Ana səhifə

Caminhos cruzados erico verissimo


Yüklə 1.1 Mb.
səhifə17/23
tarix25.06.2016
ölçüsü1.1 Mb.
1   ...   13   14   15   16   17   18   19   20   ...   23

D. Dodó fica com o seu questionário e a sua formigante sensação de felicidade.

44

Barulho e movimento no palacete de Zé Maria Pedrosa. No parque, os eletricistas atarraxam as lâmpa­das grandes de mil velas e os longos colares de pequenas lâmpadas coloridas. Dentro da casa as marteladas ecoam por todas as peças. Gritos.



Vera e. Chinita estão empenhadas em escolher lu­gares para os quadros. São telas que o coronel comprou nas últimas exposições: paisagens e nus.

Chinita, no alto de uma escada, olha para Vera:

— Acho que este. quadro fica melhor no hall.

— Aqui na varanda já te disse que também fica bem.

Sentado na poltrona, com o jornal em cima dos joe­lhos, Zé Maria assiste à discussão e resolve ser o me­diador.

— Deixe ver essa figura — pede.

Chinita mostra-lhe a tela. É uma paisagem: telhados e, por cima dos telhados, um céu distante de outono; no primeiro plano, roupas coloridas a secar, pendentes duma corda.

Zé Maria examina a paisagem, carrancudo. Depois decide:

— Acho que esse troço ficava muito bom se não tivesse essas roupas secando nas cordas. Onde é que se viu roupa secando na sala de jantar? Eu sou um homem rude mas compreendo as coisas.

Vera explode numa gargalhada. Chinita se torce de riso.

— Ora, papai — diz. — Se a coisa é assim, onde é que vamos botar os nus?

O coronel não se perturba:

— Os pelados? — pergunta. — Pois botem eles no quarto de banho!

Solta a sua risada gutural em hê. Continua a ler o jornal.

Com a presença do que a nossa sociedade possui de mais representativo, inaugura-se hoje o luxuoso e confortável palacete que o Cel. José Maria Pedrosa, capitalista residente nesta cidade, mandou construir para a sua Exma. família nos Moinhos de Vento.”

Zé Maria goza. A notícia é um estimulante, ele se ergue, lépido, e vai gritar na cozinha:

— Quantos croquetes fizeram? quinhentos? Mas é muito pouco. Mandem buscar mais duzentos na confei­taria.

Faz novas recomendações sobre o champanha. “Que­ro da estranjera” — especifica.

Duas mulheres de vestido arregaçado lustram o parquê.

Um homem sem casaco passa carregando às costas uma barra de gelo. O pintor alemão dá o último retoque na pintura da parede do hall. E vem vitorioso, para o coronel:

— Eu não lhe disse? Terminei ou não terminei?

— Terminou — concorda Zé Maria. — Mas eu só sinto vocês não terem pintado as vacas como eu pedi. Ficava bonito, assim dourado...

Uma criada vem dizer que o chá está pronto. Chinita convida:

— Vera, vamos nos preparar pra o chá?

— Vamos.

Sobem. No quarto, Chinita senta-se na cama, corada do esforço que acaba de fazer. A sua pele morena é um contraste com o pijama escuro. Os seus seios rijos sobem e descem como que querendo furar a seda. Vera senta-se também na cama e contempla a amiga longamente, pen­sando coisas... Chinita não sabe a força que possui, com estes olhos, este corpo... Pena é que não tenha compostura: muito intempestiva, meio selvagem, dema­siadamente preocupada com artistas de cinema. Diz as­neira com facilidade, faz criancices. No entanto é tão atraente, tão apetitosa, tão...

— Estou sem coragem... — murmura Chinita.

Mas Vera nem a escuta. Está a olhar para a outra com paixão, a olhar fixamente para os lábios dela, ten­tando espantar, afugentar um desejo que aos poucos se vai avolumando. Mas o desejo é uma onda que lhe sobe no peito, com uma força inexplicável. Estes lábios...

De repente Vera segura com ambas as mãos a cabe­ça de Chinita e começa a beijar-lhe a boca com fúria. Perdendo o equilíbrio ambas tombam sobre a cama. Vera continua a beijar a amiga incessantemente, numa violên­cia desesperada. Chinita sacode os braços, quase num abandono, surpreendida e ao mesmo tempo deliciada. Primeiro ri e pronuncia palavras que Vera lhe corta com beijos:

— Lou...quinha! Cre...do!

E depois se abandona toda às carícias da amiga, fe­cha os olhos e imagina que Vera é Salu.

Batem na porta. As amigas se separam, rápidas.

— Quem é? — pergunta Chinita.

Uma voz do outro lado:

— O chá está esfriando.

— Já vamos.

Agora Vera só tem vontade de bater em Chinita, esbofeteá-la. Olha-se no espelho do penteador: está corada e com a cabeleira revolta. Lavam e empoam o rosto em silêncio, penteiam-se e descem para a sala de refeições.

D. Maria Luísa está sentada na sua cadeira, imóvel. Não toma parte nos preparativos. Não diz uma palavra. Lavra assim o seu protesto mudo contra o desperdício, contra a loucura. Para que festa? Para gastar. Para que tanta comida, tanta bebida? Só para botar dinheiro fora.

Não. Ela lava as mãos, como Pilatos: Amanhã, quando todos estiverem na miséria, não podem lançar a culpa para cima dela.

— Mamãe, venha para o chá!

— Não quero.

Não tomar chá também é uma forma de protesto.

Chinita, Vera e o coronel sentam-se à mesa. Chá com torradas e presunto.

No corredor do primeiro andar passa um vulto de pijama. É Manuel, que acaba de acordar. Está pálido, amarfanhado, barba a azular-lhe as faces. Vai com a toalha debaixo do braço na direção do quarto de banho.

Por toda a casa vibra ainda a sinfonia dos martelos.

No parque os eletricistas experimentam as lâmpadas novas. Mas a luz do sol anula todas as luzes menores.

45

Fechado no quarto, Noel pega da pena e começa a lutar com a folha de papel em branco. Está resolvido a começar o seu romance. No fim de contas, quem tem ra­zão é Fernanda. É preciso dar um passo na direção da vida, dos homens.



Mas que poderá sair do tema do homem desemprega­do? Como começar?

As vidraças dá Floresta chamejam. Nos quintais há sombras verdes e azuis. O rio reflete furiosamente a luz do sol. Olhando da superfície do rio para a superfície do papel também inundado de sol, Noel tem a mesma im­pressão de impassibilidade rebrilhante.

Um nome para o herói. Flávio? Não serve. Muito romântico. Deve ser um homem simples, para dar ao leitor a impressão de verdade. Pedro? Ou José? José Pe­dro. O nome está escolhido.

Para começar, José Pedro está debruçado à sua janela, olhando para as crianças que brincam na rua. A roda infantil lhe traz à mente uma recordação da meni­nice.

Noel começa a escrever com a impressão de que Fernanda está presente em espírito, a dar-lhe sugestões, a incitá-lo.

Escreve a primeira frase:



José Pedro debruça-se à sua janela e olha para a rua. Debaixo dum plátano, na calçada, um grupo de crianças brinca de roda.

Noel relê o que escreveu. Parece ouvir a voz de Fer­nanda a seu lado: Vamos! Adiante!


46

Atravessando o salão grande do Bazar Continental para subir ao escritório do patrão, João Benévolo vai en­colhido, procurando esconder-se no meio dos fregueses, temendo ser reconhecido pelos antigos colegas. Antiga­mente vinha trabalhar com roupas baratas mas discretas, limpas e bem passadas. Agora a sua fatiota cinzenta está amassada e com nódoas de sebo.

João Benévolo sabe o caminho. Lembra-se do dia em que o chamaram ao escritório para lhe dizerem que estava despedido. Sobe os degraus em silêncio. Um cartão colado à porta: Entre sem bater. Chapéu na mão, coração batendo com força, João Benévolo entra. Na primeira sala, as duas mulheres. Ao ver Fernanda, João Benévolo se tranqüiliza. É a sua vizinha, uma conhecida: provavel­mente uma aliada. Sorri.

— Olá, João Benévolo? Como vai a sua gente?

— Todos bons. E a senhora? A sua mãe?

Muito bem, obrigada.

Silêncio. Fernanda pergunta:

— Veio procurar o homem?

— Vim.

— As coisas vão correndo mal, hein?



João Benévolo tem vergonha de confessar a verdade. Mente:

— Nem tanto. Tínhamos umas economias. Em todo o caso quando a gente está trabalhando, sempre é melhor, não é? — Fernanda sacode a cabeça. — Por isso vim falar com o seu Leitão Leiria.

— Espere aqui que eu vou ver...

Fernanda entra no escritório do patrão. João Bené­volo olha em torno. A moça de óculos escreve por trás do seu vaso de flores.

— Desculpe, D. Branquinha, eu não tinha visto a senhora. — Branquinha ergue os olhos e diz com indi­ferença:

— Bom dia!

Fernanda torna a aparecer:

— Pode entrar.

No seu embaraço, João Benévolo nem se lembra de agradecer a mediação de Fernanda. Entra no escritório de Leitão Leiria com o chapéu e o coração na mão.

As poltronas de couro, as telas na parede, o tapete verde onde os pés afundam sem ruído — tudo isto con­corre para aumentar o constrangimento de João Benévolo. Sentado à sua escrivaninha, Leitão Leiria fuma um cha­ruto, muito teso na cadeira.

— Às suas ordens.

— Não vê que... — gagueja o recém-chegado — eu sou aquele que trabalhava na loja, na seção de arma­rinho...

Os olhos de Leitão Leiria estão fitos nele.

— Ah! Muito bem. Como vai o senhor? Queira sentar-se!

Aponta para uma poltrona. Estas amabilidades sur­preendem João Benévolo.

— Fuma charuto?

— Não, obrigado. Não fumo.

Leitão Leiria atira uma baforada de fumo para o teto, reclina-se para trás na cadeira e pergunta:

— Em que lhe posso ser útil?

O seu rosto demonstra interesse. João Benévolo está encantado.

— É que eu não arranjei emprego até agora. Se o senhor soubesse de alguma coisa... Algum amigo... Alguma outra casa que precisasse... Se não for possível, não faz mal, não quero que se incomode por minha cau­sa... Mas acontece que estamos mal...

Leitão Leiria fica pensativo por alguns segundos. Pega da carteira e diz:

— Eu poderia auxiliá-lo com algum dinheiro...

João Benévolo ergue-se num salto para imediata­mente surpreender-se da impetuosidade de seu gesto.

— Não — diz — muito obrigado. Não é dinheiro. Eu queria um emprego...

Leitão Leiria repõe a carteira no bolso. Ergue-se e começa a passear dum lado para outro.

— Tenho uma idéia — diz ele, parando na frente do interlocutor. — Vou dar-lhe um cartão recomendando-o ao meu amigo Mendes Mota, da Fábrica Brasileira de Mosaicos. Espere.

Senta-se à mesa e começa a escrever num de seus cartões de visita:

Meu caro amigo. Tenho o prazer de apresentar-lhe o Sr....”

— Como é o, seu nome? Ah!

o Sr. João Benévolo, cidadão de bons costumes, trabalhador, empregado exemplar, que deseja obter uma colocação na firma de que V. S.ª é muito digno sócio. Faço questão cerrada de que V. S.a atenda ao meu recomendado nas suas justas pretensões.

De V. S.a, etc, etc.”

A assinatura numa letra miúda e clara. Mata-borrão. Envelope.

João Benévolo guarda o cartão no bolso e se desfaz em agradecimentos, arrependido de tudo quanto pensou de mal a respeito de Leitão Leiria. No final de contas, o homem é muito melhor do que parecia. Não quer um cha­ruto? Em que lhe posso ser útil? Como a gente se engana com as pessoas!

Fazendo uma reverência profunda, sai do escritório tão atarantado que se esquece de dizer adeus às moças.

Leitão Leiria ergue o receptor do telefone, pede um número e depois diz um nome.

— És tu, Mendes? Aqui é o Leitão Leiria. Vou bem. Olha, mandei aí um sujeito com um cartão. Quero te avi­sar... Foi um desaperto, compreendes? Pediu emprego. Ia ficar me amolando a tarde toda, tive de tomar uma providência drástica. Podes rasgar o cartão. O homem não me interessa. — Pausa. — Não! Absolutamente. Os amigos são para as ocasiões. Tu sabes, nesta nossa vida de comércio acontecem destas... Obrigado. Quando qui­seres fazer o mesmo comigo... Bom. Adeus! E desculpa o incômodo, sim?

Torna a pendurar o receptor. Arruma a gravata e dá um chupão forte no charuto.

47

Quando o relógio bate cinco horas (há certas horas que têm uma significação especial na vida da gente) Virgínia dá os últimos retoques no rosto — rouge e pó de arroz nas faces, creiom nas sobrancelhas, bâton nos lábios, — e vai para a janela.



Ele já está lá na esquina, como de costume a esta hora, e seus olhos estão voltados para ela. Cumprimenta-a com discrição, tirando o chapéu num gesto recatado, com uma pequena curvatura. Ela inclina a cabeça. E, tendo entre ambos a largura duma rua, duma calçada e dum jardim de cinco metros, ficam a se olhar, como um par de jovens namorados.

Como no tempo em que eu era moça — pensa Virgínia.

Um bonde passa. Ela recua um pouco e fica prote­gida por uma das folhas da janela. Pode vir algum conhe­cido no bonde... E quando o elétrico passa, num clarão amarelo e numa trovoada, ela volta a debruçar-se à jane­la. Alcides passeia na calçada, dum lado para outro.

Ao menor ruído que se produz na casa, Virgínia se volta, sobressaltada.

Bem como antigamente — pensa ela — bem como no tempo de moça.

O sol aos poucos desce no horizonte. As sombras crescem. E se avoluma no peito de Virgínia um quente, alvoroçado desejo de amor.

48

A baratinha corre pela faixa de cimento que margeia o rio, rumo da Tristeza. Contra o clarão purpúreo e dou­rado do horizonte se recorta a silhueta negra das monta­nhas e das ilhas. Redondo e vermelho-bronzeado, o sol vai descendo. O rio capta as cores do céu. Segurando o volante, cabelos ao vento, Salu diminui a marcha do car­ro e contempla a paisagem. A cidade envolta por uma névoa azulada é uma ponta que avança Guaíba adentro, uma massa violeta de recorte caprichoso, com faiscações e manchas claras. Uma chaminé solta fumaça para o céu. Os trapiches de pernas longas se refletem tremulamente na água do rio, que é negra e lustrosa junto das margens.



Do lado esquerdo da estrada aparecem chalés e bangalôs, quintas e pomares, barrancos sangrentos ver­tendo água, cerca com mourões de granito, árvores isola­das. Às vezes um cachorro salta de dentro dum jardim e sai a perseguir o automóvel, latindo furiosamente.

Na ponta dum trapiche um rapazola em mangas de camisa pesca com caniço. À porta dum clube de regatas dois remadores conversam; camisetas verdes, maiôs jus­tos, braços, coxas e pernas à mostra.

Salu vai num adormecimento... A marcha do carro é macia. A tarde, morna. Chega-lhe às narinas um cheiro fresco de mato. Cartazes anunciam terrenos em praias novas: Guaíba, Espírito Santo, Belém Novo, Ipanema... Na encosta dum morro, em meio da massa verde-escura do arvoredo, berra o telhado coralino duma casa nova. A faixa de cimento corre na frente do automóvel, torcendo-se como uma enorme jibóia cinzenta. Um automóvel bege cruza pela baratinha de Salu em sentido contrário, veloz. O horizonte está cada vez mais afogueado. A ponta do sol começa já a desaparecer na linha do horizonte, Longe, a cidade parece uma pintura de biombo chinês.

Salu não pode afugentar da mente a imagem de Chinita. É uma doença que ele agora tem no corpo, uma obsessão. Está todo impregnado de Chinita. Esta tarde cariciosa, com os seus perfumes tépidos, o seu colorido forte, a sua névoa, e o seu sol de brasa — só pode avivar-lhe o desejo. Salu pensa na namorada. Num cartaz a fi­gura duma jovem de maiô recomenda uma praia próxima. Salu recorda as cenas da piscina, os contatos deliciosos debaixo dágua, as palavras cochichadas, as insinua­ções...

Mal se ouve o ruído do motor. Acelera a marcha do carro, e lança um novo olhar para a paisagem. O trenzinho da Tristeza passa apitando. A noite desce de mansi­nho.

49

A lua brilha sobre a Travessa das Acácias.



Pela calçada passam raparigas de braços dados, sob as janelas iluminadas. Na loja Ao Trovão da Zona um negro bêbedo arranca duma cordeona acordes sem sentido. O Capitão Mota está sentado com a mulher à frente da casa. D. Veva, à sua janela, queixa-se para o vizinho do moleque do bodoque.

— Pois aquele negro sem-vergonha não deixa o meu pombal em paz.

A luz dos combustores é fraca e amarelenta. Por cima dos telhados estende-se o céu claro, todo borrifado de estrelas. E na travessa tranqüila a janela que está mais perto do céu é a do Prof. Clarimundo.

Antes de ir para a aula, o professor recebe a visita habitual do sapateiro Fiorello.

— É como lhe digo, seu Fiorello, no fundo isso é uma questão de boa vontade.

Fiorello faz um gesto teatral.

— Mas o povo era indisciplinado...

— O povo sempre foi indisciplinado... Panem et circenses... é o que querem.

Fiorello dá de ombros. Panem et circenses? Ele não entende francês.

— Mussolini endireitou a Itália. O senhor veja...

Mas Clarimundo está firme no seu ponto de vista:

— Não acredite, seu Fiorello. Isso são coisas de jor­nal.

— Ma...ma...

Fiorello está tão excitado que não encontra palavras. O professor é um homem muito instruído, tale e cosa, mas neste ponto não tem razão.

Clarimundo continua a sacudir a cabeça.

A metade dessas histórias que os jornais contam são mentiras. Mentiras para chamar a atenção do público.

— Meu primo Salvatore que mora em Nápoles me escreveu dizendo...

— O seu primo nem podia dizer outra coisa. A cen­sura não permitiria.

— Mas que censura!

Fiorello treme, vermelho, dá pequenos pulinhos, junta as mãos como quem vai orar e sacode-as, sempre juntas, diante do rosto do professor, repetindo a pergunta:

— Mas que censura! Mas que censura!

Clarimundo faz um gesto apaziguador.

— Está bem. Não se exalte. Vamos dizer que alguma coisa do que se conta de Mussolini seja verdade.. .

— Giá...


Mais calmo, Fiorello torna a sentar-se.

— Tudo isso está errado, seu Fiorello. E sabe quem é que vai aclarar a história? É o meu homem de Sírio.

— O sírio?

Clarimundo sorri, com benevolência.

— Não, homem. Não. Eu explico. Estou escrevendo um livro. . .

— O senhor mesmo?...

— Sim, eu. Trata-se dum homem que lá de Sírio... O senhor sabe o que é Sírio? É uma das estrelas mais brilhantes do firmamento. Pois, como eu dizia, trata-se dum homem que lá de Sírio, por meio dum telescópio mágico, olha a terra e descobre a verdade das coisas.

— Veja só...

— Essas histórias todas de Mussolini, de crise eco­nômica, de comunismo, tudo isso vai aparecer sob um aspecto novo.

— Giá...


— O meu homem de Sírio fará revelações sensacio­nais...

— O senhor já botou tudo no livro?

— Ainda não. Qualquer dia destes começo a escrever o prefácio da obra...

Prefácio. Fiorello não entende mas sacode a cabeça, numa aquiescência.

Clarimundo aproxima-se da janela, com um ar sa­tisfeito e sereno fica contemplando o céu, como se fosse proprietário de todas as estrelas, de Sírio e das outras.

50

O salão de festas do palacete do Cel. Pedrosa fervi­lha de convidados. As vozes se entrecruzam, emaranham e confundem dentro do dia artificial criado pelas lâmpadas invisíveis. A orquestra toca no hall estridente, abafando as badaladas do grande relógio que neste momento bate dez horas.



Pelos cantos do salão vêem-se grupos. Há uma fileira de cadeiras em que se perfilam senhoras idosas que con­versam e observam. (Zé Maria foi pródigo nos convites.) No meio do salão alguns pares dançam.

Um criado passa com uma grande bandeja em que as taças de champanha semelham uma pequena floresta de árvores de cristal com copas de ouro.

Na varanda — as grandes mesas de frios e doces. Cinco enormes perus recheados e crivados de palitos com fatias de limão erguem para o teto as pernas mutiladas. Os croquetes sobem em pirâmides morenas em doze pra­tos vermelhos de cerâmica. (O coronel pensou num chur­rasco ao ar livre. “Que horror!” — disse Chinita. — “Desista da idéia, papai. Que coisa anti-social! Olha que não estamos na estância...”.) Os sanduíches formam altas montanhas de neve pintalgadas do vermelho desbo­tado dos presuntos. Numa enorme travessa de prata a maionese (idéia luminosa do Cel. Zé Maria) parodia a bandeira do Rio Grande: o amarelo do molho de ovo, o vermelho da beterraba e o verde das folhas de alface e das talhadas de pepino.

Ao lado da mesa dos perus, corre paralelamente a dos doces, que é toda ela uma confusão de cores. Os quindins são estrelas de ouro. as gelatinas (vermelhas, brancas, cor-de-rosa e âmbar) têm a forma de peixes, leões, polvos, flores. Há um grande bolo que é um arra­nha-céu em miniatura. Dum chafariz de chocolate jorra a água amarela dos fios de ovos. Vêem-se mais algumas dúzias de pratos com doces secos, uns famosos, outros anônimos.

Quando a música cessa aumenta o zunzum das con­versas.

O coronel olha o salão com olhos contentes. Apesar do colarinho engomado que lhe comprime as carnes do pescoço, apesar da camisa de peito duro, apesar do calor forte que está fazendo (“Vai chover...” — disse uma voz no meio da multidão), apesar dos sapatos de verniz que lhe apertam os calos, ele se sente feliz.

“Se o Madruga visse tudo isto!” Seus pensamentos se voltam para Jacarecanga. Valia a pena mandar buscar o patife, pagar-lhe passagem de ida e volta, dar-lhe hospe­dagem... Só para ele ver, só para ele se ralar de inve­ja...

Zé Maria não cansa de olhar para os convidados. Um sorriso para cada um. Muitos são gente que ele nunca viu, mas gente distinta, está se vendo, gente que traja bem, que sabe pisar, falar, dançar. Sim senhor! Quem havera de dizer!

A música duma marchinha invade o ar luminoso. Os pares saem dançando.

O Dr. Armênio aproxima-se do dono da casa.

— Olá, doutor, como le vai? — pergunta Zé Maria, estendendo o braço.

— Muito bem, agradecido. — Apertam-se as mãos. — Uma festa linda! — acrescenta Armênio.

E na sua mente a frase ecoa em francês: Quelle jolie soirée!

Ficam contemplando os pares. Os vestidos das mu­lheres são móveis manchas coloridas. Há decotes fundos, braços nus onde faíscam jóias.

Ar perfumado, quente, entorpecedor. A música forte. Armênio tem de gritar para se fazer ouvido.

— Que grande é o seu salão, coronel! — Sente-se na obrigação de elogiar. Dever de cortesia. Está agora regan­do uma flor (pobre flor, rude flor) do seu jardim social.

O coronel sorri, lisonjeado, e retruca:

— É um potrêro!

Armênio não confia no testemunho de seus ouvidos.

— Como diz?

— Digo que é um potrêro! — repete Zé Maria, rindo em ê.

Armênio sente-se picado pela espinho desta flor sil­vestre.

Que diferença das flores de estufa! Sorri amarelo, pede licença, e sai a procurar Vera. Pensou nela por con­traste. Seus olhos viajam pelo salão, fazendo pequenas escalas rapidíssimas pelos rostos femininos. Meu Deus, ela não teria vindo ainda? Mon Dieu! Ela virá? Tomara que venha. É possível que esta noite seja definitiva.

Sentada na sua poltrona, num canto do salão, D. Maria Luísa olha a festa como uma estranha. Não. Esta casa não é sua, nunca foi, nunca será. Ela pertence à pobreza: apesar dos dois mil contos da loteria, nunca deixou de pertencer à pobreza. O seu meio, o seu chão é a casa humilde de Jacarecanga: lingüiça frita, leite com farinha de beiju na sobremesa, rosquinhas de polvilho com café, guisadinho com quibebe, cinema aos domingos, calma, conversas com os vizinhos por cima da cerca, paz... Esta luz, estes brilhos, este barulho, esta gente — tudo apavora. A música é uma profanação: o mesmo que tocar sambas no cemitério. Não. Ela ainda continua pobre. Amanhã, quando o dinheiro acabar e a miséria negra chegar, ela não quer sentir remorso, não quer que a culpem do desperdício e das extravagâncias. Por isso fica aqui sentada, como uma convidada indesejável, respondendo com monossílabos às perguntas, retribuindo com um sorriso de canto de boca aos elogios que fazem à casa ou à festa.

D. Maria Luísa olha em torno e mentalmente vai calculando os gastos. Sempre foi fraca nas quatro opera­ções. Mesmo com lápis na mão, ela erra. Mas há um sexto sentido por meio do qual agora ela consegue desco­brir precisamente o quanto se gastou, o quanto se vai ainda gastar...

1   ...   13   14   15   16   17   18   19   20   ...   23


Verilənlər bazası müəlliflik hüququ ilə müdafiə olunur ©atelim.com 2016
rəhbərliyinə müraciət