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Pocket;0] Coleção L&pm pocket, vol. 260 Primeira edição na Coleção L&PM


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— antes que tentes aviso já te disse tudo não sou nada além de meu nome meu nome é minha essência mais profunda assim como a tua talvez seja a que vivas no momento talvez nada sejas além destas paredes descascadas destes móveis poucos esta bacia de louça naquele canto mas não te julgo pelo que vejo em ti externamente não julgo a ninguém nem a mim mesmo vim duma coisa que ainda não conheces vim duma coisa enorme da es curidão e de luz mais absolutas que possas imaginar a um só tempo vim duma coisa sem medo mas não sabes que trago em mim o princípio e o fim de todas as coisas sabes por ventura que te farei meu cúmplice e despertarei teu ódio esse ódio calado que consome as vísceras por que de todos és o único que sabes da absoluta inutilida de de todas as coisas e sa bes dessa vontade incon tida de ser maior que todas essas coisas sabes dessa vontade amarga no peito de cada um e esquecida duran te a trivialidade sabes de tudo isso e por saberes é que te escolhi te digo que o acaso não existe e que aconteci no momento exato em que não suportavas mais embora não soubesses da tua exaustão é preciso que as coisas se intercalem exatamente como está sen do feito esses momentos de luz aparentemente banais é preciso essa linearidade para que subterraneamente escorra um fluxo intenso e te digo que subitamente os homens enlouquecerão e perpetrarão o que ja mais seriam capazes de perpetrar te digo dessa loucura tão próxima te digo da proximidade de tua própria destruição e sei que não temes porque eu não te escolheria se não soubesse embora saiba que temerás no momento exato e que mais tarde julgarás que foste fraco mas eu te digo ainda que todas as coisas estão sendo feitas e que não podes fugir delas porque a partir do momento em que alguém é escolhido faz-se necessário assumir essa escolha os temores não serão infundados nem mesmo esses obscuros pressentimen tos que te assaltam é preciso que alguém faça penditar a ordem das coisas por que essa ordem permane cena inabalável se não houvesse a minha chegada pois quem provou do ódio desejará provar coisas cada vez mais intensas e o mais intenso que o ódio só pode ser essa região sombria à qual os homens deram um nome mas esses de nada sabem mesmo tu de nada sabes eu vim dessa região para semear a fome e a discórdia e não preciso te convencer de nada quero apenas que te deixes conduzir toma a minha mão e vê como ela é leve toma da minha mão e pensa nos lugares para onde te levarei nesta noite de quase dezembro e agora prepara-te para o grande mergulho no desconhecido:

VI
Por volta das duas da tarde uma aglomeração se fez no meio da praça. Era o sétimo dia. Rumores diluídos de vozes humanas misturadas ao barulho do vento norte que varria a vila há vários dias, levando para longe o cheiro dos animais apodrecidos, latas velhas chocavam-se contra paredes, árvores libertavam folhas que ficavam soltas no ar, frutos caíam pesados no chão, janelas batiam com força espatifando vidros. A princípio não chegou a compreender o que se passava: parecia impossível que alguém ou alguma coisa voluntariamente quebrasse o silêncio estabelecido tácito e imutável, perdurando sempre do meio-dia às quatro da tarde. Com esforço, afastou da testa os cabelos empastados de suor e aproximou-se da janela.

Então distinguiu os homens amontoados sob a estátua do general, em torno do padre, cuja batina esvoaçava estranhamente leve com o vento. Tão logo sua presença foi notada, um brusco silêncio se armou: voltaram-se todos para observá-lo, os pescadores com os chapéus nas mãos, as mulheres com os filhos dependurados na cintura, mesmo os cães cessaram os movimentos e, atentos ao que se preparava, olhavam-no imóveis. Sentiu medo. Aquilo que se desenrolava há tempos, tão de leve que não conseguira ainda nomeá-lo, de repente se concretizou, estampado em sua fisionomia. Não o recusou: descobria no mesmo instante que o medo era matéria de sobrevivência, como o eram todas as coisas, mesmo as esperas frustradas e as inúmeras sedes e os espantos e pequenas descobertas que em si nada significam mas que juntas formavam lentamente camadas superpostas e densas demais, sim, as densidades insuspeitadas e as estrelas cadentes e a queda de estrelas e a cadência dos passos todas as manhãs a aspirar a maresia e atravessar a praça e muitas coisas e todas as coisas — e finalmente o estar ali parado na janela olhando fixamente a massa que exigia, não permitindo que alguém se individualizasse ou protegesse um mistério qualquer — pois que era fundamental para a sobrevivência de todos que as vidas fossem identicamente claras — tão claras que o sol pudesse vará-las como varava as janelas constantemente abertas — finalmente comprimir os dedos contra o parapeito empoeirado da janela, enfrentando o que ele próprio construíra, as costas molhadas de suor, os olhos ofuscados pela luz intensa, os pés descalços sobre a madeira — cara a cara com o seu invento.

Mas não é verdade que nunca tivesses suspeitado desta tarde e desta fome: não é verdade que por um momento sequer tivesses tentado fugir à tua trágica determinação: não é verdade que alguma vez tivesses sequer pensado numa possibilidade de salvação: sabias desde o começo da consistência ácida do que tecias, e no entanto persistias nela, como quem penetra num beco sem saída, caminhando pela estreita dimensão que sabias desde sempre intransponível: sim, tu sabias deste momento a construir-se desde o começo, e não fizeste nenhuma tentativa de evitá-lo: agora é necessário que enfrentes: embora talvez não soubesses do depois deste momento que se faz agora e portanto não possas estar preparado para o próximo momento: mas deste sabes: tudo se encaminhou para ele, e já não podes fazer mais nada, a não ser enfrentá-lo: tens ainda no peito a chama que te consumia nessas noites paradas de verão: tens ainda o que convencionaste chamar força: tens ainda todas as partículas de tua determinação: tens ainda a tua integridade, embora saibas que ela pode te destruir: pois então toma dessa fibra que a si mesma se construiu em solidão sob teu olhar espantado e impassível: toma dessa fibra feita de algo tão denso quanto o ódio: tomado teu ódio: e agora enfrenta.

Suspirou exausto. Conservou as duas mãos crispadas no parapeito da janela, enquanto o padre se aproximava: sentiu o contato da outra mão em seu ombro, como a ampará-lo. E disse:

– Volta para dentro. Espera. Eles não podem te ver.

Fora do círculo formado pelos pescadores, destacava-se o padre, avançando. Ouviu:

– Queremos que o senhor desça.

E já não era um pedido, já não eram mais aquelas tímidas aproximações cheias de justificativas, não era sequer um convite, nem mesmo uma ordem — mas um fato irreversível.

– Não tenho nada a dizer.

– Não queremos que o senhor diga alguma coisa. Queremos ver o desconhecido. O senhor não nos pode explicar. Queremos que ele nos diga por que depois de sua chegada os pescadores não trouxeram mais peixes, por que o leite coalhou todas as manhãs, por que morreram as crianças nos ventres das mulheres prenhes, por que todas as donzelas perderam a pureza, por que sopra esse vento desde a sua chegada, por que não caíram mais estrelas, por que todas as plantações secaram e os animais morrem de sede pelas ruas, por que esta sede. Esse homem traz a destruição e o demônio dentro de si. O senhor protege esse homem. O senhor é cúmplice da destruição. Um hálito de morte percorre a vila. E o senhor é o culpado disso. Por que não o deixou morrer? Por que não nos deixa ver a face dele? Por que ele não sai às ruas se já está recuperado? Por que o senhor deixou de visitar seus doentes? Por que o senhor está encaminhando estes homens pacíficos para a violência? Queremos saber dos estranhos poderes desse desconhecido.

– Não sei do que o senhor fala. Todas as coisas são as mesmas há muito tempo.
Um murmúrio cresceu na praça. O padre tornou a falar:

– Não queremos usar a força. É melhor que o senhor desça.

Voltou-se para dentro, escrutou-o detidamente, mas sem conseguir perceber nenhum sinal.

– Não tenha medo — disse. – Eu te protegerei.

– Não tenho medo. E não preciso de tua proteção.

– O que há em ti que não compreendo?

– O que há em mim e não compreendes é o mesmo que há em ti, e tampouco compreendes.

Sorriu. Os dentes muito claros. Os olhos azuis. Punhalada de luz.

– Eles são capazes de tudo.

– Eu sei. Também eu sou capaz de tudo.

– Preciso descer. Não quero que morras.

– Também eu não quero que morras. Mas morreremos.

O médico encaminhou-se para a porta. Os ombros curvos. Hesitava entre sair e permanecer no quarto. Então voltou-se e disse:

– Foge pelos fundos enquanto falo com eles — e acrescentou apressadamente, como se precisasse dar forma a uma idéia inesperada antes que ela se desfizesse: – Sim, foge pelos fundos e me espera na praia, no mesmo lugar onde te encontrei, mais tarde irei encontrar contigo, então...

– Então fugiremos?

– Sim, sim. Fugiremos.

– Mas não vês que é impossível?

– Não, não é impossível. Fugiremos para qualquer lugar, não importa onde, não importa qual.

– Havias falado que daqui ninguém foge.

– Não tem importância, não sei mais. Agora vai. Preciso descer.

Desceram juntos a escada, no final separaram-se. O médico abriu a porta e encarou o padre.

– Podem subir — disse. – Ele foi embora. Não há ninguém lá em cima.

Os pescadores entreolharam-se surpresos, subitamente desarmados. Pareceram não saber para onde ir ou o que fazer, até que o padre fez um sinal com a cabeça, encaminhando-se para a porta aberta. O médico recuou, esperando que todos entrassem. De baixo, viu-os subirem rapidamente as escadas, os pés empoeirados marcando os degraus. Depois ouviu o barulho da porta aberta com violência, exclamações de espanto, rumor de móveis despedaçados, gritos. De repente um silêncio e a voz da mulher sobrepujando ruídos, nítida:

– Não é verdade. Ele enganou vocês. O homem está na praia.

Permaneceu estático por um momento, o vento batendo nos cabelos, os olhos voltados para cima. Depois saiu correndo em direção ao mar.
VII
Do alto das dunas, viu-o no mesmo lugar onde o encontrara pela primeira vez. Os cabelos esvoaçavam ao vento: parecia um menino assim, de longe, um menino qualquer construindo castelos na areia. Correu para ele, os braços abertos, seu corpo oscilava precário, para depois enristar-se feito uma seta, as agulhas finas penetrando as têmporas — seu corpo inteiro: uma agulha fina em direção à pequena mancha. Os pés afundavam e queimavam na areia.

– Eles nos descobriram — gritou.

O desconhecido abanou a cabeça. E novamente o médico pensou em que estranhas marcas, sem serem propriamente marcas, pois não deixavam traços, havia naquele rosto queimado e ainda em preparo, na introdução de alguma coisa que não viria a ser.

– É muito tarde.

– Não. Ainda é tempo. Podemos fugir.

Tentou tomar da mão dele, mas o outro se esquivou num movimento perfeitamente definido, embora suave. Ficaram a encarar-se durante um tempo que o médico julgou longo demais, incompreensível demais — como tudo. Não conseguiu compreender exatamente o que se passava: sabia apenas que precisavam fugir. Embora desde o começo tudo estivesse previsto, não conseguira perceber essa obstinada negação que se faria. Insistiu ainda. E outra vez. Até que ouviu vozes sobre as dunas. Não precisou voltar-se para saber que eram os pescadores: o padre, a mulher e o menino à frente, conduzindo a massa que descia rápida, armada de paus e pedras. Gritavam.

– Não quero ir sozinho — disse. – Vem comigo.

– Mas não irás sozinho, embora eu não vá contigo.

Sem saber exatamente o que fazia, começou a correr pela praia, sem saber também para onde. O sol cegava-o. Pequenos vermes se movimentavam na areia úmida, esmagada sob seus pés. Correu durante muito tempo, depois deixou-se cair exausto sobre os próprios joelhos. Então voltou-se e viu-o, no meio da multidão enfurecida, os braços baixavam e abatiam-se sobre sua cabeça repetidas vezes. Podia ver o sangue escorrendo, misturando seu vermelho com a brancura da areia. Mas não havia gritos. Tudo estava muito quieto.

Esperou que todos se afastassem e voltou. Escurecia aos poucos. Quando alcançou o corpo, uma chuva fina começou a cair. O vento tinha cessado. A chuva pouco a pouco adensada: tomou entre as mãos a cabeça destroçada e ficou olhando durante muito tempo para dois olhos azuis escancarados. O sangue ainda escorria. Quente. Quando a noite baixou, arrumou cuidadoso o cadáver lavou as manchas de sangue do rosto, depois foi entrando lentamente no mar. Antes de mergulhar olhou para cima e, embora chovesse, inúmeras estrelas cadentes riscavam o céu de ponta a ponta.




Para uma avenca partindo
— Olha, antes do ônibus partir eu tenho uma porção de coisas pra te dizer, dessas coisas assim que não se dizem costumeiramente, sabe, dessas coisas tão difíceis de serem ditas que geralmente ficam caladas, porque nunca se sabe nem como serão ditas nem como serão ouvidas, compreende? olha, falta muito pouco tempo, e se eu não te disser agora talvez não diga nunca mais, porque tanto eu como você sentiremos uma falta enorme de todas essas coisas, e se elas não chegarem a ser ditas nem eu nem você nos sentiremos satisfeitos com tudo que existimos, porque elas não foram existidas completamente, entende, porque as vivemos apenas naquela dimensão em que é permitido viver, não, não é isso que eu quero dizer, não existe uma dimensão permitida e uma outra proibida, indevassável, não me entenda mal, mas é que a gente tem tanto medo de penetrar naquilo que não sabe se terá coragem de viver, no mais fundo, eu quero dizer, é isso mesmo, você está acompanhando o meu raciocínio? falava do mais fundo, desse que existe em você, em mim, em todos esses outros com suas malas, suas bolsas, suas maçãs, não, não sei por que todo mundo compra maçãs antes de viajar, nunca tinha pensando nisso, por favor, não me interrompa, realmente não sei, existe coisas que a gente ainda não pensou, que a gente talvez nunca pense, eu, por exemplo, nunca pensei que houvesse alguma coisa a dizer além de tudo o que já foi dito, ou melhor, pensei sim, não, pensar propriamente não, mas eu sabia, é verdade que eu sabia, que havia uma outra coisa atrás e além de nossas mãos dadas, dos nossos corpos nus, eu dentro de você, e mesmo atrás dos silêncios, aqueles silêncios saciados, quando a gente descobria alguma coisa pequena para observar, um fio de luz coado pela janela, um latido de cão no meio da noite, você sabe que eu não falaria dessas coisas se não tivesse a certeza de que você sentia o mesmo que eu a respeito dos fios de luz, dos latidos de cães, é, eu não falaria, uma vez eu disse que a nossa diferença fundamental é que você era capaz apenas de viver as superfícies, enquanto eu era capaz de ir ao mais fundo, de não sentir medo desse mais fundo, você riu porque eu dizia que não era cantando desvairadamente até ficar rouca que você ia conseguir saber alguma coisa a respeito de si própria, mas sabe, você tinha razão em rir daquele jeito porque eu também não tinha me dado conta de que enquanto ia dizendo aquelas coisas eu também cantava desvairadamente até ficar rouco, o que quero dizer é que nós dois cantamos desvairadamente até agora sem nos darmos contas, é por isso que estou tão rouco assim, não, não é dessa coisa da garganta que falo, é de uma outra, de dentro, entende? por favor, não ria dessa maneira nem fique consultando o relógio o tempo todo, não é preciso, deixa eu te dizer antes que o ônibus parta que você cresceu em mim dum jeito completamente insuspeitado, assim como se você fosse apenas uma semente e eu plantasse você esperando ver nascer uma plantinha qualquer, pequena, rala, uma avenca, talvez samambaia, no máximo uma roseira, é, não estou sendo agressivo não, esperava de você apenas coisas assim, avenca, samambaia, roseira, mas nunca, em nenhum momento essa coisa enorme que me obrigou a abrir todas as janelas, e depois as portas, e pouco a pouco derrubar todas as paredes e arrancar o telhado para que você crescesse livremente, você não cresceria se eu a mantivesse presa num pequeno vaso, eu compreendi a tempo que você precisava de muito espaço, claro, claro que eu compro uma revista pra você, eu sei, é bom ler durante a viagem, embora eu prefira ficar olhando pela janela e pensando coisas, estas mesmas coisas que estou tentando dizer a você sem conseguir, por favor, me ajuda, senão vai ser muito tarde, daqui a pouco não vai ser mais possível, e se eu não disser tudo não poderei nem dizer nem fazer mais nada, é preciso que a gente tente de todas as maneiras, é o que estou fazendo, sim, esta é minha última tentativa, olha, é bom você pegar sua passagem, porque você sempre perde tudo nessa sua bolsa, não sei como é que você consegue, é bom você ficar com ela na mão para evitar qualquer atraso, sim, é bom evitar os atrasos, mas agora escuta: eu queria te dizer uma porção de coisas, de uma porção de noites, ou tardes, ou manhãs, não importa a cor, é, a cor, o tempo é só uma questão de cor, não é? pois isso não importa, eu queria era te dizer dessas vezes em que eu te deixava e depois saía sozinho, pensando numa porção de coisas que queria te dizer depois, pensando também nas coisas que eu não ia te dizer, porque existem coisas terríveis que precisam ser ditas, não faça essa cara de espanto, elas são realmente terríveis, eu me perguntava se você era capaz de ouvir, se você teria, não sei, disponibilidade suficiente para ouvir, sim, era preciso estar disponível para ouvi-las, disponível em relação a quê? não sei, não me interrompa agora que estou quase conseguindo, disponível só, não é uma palavra bonita? sabe, eu me perguntava até que ponto você era aquilo que eu via em você ou apenas aquilo que eu queria ver em você, eu queria saber até que ponto você não era apenas uma projeção daquilo que eu sentia, e se era assim, até quando eu conseguiria ver em você todas essas coisas que me fascinavam e que no fundo, sempre no fundo, talvez nem fossem suas, mas minhas, e pensava que amar era só conseguir ver, e desamar era não mais conseguir ver, entende? dolorido-colorido, estou repetindo devagar para que você possa compreender, melhor, claro que dou um cigarro pra você, não, ainda não, faltam uns cinco minutos, eu sei que não devia fumar tanto, é, eu sei que os meus dentes estão ficando escuros, e essa tosse intolerável, você acha mesmo a minha tosse intolerável? eu estava dizendo, o que é mesmo que eu estava dizendo? ah:
sabe, entre duas pessoas essas coisas sempre devem ser ditas, o fato de você achar minha tosse intolerável, por exemplo, eu poderia me aprofundar nisso e concluir que você não gosta de mim o suficiente, porque se você gostasse, gostaria também da minha tosse, dos meus dentes escuros, mas não aprofundando não concluo nada, fico só querendo te dizer de como eu te esperava quando a gente marcava qualquer coisa, de como eu olhava o relógio e andava de lá pra cá sem pensar definidamente em nada, mas não, não é isso, eu ainda queria chegar mais perto daquilo que está lá no centro e que um dia destes eu descobri existindo, porque eu nem supunha que existisse, acho que foi o fato de você partir que me fez descobrir tantas coisas, espera um pouco, eu vou te dizer de todas essas coisas, é por isso que estou falando, fecha a revista, por favor, olha, se você não prestar muita atenção você não vai conseguir entender nada, sei, sei, eu também gosto muito do Peter Fonda, mas isso agora não tem nenhuma importância, é fundamental que você escute todas as palavras, todas, e não fique tentando descobrir sentidos ocultos por trás do que estou dizendo, sim, eu reconheço que muitas vezes falei por metáforas, e que é chatíssimo falar por metáforas, pelo menos para quem ouve, e depois, você sabe, eu sempre tive essa preocupação idiota de dizer apenas coisas que não ferissem, está bem, eu espero aqui do lado da janela, é melhor mesmo você subir, continuamos conversando enquanto o ônibus não sai, espera, as maçãs ficam comigo, é muito importante, vou dizer tudo numa só frase, você vai.................................. ............................................................................................................................................................................................................................................................ sim, sei, eu vou escrever, não, eu não vou escrever, mas é bom você botar um casaco, está esfriando tanto, depois, na estrada, olha, antes do ônibus partir eu quero te dizer uma porção de coisas, será que vai dar tempo? escuta, não fecha a janela, está tudo definido aqui dentro, é só uma coisa, espera um pouco mais, depois você arruma as malas e as bolsas, fica tranqüila, esse velho não vai incomodar você, olha, eu ainda não disse tudo, e a culpa é única e exclusivamente sua, por que você fica sempre me interrompendo e me fazendo suspeitar que você não passa mesmo duma simples avenca? eu preciso de muito silêncio e de muita concentração para dizer todas as coisas que eu tinha pra te dizer, olha, antes de você ir embora eu quero te dizer quê.

Iniciação
I
Para
Paulo César Paranó

Foi numa dessas manhãs sem sol que percebi o quanto já estava dentro do que não suspeitava. E a tal ponto que tive a certeza súbita que não conseguiria mais sair. Não sabia até que ponto isso seria bom ou mau — mas de qualquer forma não conseguia definir o que se fez quando comecei a perceber as lembranças espatifadas pelo quarto. Não que houvesse fotografias ou qualquer coisa de muito concreto — certamente havia o concreto em algumas roupas, uma escova de dentes, alguns discos, um livro: as miudezas se amontoavam pelos cantos. Mas o que marcava e pesava mais era o intangível.

Lembro que naquela manhã abri os olhos de repente para um teto claro e minha mão tocou um espaço vazio a meu lado sobre a cama, e não encontrando procurou um cigarro no maço sobre a mesa e virou o despertador de frente para a parede e depois buscou um fósforo e uma chama e fumei fumei fumei: os olhos fixos naquele teto claro. Chovia e os jornais alardeavam enchentes. Os carros eram carregados pelas águas, os ônibus caíam das pontes e nas praias o mar explodia alto respingando pessoas amedrontadas. A minha mão direita conduzia espaçadamente um cigarro até minha boca: minha boca sugava uma fumaça áspera para dentro dos pulmões escurecidos: meus pulmões escurecidos lançavam pela boca e pelas narinas um fio de fumaça em direção ao teto claro onde meus olhos permaneciam fixos. E minha mão esquerda tocava uma ausência sobre a cama.

Tudo isso me perturbava porque eu pensara até então que, de certa forma, toda minha evolução conduzira lentamente a uma espécie de não-precisar-de-ninguém. Até então aceitara todas as ausências e dizia muitas vezes para os outros que me sentia um pouco como um álbum de retratos. Carregava centenas de fotografias amarelecidas em páginas que folheava detidamente durante a insônia e dentro dos ônibus olhando pelas janelas e nos elevadores de edifícios altos e em todos os lugares onde de repente ficava sozinho comigo mesmo. Virava as páginas lentamente, há muito tempo antes, e não me surpreendia nem me atemorizava pensar que muito tempo depois estaria da mesma forma de mãos dadas com um outro eu amortecido — da mesma forma — revendo antigas fotografias. Mas o que me doía, agora, era um passado próximo.

Não conseguia compreender como conseguira penetrar naquilo sem ter consciência e sem o menor policiamento: eu, que confiava nos meus processos, e que dizia sempre saber de tudo quanto fazia ou dizia. A vida era lenta e eu podia comandá-la. Essa crença fácil tinha me alimentado até o momento em que, deitado ali, no meio da manhã sem sol, olhos fixos no teto claro, suportava um cigarro na mão direita e uma ausência na mão esquerda. Seria sem sentido chorar, então chorei enquanto a chuva caía porque estava tão sozinho que o melhor a ser feito era qualquer coisa sem sentido. Durante algum tempo fiz coisas antigas como chorar e sentir saudade da maneira mais humana possível: fiz coisas antigas e humanas como se elas me solucionassem. Não solucionaram. Então fui penetrando de leve numa região esverdeada em direção a qualquer coisa como uma lembrança depois da qual não haveria depois. Era talvez uma coisa tão antiga e tão humana quanto qualquer outra, mas não tentei defini-la. Deixei que o verde se espalhasse e os olhos quase fechados e os ouvidos separassem do som dos pingos da chuva batendo sobre os telhados de zinco uma voz que crescia numa história contada devagar como se eu ainda fosse menino e ainda houvesse tias solteironas pelos corredores contando histórias em dias de chuva e sonhos fritos em açúcar e canela e manteiga.

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