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Caminhos cruzados erico verissimo


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A tua piedade, não. Mas poderás fazer alguma coisa para que um dia tudo isto melhore...

— Não sei como...

— Eu sei...

Tudo o que Fernanda cala, Noel compreende. Mas nada se dizem. Ficam simplesmente olhando o rio. Um vento morno arrepia a água. Uma nuvem gigantesca, debruada de luz, se ergue, cor de fumo, contra o horizonte claro. Um cutter de vela triangular passa a poucos metros da praia, levando um homem e duas mulheres de maiôs coloridos. A sombra branca da vela se projeta nágua, toda cortada pelas ondulações.

— E o romance? — pergunta Fernanda.

— Como sempre. Parado.

Noel tem um velho projeto: escrever um romance.

— Por quê? Por que não trabalhas?

Por mais que se esforce — e na verdade ele não se esforça muito — Noel não encontra nenhum tema, fora da autobiografia. A sua infância, os contos da tia Angéli­ca, o paraíso tranqüilo que a velha preta lhe tornava possí­vel graças à sua vigilância de Anjo da Guarda, a mãe re­mota, os serões familiares, a cara feia mas querida da negra velha... O colégio, nenhuma relação com o outros rapazes, a vida do menino mimado que veste roupas lim­pas, que vai à escola penteadinho e cheirando a água-de-colônia... Quando os colegas o ameaçavam, era ainda tia Angélica que vinha salvá-lo. “Saem, diabos! Deixem o menino quieto!” E brandia a mão enorme, como uma clava, afastando os agressores. Depois, a morte da negra, o cadáver, o velório, o sentimento duma perda irrepará­vel. A morte da mãe não lhe teria sido pior. Mais tarde, a Academia, o primeiro contato com a vida, e a grande de­cepção. A vida não era, como ele esperava, um prolonga­mento dos contos de fadas. Nas histórias de tia Angélica sempre o príncipe acabava casando com a princesa e o gigante mau morria. Mas na vida os gigantes maus an­davam soltos, vitoriosos, e não havia princesas nem fadas.

Noel tem às vezes a impressão de que através da autobiografia ele talvez se possa libertar de seus fantas­mas. Mas todas as tentativas que tem feito redundaram em malogro.

O que vai para o papel é uma história sem força, sem carne, sem sangue, é como que um conto de fadas de outro conto de fadas, uma mentira de outra mentira.

Fernanda sorri e olha para o amigo.

— Eu te ofereço um assunto, e esse assunto será o teu primeiro passo na direção da vida...

— Qual é?

— Toma o caso de João Benévolo. Tem mulher e filho e está desempregado. Eis uma história bem humana. Podes conseguir com ela efeitos admiráveis.

Noel faz uma careta de desgosto: a mesma careta que fazia em menino quando tia Angélica lhe queria bo­tar goela abaixo, à custa de promessas falsas, um remédio ruim.

— Mas isso é horrível... Não me sinto com capaci­dade para tirar efeitos artísticos dessa história.

Fernanda responde rápida:

— Tira efeitos humanos. É mais legítimo, mais ho­nesto.

Para Noel a história do homem que perdeu o emprego só tem uma face: a da chatice descolorida e baça do co­tidiano. Criaturas sem imaginação, banhos aos sábados, ambientes de janelas fechadas, cheiros desagradáveis, conversas tolas, um sofrimento que não é desesperado nem suave, mas simplesmente aborrecível. Que esperança poderá haver para um romance baseado em tal história?

— Por exemplo — insiste Fernanda — um dia falta a comida... Podes começar a história nesse ponto. O herói olha para a mulher e pergunta: O que é que vamos comer?

Comer... A palavra causa uma espécie de náusea a Noel. Comer... Ele preferia um romance de belas abstra­ções luminosas, de seres transparentes que não têm san­gue nas veias, mas luz, de paisagens eternamente lumino­sas como a presente, de criaturas que não têm necessida­des humanas...

— Não me sinto com forças para escrever esse ro­mance... — confessa Noel.

Fernanda dá de ombros.

— Está bem. Não posso te obrigar... Vamos cami­nhar um pouco mais? — Levantam-se.

A grande nuvem que se erguia sobre as montanhas se dissipou. O avião amarelo torna a passar a uns duzen­tos metros do solo.

Há automóveis à beira do rio. Crianças correm e gritam. Um homem gordo, de óculos que brilham muito, assesta a sua Kodak para um grupo de moças.

A Fräulein de maiô vermelho acena com o braço para uma amiga:

He, Trude! Komm’her! Wir wollen schwimmen!

Dentro duma baratinha Dodge um rádio atira no ar os sons que neste mesmo instante os músicos da Banda Municipal produzem no auditório Araújo Viana. Verdi. O pistão faz floreios.

— Como vão os discos?

Noel sorri, seu rosto como que se enche duma cla­ridade maior. Agora ela entra francamente nos seus do­mínios, não é mais a Fernanda preocupada com as des­graças do próximo, a Fernanda das coisas práticas.

— Muito bem. Descobri uma coisa notável. Ibéria, de Debussy. Leva a gente para o sétimo céu. Maravilhoso.

Música para gente rica e desocupada — pensa Fer­nanda.

Mas nada diz. Está resolvida a não amargurar o domingo de Noel.

— Sugestiva? — pergunta.

— Muito. Foi a viagem mais bela que fiz pela Espa­nha.

Noel lembra-se de que a revelação foi tão grande, a beleza tanta que ele teve de fazer um esforço tremendo para não chorar. Continua a falar com animação. Positi­vamente: agora está no seu mundo.

E enquanto ele fala, Fernanda pensa na sua rua cinzenta, em Maximiliano, e seu quarto pobre, nos filhos de Maximiliano, em João Benévolo e sua gente...

Todos os músicos da Banda Municipal se manifes­tam num final grandioso. Parece que o alto-falante do rádio da baratinha vai arrebentar.

Mas Noel está ouvindo mentalmente Debussy. Fer­nanda não ouve nem Noel, nem Verdi, nem Debussy: está vendo com os olhos interiores um dia indiscutível em que o esforço dos homens de boa vontade, sem violência nem fanatismo, possa igualar as diferenças sociais.

O cutter passa sereno sobre as águas, como um enor­me cisne. Os maiôs coloridos se agitam. O rio reverbera a luz do sol.

33

O suor que lhe escorre da testa em bagas grossas entra-lhe pelos olhos, cegando-o. Mas Salu se bate como um leão. Porque sente a necessidade permanente de ven­cer. Vencer em tudo, de qualquer forma. Não obstante o clarão do sol e a névoa que o suor lhe põe nos olhos, ele salta dum lado para outro, procurando devolver para o outro lado da rede a bola branca que o adversário (para ele apenas um vulto branco indeciso que corre dum lado para outro) arremessa para o seu campo com firmeza e violência.



Os espectadores aplaudem. As cabeças acompanham a trajetória da bola: voltam-se para a direita e para a esquerda, rápidas; quando um dos jogadores erra o golpe, as cabeças param, os rostos exprimem desgosto ou con­tentamento. Depois o duelo recomeça. Ninguém fala. Só se ouve o baque quase musical, abafado e macio, da pelo­ta que bate nas tripas de carneiro retesadas das raquetas.

Salu joga com espetaculosidade. Salta na ponta dos pés em movimentos quase teatrais. Aproxima-se da rede procurando rebater a bola no ar, faz reviravoltas que pa­recem passos de ballet. Tem uma mecha de cabelo caída sobre os olhos. (Não faz mal — pensa ele — assim im­pressiona mais...) Tem a respiração ofegante. O adver­sário é forte e calmo, não faz jogadas para agradar a assistência: tem-se a impressão de que mal move o braço para desferir os golpes.

De vez em quando uma voz se destaca do meio dos espectadores silenciosos. É um oh que escapa contra a vontade da pessoa que o emite, um oh desafinado que se evapora na enorme claridade da tarde.

Salu é ator e ao mesmo tempo espectador. Joga e se vê jogando. E por isso se admira. Está soberbo hoje: fa­cilidade de movimento, resistência, elegância nas rebati­das, violência no tiro... E a certeza de que outros o obser­vam (principalmente as mulheres) lhe dá uma coragem invencível, uma vontade ferrenha de representar mais, de fazer mais cenas, para que cresça não só a admiração dos outros como também a sua própria.

Vera e Chinita, em roupas de banho, envoltas em roupões, se dirigem para a piscina. O Dr. Armênio, sub­misso e festivo como um cachorrinho à procura do dono, segue a filha de Leitão Leiria. Também está metido num maiô preto que lhe deixa a descoberto as coxas e as per­nas dum moreno flácido, lisas, lustrosas e sem cabelo co­mo as pernas dum bebê.

— Que linda tarde de verão! Nem parece que esta­mos em maio! Outono maravilhoso!

Armênio pronuncia as palavras com delícia. E na sua mente elas ecoam em francês: Automne merveilleux!

Vera, em resposta, limita-se a sorrir com o canto dos lábios. Que homenzinho engraçado! — pensa Chinita.

No alpendre do clube há muita gente com roupas leves de verão em torno de mesas. Os garçons passam bandeados, erguendo mãos que seguram bandejas. Dum alto-falante escorre uma valsa de Strauss.

Ao som da melodia, Armênio pensa em voz alta:

— Esta música deliciosa é um convite à patinação.

Invitation au patinage...

E lembra-se imediatamente de que viu num filme alemão uma grande pista em Viena com várias centenas de pares, a deslizarem enlaçados ao som da valsa tocada por uma banda de música, no centro do redondel.

Ninguém na piscina. A água está calma, transparen­te e riscada de sol.

Vera e Chinita tiram os roupões.



Merveille! — pensa Armênio — Salut, Aphrodite! Je suis enchanté, vraiment enchanté!

O que o deixa enchanté são os dois pares de coxas que se revelam à claridade do dia, e que na rua e nos bailes se escondem por baixo dos vestidos de seda e que há pouco estavam tapados pelos roupões. Armênio sempre imaginou que fossem pernas lindas... Mas assim — fichtre! — com estas linhas, esta tonalidade... Ele sem­pre se orgulhou do método que rege todas as coisas de sua vida, até a função sexual. Je domine la bête qui habite en moi — costuma ele dizer aos amigos, no seu francês trôpego. Tudo nele obedece a um horário rigoroso. Chá com torradas pela manhã, um almoço sem farináceos ao meio-dia. (Il faut se soucier du corps.) Um lanche leve à noite, duchas frias pela manhã, todos os dias. Aos sábados, uma viagem a Citera (voyage à Cythére), escapadinhas inocentes: uma pensão discreta e fina, com luzes veladas, almofadas e perfumes, poupées pelos cantos, ambiente artistique. Mas só aos sábados. Durante os dias úteis o sexo é forçado (Ia volonté oblige) a ficar dormindo bem quietinho para que esteja desperto e ativo apenas o ad­vogado e o gentleman, o homem que trabalha, que ganha l’argent e o cavalheiro que cultiva o seu jardim social. É um jardim onde há flores raras que necessitam de cuida­do. As flores são as relações e Armênio as cultiva em fazendo visitas, enviando cartões e corbelhas por ocasião dos aniversários, ou dando pêsames, “sentidas condolên­cias”... Mas todo o jardineiro tem uma flor predileta, uma flor que ele rega com mais carinho. Para Armênio a flor eleita é Vera. E agora, um pouco perturbado, ele está como um regador solícito, com o bico voltado para sua fleur exquise, despejando sobre ela um chuveiro de palavras amáveis:

— Tenho a impressão de estar na Grécia... A sua companhia amável... Mlle Vera...

Mas Vera e Chinita estão discutindo a água. Estará fria? Estará morna?

Vera não pode esconder sua contrariedade. Pensava poder ficar a sós com Chinita. Têm tanto que conversar... E Chinita anda precisando de conselhos. Telefonou-lhe de manhã, marcando o encontro aqui no América, na espe­rança de que não seriam perturbadas... Como teria este idiota do Armênio descoberto que ela vinha? Aqui está ele com o seu corpo de bebê, os seus óculos enormes, o seu francês coxo e aborrecível, a sua voz endefluxada. E insistindo sempre nos galanteios, apesar de tudo. (Vera olha-o da cabeça aos pés.) Que homem ridículo! Tem uns braços de matrona romana, gordos e fofos. E ainda por cima depila as coxas e pernas, como uma corista... Horroroso!

Os olhos de Chinita estão voltados para a pelouse de tênis. Aquele vulto que corre como um demônio, aquele vulto... Não há dúvida, é Salu...

O alto-falante silencia. O vento traz do alpendre o rumor das conversas.

Vera bate com o cotovelo em Chinita.

— Que é isso? Viste algum fantasma?

— Vera — pergunta Chinita, apontando com um dedo na direção do jogador — aquele não é o Salu?

Vera entrecerra os olhos. Armênio assesta os óculos na direção apontada.

— Parece... — faz ela com indiferença.



Il me semble... — pensa Armênio. E depois, em voz alta:

Juste! C’est Salu. — Mas corrige-se, rápido. — Desculpem! Escapou-me o francês sem querer... Parece que é Salu mesmo.

— Vamos cair nágua! — convida Vera.

— Tu primeiro! — pede Chinita.

— Está bem.

Vera caminha para a prancha que se eleva a dois metros da água, ergue os braços, ficando na ponta dos pés...

Armênio olha... Aquele corpo de rapaz, o maiô verde, os braços e as coxas com uma penugem dourada, o sol... Exquise! Formidable! E bem no instante em que Vera arma o salto, Armênio sente que, não obstante toda a sua volonté, todo o seu método, o sexo acorda num pro­testo violento, apesar de não ser sábado, apesar de ele ser um cavalheiro, apesar de seu jardim social...

Como um dardo, o corpo de Vera descreve uma cur­va no ar e mergulha nágua, com um chape macio.

— Bravo! — exclama Armênio, batendo palmas. — Bravo!

No fundo claro da piscina, Vera parece um peixe verde e rosa.

— Parece uma iara — diz Armênio para Chinita.

— Ou um sapo! — sugere esta, no momento em que Vera, ainda debaixo dágua, faz uma flexão de pernas para subir à superfície.

A cabeça da filha de D. Dodó emerge, cheia de go­tas iridescentes.

O alto-falante projeta sobre a tarde a música de um jazz de negros: um fox histérico e sacudido.

— Vamos, Chinita! — convida Vera.

Chinita olha para Armênio:

— Então, doutor, vamos nadar?

Armênio sente um leve mal-estar, pois não sabe na­dar, nunca teve ocasião de aprender. Mete uma roupa de banho e entra na piscina porque isto faz parte de suas funções de jardineiro. Mas quanto a nadar...

— Nadar propriamente, não nado... — explica ele, embaraçado.

— Venham! — torna a gritar Vera.

— Venham! — ecoa na mente de Armênio. Plural. Agora é um convite de Vera. Impossível recusar. Noblesse oblige...

Com todo o cuidado, Armênio se ajoelha à beira da piscina e estica a perna esquerda, tomando a temperatu­ra da água com o pé; vai afundando o pé, a perna, a coxa e depois, segurando-se nas bordas da piscina, deixa afun­dar mais da metade do corpo. (Estar na mesma água em que Vera está, ser acariciado pelas mesmas ondinhas que acariciam a epiderme de Vera... É uma comunhão, qua­se uma união... ) Armênio larga as bordas da piscina e afunda ainda mais. (Beber a água em que Vera se banha — eis o requinte dos requintes amorosos... Mas será que alguém mais hoje andou tomando banho aqui? Duvida. Oh! Le doute éternel!)

Salu está com o rosto banhado de suor. Lustrosa e batida de sol, a sua pele parece mais morena. A bola zune dum lado para outro: as cabeças dos torcedores acompa­nham a bola.

O adversário, do outro lado do campo, continua a jogar com calma. Corta a pelouse em diagonal com um pelotaço forte que passa rente à rede... Salu salta, num esforço supremo, estende o braço que tem na extremidade a raqueta, solta um gemido... mas erra o golpe. Game! O outro ganhou a partida.

Salu atira a raqueta longe num gesto teatral. Ou­vem-se risadas. Mas Salu em seguida se arrepende do gesto e vai apertar a mão do adversário. Os grupos se dispersam.

Salu caminha para o vestiário. Uma bobagem: um jogo amistoso, coisa sem importância. Mas o fato de ha­ver outras pessoas assistindo à partida consistia para ele uma obrigação tremenda de vencer. A derrota é amarga. Ele não sabe perder.

Mas o amargo da derrota é instantaneamente es­quecido, porque Salu de repente avista Chinita na piscina.

— Alô! Chinita! — grita ele, levantando a raqueta no ar.

Chinita se volta, põe-se na ponta dos pés, ergue as duas mãos e responde:

— Alô! Vamos cair nágua!

É uma declaração e um convite.

Num segundo, Salu forma o plano:

— Volto já! Vou trocar de roupa!

E corre para o vestiário. Mete-se debaixo do chuveiro e pede ao ecônomo a sua roupa de banho.

Quando chega à piscina, Chinita está no alto da prancha, preparando-se para o salto. Podia fazer como Vera: erguer os braços, ficar na ponta dos pés e projetar-se. Movimentos simples: poucos segundos. Mas para ela isso não é bastante.

Para gozar a piscina, o salto, a tarde, o Esportivo América ela precisa imaginar que isto não é Porto Alegre, precisa convencer-se de que está em Hollywood e é Joan Crawford, ou Carole Lombard... Olha em torno. Lá em cima, céu azul e iluminado. Na frente os dois pavilhões do clube, com o seu alpendre cheio de vestidos coloridos, mesas, vozes e músicas. As quatro pelouses de tênis, de terra batida de tijolo. O jardim com a estátua do homem nu atirando um disco: os canteiros de relva lustrosa. Para além dos muros, os telhados, os quintais e, lá mais longe, a cidade, a ponta da Cadeia, a chaminé duma usina man­dando para as nuvens um penacho grosso e escuro de fu­maça (como o cigarrão do vovô Eleutério — pensa ela), as torres da Igreja das Dores... Depois, o rio chamejando a mancha verde-escura das ilhas, lanchas, catraias... Chinita passeia os olhos pela paisagem. Ela é Joan Craw­ford. Uma festa na vivenda dum mister rico. Clark Gable foi botar a sua roupa de banho. A história é simples... Ela é uma herdeira rica que veio do far west. Ele, um rapaz da cidade. Um gangster? Sim, um gangster, para ficar mais sensacional. Mas um gangster que tem bom coração e no fim acaba se regenerando e casando com ela. Mas um dia a família da heroína, cujo pai é assassi­nado pelo gangster... Credo! Assassinado, não, pode ser agouro até... Melhor mudar o enredo. Era uma vez...

Os olhos de Chinita caem em Salu. Então, para que ele a admire, para que tenha dela uma impressão melhor, Chinita ergue os braços, levanta os olhos para o céu...

Salu estaca, e fica olhando para a rapariga. Contra o fundo azul do céu se recorta a figura dela, como num cartaz, desses que anunciam sabonetes, roupas de banho, ou praias de veraneio da Califórnia ou da Côte d’Azur. Para Salu agora Chinita apareceu sob um novo aspecto. O maiô preto e justo não dá motivo a suposições, asas à fan­tasia, porque não esconde quase nada, nem dissimula as formas. Os cabelos de Chinita estão escondidos pela touca de borracha vermelha, presa à cabeça por duas tiras amar­radas por baixo do queixo. Os seios avançam num relevo atrevido. Onde o maiô termina, começam as coxas — morenas, lisas, rijas, roliças, longas; depois, as pernas bem torneadas e os pés pequenos. Salu sente vontade de se transformar em água para aparar aquele corpo no ímpeto do salto.

Chinita olha para a piscina e no segundo mesmo em que se atira para baixo feito um torpedo cuja ponta é for­mada pelas mãos unidas e entrelaçadas — ela pensa nos banhos que tomava nas férias, no arroio da chácara do tio Terêncio, saltando de camisola para dentro dágua, no meio da gritaria dos primos... (Mergulha na água fresca, suas mãos tocam o cimento do fundo da piscina.) O fundo do arroio da chácara era pedregoso, os lambaris passavam roçando pelas pernas da gente, as plantas se enroscavam nos pés e eram como cobras, davam um arrepio no cor­po... Como cobras...

E Chinita sente que uma coisa agora se lhe enrosca nas coxas enquanto ela luta para subir à superfície. E a coisa ainda continua a apertar-lhe as carnes quando ela bota a cabeça para o sol e dá com a cara reluzente e riso­nha de Salu...

— Mergulhei junto contigo...

— Tira a mão da minha perna — cochicha ela. — Olha que os outros podem ver...

— Que tem isso?

— Salu! Aqui na frente de todos fica feio.

O Dr. Armênio joga bola com Vera.

— Queres dizer — insiste Salu — que se os outros não vêem não faz mal...

Chinita sorri.

— Sem-vergonha...

— Vamos lá para a ponta da piscina?

Saem nadando como dois peixes rumo da outra ex­tremidade. A bola salta de Vera para Armênio. Vera tra­ta o pretendente como a uma criança que devemos distrair com brinquedos inocentes para que ela não nos importune com pedidos inconvenientes. E a bola de gomos coloridos anda no ar, alegre, dum lado para outro. E Armênio, que interpreta o brinquedo como uma capitulação, sente-se leve, alegre, colorido e contente como uma bola de borra­cha.

Mas de repente Vera olha para o outro lado da pisci­na e vê Chinita e Salu em mergulhos suspeitos. No fundo dágua os namorados se enroscam, formando um bicho de quatro pernas e quatro braços.

— Que indecência! — exclama interiormente.

E joga a bola com raiva para longe.

Que pena! — pensa o Dr. Armênio. — Estava tão bom...

Vera salta fora da piscina, como se temesse ficar contaminada pela água em que Salu mergulha. Como um cachorrinho fiel, outra vez sem dono, Armênio sai atrás da bem-amada.

— Chinita, vamos embora que está ficando tarde!

A cabeça de Chinita emerge:

— Ora! Eu fico mais um pouquinho.

A outra metade do monstro subaquático envolve-lhe a cintura com os tentáculos e puxa-a para baixo dágua, afogando-lhe a última sílaba da última palavra.

Salu sente ainda um restinho do travo amargo da derrota. De alguma maneira precisa vencer hoje.

34

No terceiro andar do Edifício Colombo, no aparta­mento número 9, vê-se pregada à porta uma pequena placa esmaltada com estes dizeres:



Mlle Nanette Thibault.

Manicure.

O subtítulo manicure é para tranqüilizar o Masca­renhas encarregado do edifício. Uma “mademoazela” sem profissão que mora em apartamento não pode ser boa coisa... As famílias podiam reclamar. O homem relutou em alugar o apartamento para a mulher loura e pintada. Ela gostou dos alojamentos. Custavam 600$000 por mês? Pois ela pagava 700$000, contanto que lhe dessem o contrato. A casa era nova, confortável, os elevadores fun­cionavam bem, o ponto era central, o apartamento tinha o número de peças que lhe convinha... Mas Mascarenhas hesitava. O Cel. Zé Maria Pedrosa interveio conciliador.

— A madama é séria — garantiu ele.

E para tranqüilizar o Mascarenhas, acrescentou, num prodígio de cinismo:

— Conheci a família dela.

Na cidade do interior de onde Zé Maria viera, “co­nhecer a família” era o melhor dos documentos, a mais legítima das garantias. Mas o Mascarenhas estava duro:

— Eu sei, coronel. Mas é que temos famílias que podem reclamar. Eu sei que a madama é boa... Se ao menos ela tivesse uma profissão...

O coronel foi perdendo a paciência (tinha heróis farroupilhas no sangue) e, para não fazer uma violência, resolveu botar tudo em pratos limpos. Chamou o Mascare­nhas para um canto e disse claramente:

— Não gosto de falsidade. Essa madama é minha amásia. Mas lhe garanto que é acomodada. Aceite ela, homem. Eu pago oitocentos e respondo pelo que aconte­cer.

Seu Mascarenhas, comovido pela franqueza, amole­ceu um pouco. Mas ainda opôs obstáculos... A falta de profissão era o diabo...

A francesa teve uma idéia. Sugeriu uma placa em que, por baixo de seu nome, viesse a palavra: manicure. Era uma profissão, ninguém podia dizer o contrário. O Mascarenhas achou a idéia muito boa e fechou o negócio. Manicure era a palavra mágica que haveria de apagar todos os pruridos de moralidade dos habitantes do edifí­cio.

Por trás dessa porta em que branquela a placa de letrinhas negras fica um pequeno hall, com um cabide de espelho: no cabide, o chapéu do Cel. Pedrosa. Depois do hall vem a sala de estar: um divã, duas poltronas, um abajur verde, enorme, um tapete, almofadas, quadros pelas paredes, cortinas nas janelas, e um angorá enrodilhado em cima duma almofada de cetim vermelho.

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