branco no escuro
Lá fora alguém caminha no escuro. Posso ouvir nitidamente seus passos esmagando devagar o cascalho fino do jardim. Como se tomasse cuidado para não me acordar. Como se eu dormisse. Às vezes se detém, ejulgo ouvir sua respiração espessa de animal atravessando as vidraças abaixadas para chocar-se contra as paredes, e depois tombar sobre mim sufocando minha própria respiração. É então que sinto medo. Deixo de sentir o contato gorduroso dos lençóis contra minha pele, e fico todo concentrado nessa coisa: o medo. Não dele, nem de seus passos, nem de que possa de repente espatifar as vidraças para entrar no quarto — também não tenho medo de sua possível violência, de suas prováveis garras. O que me assusta é justamente essa respiração de animal. Essa coisa grossa, azeda, estranhamente flácida e morna, da mesma consistência dos lençóis sujos.

Para evitar esse medo que sufoca o cheiro dos lençóis e de meu próprio corpo, penso no jardim. E quando, por segundos, o cascalho pára de estalar sob seus pés, penso que é porque se aproximou do canteiro de margaridas. E recomponho na memória essas margaridas amontoadas no canteiro de tijolos, com seus talos verdes e rígidos, suas longas pétalas brancas e o miolo amarelo, granuloso, sem nenhum cheiro. Quando o medo é maior, penso nas hortênsias. Eram azuis, as hortênsias. Ficavam distantes da janela, próximas do poço e da parreira, quase no quintal. Eram azuis e sólidas, as hortênsias. Também não tinham cheiro, como as margaridas, nem gosto. Uma vez experimentei mastigar algumas pétalas, e tive a sensação exata de ter entre os dentes algo tão fino e frágil como uma asa de borboleta. Eram azuis e sólidas, e às vezes eu cobria os cabelos com elas, prendendo-as atrás das orelhas para depois olhar-me no espelho grande do corredor e achar-me parecido com uma daquelas gravuras japonesas do livro de História de minha mãe — as gueixas, as hortênsias. Essas eram elas.

Quando o medo é quase absurdo, e principalmente quando o cheiro daquela respiração ameaça tornar-se insuportável, recorro aos jasmins. Só então recorro aos jasmins. Deixo-os por último, quando estou à beira de dar um grito ou fazer algum movimento brusco para libertar-me — mesmo sabendo que estou demasiado enfraquecido para dar gritos ou fazer gestos bruscos. Talvez a impossibilidade de fazer essas coisas é que me obrigue a recorrer aos jasmins. Porque eu sempre soube que eles eram o último recurso, última porta, última chave. Eles, os jasmins: última varanda antes da fronteira que me separa do que não conheço. Vejo-os crescer nas sombras para se abrirem em corolas fartas e pálidas: eu me debruço na janela, eu sou muito jovem, eu acredito, eu sou quase um menino que se debruça na janela e olha para esses jasmins pálidos e frios e entontece aos poucos com o perfume doce e olha para a lua, porque havia uma lua quase sempre cheia naquele tempo, e pergunta em espanto o que vai ser dele, que durezas ou doçuras lhe trará essa coisa que ainda não tocou com suas próprias mãos e que chamam de vida, eles, os outros, os que dormem além da porta sem saberem desse menino e desse espanto e dessa lua e sobretudo desses jasmins gelados no jardim. Esse quase menino que sou eu, esse menino suspeita e sente que quase pode viajar na esteira do perfume dos jasmins que voa por cima do muro de tijolos, ultrapassa a sarjeta para misturar-se à terra vermelha da rua e perder-se nas unhas-de-gato do terreno ao lado e no valo da calçada oposta e na casa branca de madeira sobre a elevação de terra — esse menino não chora e não diz nada. Tem olhos enormes para o que ainda não chegou e talvez não chegue nunca.

Tudo isso é doloroso para mim, porque sei que o jardim não é esse, sei mesmo que talvez nem exista um jardim, sei que os jasmins se perderam, e recorro à casa, e penetro cada um de seus aposentos, e desvendo a casa, e recorro à rua, ao arco branco no fim da rua, e à cidade de ruazinhas estreitas e tortas e vizinhos na janela e estradas de terra batida e poeirenta. Mas sei: sempre sei que tudo isso não está mais do lado de fora: sei que já não bastaria abrir a janela: sei que não bastaria a janela. Como se minhas unhas crescessem e eu as cravasse no meu próprio peito. Digo para mim mesmo que não é preciso assassinar o que já está morto, mas enquanto dura a respiração dele, preciso continuar enterrando as unhas devagar na carne, afastando músculos e veias e ossos, como se escavasse a terra em busca de uma semente. Preciso revirar o punhal com dedos seguros, até conseguir extrair algumas gotas de sangue da carne morta. Não consigo. Sei que não consigo no momento em que a respiração cessa e os passos voltam a esmagar o cascalho.

De vez em quando um movimento mais brusco faz com que brote um ruído de folhagens esmagadas. Imagino-o pisando nas margaridas, rasgando as hortênsias, esmagando os jasmins entre os dentes escuros, nas mãos de dedos curtos e juntas grossas, sob as patas de cascos partidos, o corpo áspero de pêlos espojando-se sobre os verdes que minha mãe esquecia de regar e que cresciam apenas por teimosia. A teimosia e a chuva enredando seus membros sobre o muro, sob a terra. Sei que o sangue já não corre: sei que nenhuma semente veio à tona: sei que de nada adianta espreitar dia após dia o seu crescimento, porque não crescerão: sei que é inútil afastar as pedras e os parasitas, tentando distinguir uma pequenina folha verde. Sei que as chuvas não caem mais como antigamente. Então me encolho entre os lençóis e fico ouvindo o cascalho rangendo sob seus pés.

Quando o ruído cessa e penso que ele se afastou por alguns momentos, fixo os olhos no teto ou na parede e tento distinguir apenas cores e formas. Mas não sei mais se o que vejo é o que vejo ou apenas o que penso ver. Dizem que quando se fica muito tempo sem comer acontecem alucinações, da mesma forma como quando se toma drogas. Não sei se são alucinações causadas pela fome, e já não tomo nenhuma droga desde que resolvi deixar que tudo secasse para que viesse à tona apenas o que quisesse vir, sem que eu o chamasse. Seja como for, eu o via. Não esse, o que caminha no escuro, porque não sei de seu corpo nem de sua face, mas um outro, talvez o mesmo, não sei.

Ele estava na parede. A parede é azul. No começo, foi só o que vi: a parede azul. Depois notei que o azul se movia e aquilo que eu julgava fazer parte da matéria da parede destacava-se e ganhava a forma de um corpo, um corpo vestido de azul. Esse corpo vestido de azul destacou-se da parede e veio sentar-se a meu lado, na beira da cama. Foi quando colocou uma das mãos na minha testa que tive vontade de sorrir para ele. Fazia muito tempo que eu não tinha vontade de sorrir para nada nem para ninguém, então era extraordinário que ele conseguisse perturbar assim os cantos de meus lábios, fazendo com que eles se movimentassem duramente, numa tentativa de se abrirem. Mas não sorri. Sabia de meus dentes sujos, sabia da escuridão de minha boca. E não queria assustá-lo, sobretudo isso: não queria assustá-lo porque poderia retirar a mão de minha testa e levantar-se daquele lugar. Há muito tempo ninguém me tocava. Acho que ele sentiu o meu sorriso preso e a minha confusão, porque perguntou devagar alguma coisa, exatamente como se tentasse quebrar um momento de embaraço. Não sei que coisa foi, também não sei o que respondi. Sei que depois de ouvir minha resposta, afastou-se abanando a cabeça e dizendo que não era possível, que não ia dar certo, que ele sabia que não tinha jeito. Abriu os braços e voltou a confundir-se com a parede.

Foi depois disso que começou essa coisa dos passos, a respiração, o medo, as margaridas, as hortênsias, os jasmins. Ou antes, não lembro. Você é bonito, quis dizer a ele. Mas não foi possível. Foi tudo demasiado rápido. Agora já é muito tarde e eu simplesmente me recuso. Quando resolvi fugir daquelas coisas torpes lá de fora não pensei que fosse tão fácil: na verdade foi tudo muito natural, como se um dia isso tivesse mesmo que acontecer, e exatamente dessa forma. Não precisei fazer esforço algum. Só deitar e esperar. A princípio ainda classificava lembranças e memórias, tinha consciência de um antes, um durante, um depois, de um real e um irreal, um tangível e um intangível, um humano e um divino: separava minha memória e meus conhecimentos em partes cuidadosamente distintas. Depois que ele começou a rondar minha janela, ou antes, não sei, tudo se confundiu num só bloco, e fiquei assim: esta massa compacta toda à superfície de si mesma. Não lembro de ninguém assim tão à flor de si mesmo: raiz, caule, folhas e frutos. Talvez seja bonita uma coisa assim, uma pessoa assim. Ou horrível, não sei. Talvez eu esteja sendo gerado, também não sei. Sei que falta pouco. Eu queria que não fosse assim, que não tivesse sido assim. Mas não consegui evitar. A semente recusava-se a vir à tona, eu nem sempre tinha tempo ou vontade de regá-la, e não chovia mais — foi isso o que aconteceu.

Pressinto que vai ser agora. Tenho mesmo certeza de que vai ser agora. Os passos se aproximam. Faço um grande esforço e consigo aprumar um pouco meu corpo sobre a cama. O cascalho estala. Distendo meus braços e pernas, e nesse movimento há como uma dor brotando de um fundo muito escondido. A janela começa a ceder. Fixo a atenção na minha própria cabeça, até deixá-la ereta. Ouço o barulho dos vidros caindo sobre o chão. Todos esses movimentos fazem com que um cheiro desagradável de coisa apodrecida se desprenda dos lençóis e de meu corpo e quando sinto as garras tocando-me devagar nos dedos dos pés já não sei distinguir se esse cheiro que violenta minhas narinas vem dos lençóis ou de meu corpo ou de sua respiração ofegante pesada viscosa grossa repulsiva e morna subindo por minhas pernas até atingir meus joelhos misturada a uma baba viscosa e não sinto nojo apenas uma vaga curiosidade e pergunto a mim mesmo se tudo isso pertencerá mesmo a um animal ou a um homem ou a qualquer outra coisa e passa-me pela cabeça um rápido pensamento assim: não será a trepadeira que caía da janela? e digo que não e digo que sim e é quando sinto uma coisa escura como uma boca abater-se sobre meu sexo que começo a pensar nas margaridas e digo assim agora que a tua linha paralela à minha vai ficar ainda mais distante não vou ter ninguém mais pra me dar uma margarida de repente pra não dizer nada pra me encontrar no fim da rua1 mas tudo isso está morto então volto às hortênsias e vejo as encostas cobertas de borboletas azuis amarelas cor-de-rosa no meio do trigo da serra no sul e quase esqueço de meus dentes sujos para mostrá-los num sorriso mas esse visgo mas essa gosma essa náusea avança por meu peito até quase minha boca e olho para os jasmins abertos sob um céu de lua cheia e vejo um menino espantado numa janela aberta um menino nu e espantado da parede azul ele me sorri e estende os braços como se me esperasse você é tão bonito eu tenho vontade de dizer esse perfume me entontece e sinto que vomito e que sua língua preta suga a matéria espessa de meu vômito mas é muito tarde ouço o galope de um cavalo que pressinto branco varando o escuro em busca da madrugada e vibro inteiro como se tivesse sangue como se a semente brotasse você é tão bonito tenho vontade de dizer mas há um poço tapando a minha boca e então toco o rendilhado de um vôo em direção à casa oposta em direção ao arco branco no fim da rua e não digo nada eu não digo nada eu só quero olhar de olhos abertos para esse azul engastado na parede e pensar como você é bonito mas duas garras atingem meus olhos e enquanto grito de dor e de prazer as minhas órbitas perfuradas libertam estrelas marinhas e medusas e sereias e algas verdes que oscilam lentamente empurradas pelas ondas para a areia branca onde um dia meus pés deixaram lagos tão breves que não houve tempo da lua refletir-se neles.

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