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Caminhos cruzados erico verissimo


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Chinita e Salu dançam, muito agarrados. Uma festa na casa de Joan Crawford — pensa ela. Salu sente contra a palma da mão a maciez arrepiante do vestido de veludo de Chinita; o seu polegar toca na própria carne das costas da rapariga, bem no ângulo formado pelo profundo decote do vestido.

Que perfume é este que a envolve como uma aura? Ele não o pode identificar. Um aroma tropical, quente, que provoca na gente um desejo mole, meio sonolento e abandonado.

A orquestra toca um tango argentino. O bandônion marca o compasso arrastado. Salu e Chinita deslizam. Sob seus pés, o parquê é liso e rebrilhante como uma pista de gelo, E eles fazem figuras sinuosas, face, peito, ventre e coxas colados. O dedo polegar de Salu comprime forte­mente a carne das costas de Chinita.

— Vais ficar com a minha impressão digital... — diz ele de mansinho ao ouvido dela.

Chinita sorri mas sem entender. Digital, digital, di­gital... Deve ser alguma coisa de dedo, porque ao dizer estas palavras ele apertou o polegar com mais força.

— Tu te lembras daquele verso de Guilherme de Almeida? — continua ele. — Entre nós não há espaço nem para um beijo...

Chinita sorri. Agora ela se sente à vontade porque conhece o poema. Levanta o rosto para o namorado e diz:

— Não haverá mesmo?

Aqui na sala, talvez não... Mas quando é que vamos dar uma volta no parque?

— Mais tarde... Tem paciência.

O passeio no parque é uma obsessão do espírito de Salu. Ele formou um plano doido... Nem é bem plano... Um pressentimento, um desejo... Sei lá! Qualquer coisa há de acontecer no parque, seja como for. Hoje ou nunca. Salu não mede conseqüências nem quer pensar nelas Só continua a existir para ele a necessidade clamorosa de amar Chinita, de possuir Chinita, integralmente, de ex­torquir com violência ou persuasão todo, todo o gozo que porventura exista em potência neste corpo, todo, todinho, de maneira a não deixar se possível nem um restinho pa­ra os que vierem depois... O parque... Foi a idéia que o acompanhou durante as últimas horas do dia. O parque, a sombra das árvores, o parque...

O último gemido do bandônion marca o fim do tango. Os pares se descolam. Ao afrouxar a pressão do abraço, Salu tem a impressão de que se separa duma parte de seu próprio corpo. E essa impressão corresponde a uma dor — dor física, de dilaceramento.

Os homens batem palmas. As conversas se animam.

— Então? — cicia Salu. — Passam dez das dez... Quando queres sair?

Chinita pensa um segundo.

— Às onze me espera na área do lado. Agora me dá licença que vou atender os convidados...

Com um sorriso, despede-se, faz meia volta e sai na direção do hall. Salu acompanha-a com o olhar e fica a imaginar a carne que há por baixo daquele vestido de ve­ludo negro, continuação do campo moreno que aparece numa amostra provocante do V do decote.

Exatamente no momento em que os Leitão Leiria chegam, a orquestra rompe a tocar uma marcha. D. Dodó faiscante e perfumada, cumprimenta os conhecidos. Vera, muito empertigada e esguia no seu vestido de lamê prateado, parece uma figura do Vogue — como diz Ar­mênio. Leitão Leiria sai do vestiário, arrumando a gravata e alisando depois com as palmas das mãos os cabelos ra­los por cima da calva rosada e polida.

Zé Maria vem ao encontro dos recém-chegados.

— Boa noite! Boa noite! Pensei que não queriam vir à festa porque era em casa de pobre!

Solta uma risada.

Os Leitão Leiria respondem ao cumprimento. Casa de pobre? Oh! mesmo que fosse. Todos os homens são iguais. O que se olha não é o dinheiro mas sim a quali­dade das criaturas. Que patife! — pensa Leitão Leiria com uma raivazinha fina mal contida. D. Dodó olha para o grande lustre do hall e lamenta que tanto dinheiro te­nha sido empregado em coisas tão inúteis. Se em vez de comprar estas bugigangas pretensiosas o coronel desse o dinheiro às Damas Piedosas, ao asilo, à igreja... Mas imediatamente lhe vem à mente o que Teotônio lhe disse: Zé Maria vai fazer um donativo de 25:000$0000 às obras da Catedral. Mas longe de gerar simpatia pelo doador, a lembrança cria na piedosa senhora uma espécie de ressen­timento que é quase inveja.

— Façam o favor de passar! Façam o favor.

Zé Maria vai abrindo caminho. Chinita vem ao en­contro da amiga. Vera estende os braços. Beijam-se.

— Vem botar pó... não queres? — convida Chinita.

Sobem a escada.

— Onde andará a Maria Luísa! Diabo — exclama Zé Maria, olhando para os lados.

— Não se incomode por minha causa — diz D. Dodó com ar evangélico.

Leitão Leiria analisa as pinturas. Que indignidade! Desenhos em cores berrantes, douraduras. Está se vendo por todos os lados o gosto do novo-rico. Os pensamentos lhe fervem na cabeça.

— Bebe um champanhazinho, patrício?

O dono da casa sorri, gentil.

— Aceito.

Uma frase esplêndida para um artigo irônico a res­peito dos novos-ricos canta no cérebro de Leitão Leiria: Por todos os cantos berliques e berloques, ouropéis e franjaduras, coruscações de ouro falso, mistura estontean­te de estilos, falta de gosto e delírio de ostentação. O co­ronel grita para um criado que vai passando: “Êpa moço! Me traga duas taças de champanha.” — O artigo conti­nua: E ele quer a todo custo introduzir-se na sociedade, fazer-se querido. Não tendo valor próprio...

— Não quer sentar um pouquinho?...

Leitão Leiria faz um aceno afirmativo de cabeça. Sentam-se. Zé Maria procura assunto. O outro prossegue na composição do artigo.



Não tendo valor próprio, veste-se do brilho ilusório dos enfeites que se compram e procura agradar com pre­sentes pródigos, festas e banquetes.

— Gosta da casa?

— Admirável — diz Leitão Leiria com gravidade. — Verdadeiramente admirável.

Como que movido por uma mola, Zé Maria ergue-se num salto:

— Que cabeça, a minha! Vou le mostrar a casa. Va­mos ver primeiro lá em riba...

Dirigem-se para a escada.

A música cessa. Palmas. O criado chega com as taças de champanha.

— Nós ia se esquecendo da beberrança — diz Zé Maria. Volta-se e estende a mão para a bandeja.

51

Maximiliano estende a mão ossuda para apanhar o copo de leite que a mulher lhe dá.



— Tome todo. O doutor mandou.

O quarto do tuberculoso está abafado. Anda no ar um cheiro pestilencial. O médico recomendou que dei­xasse a janela aberta, mas a mulher do doente não abre, supersticiosa. Dizem que, à noite, a morte entra pelas janelas abertas. Além disso foi uma corrente de ar que deixou o marido assim.

Maximiliano toma o leite. Um acesso de tosse o sacode e uma mancha de sangue vermelho e vivo tinge o leite.

A mulher olha, com cara impassível. Na porta, os dois filhos espiam. Que é que ela vai fazer? O doutor disse que não tem jeito. É questão de mais um dia menos um dia. Agora, o remédio é esperar. A morte chega, ele pára de tossir, pára de sofrer. O velório, o enterro e depois todos descansam. Pode ser que aconteça alguma coisa de bom. Mesmo que não aconteça não faz mal. Sem ele ali na cama. sofrendo e vendo miséria, vai ser melhor. Ela tem tempo de trabalhar, procurar uma ocupação, mandar os guris para a escola.

Maximiliano está agora com a cabeça atirada para trás, cansado do esforço. Sua respiração é estertorosa e difícil. A luz da vela alumia apenas uma parte do quarto. Ao redor da zona de luz, a sombra. Na sombra os ratos correm e conspiram. Faz calor. A rua hoje está alegre. O gramofone do vizinho continua a tocar. A mesma valsa.

Os olhos de Maximiliano se voltam para a porta. Ele diz alguma coisa, baixinho. A mulher se inclina para ou­vir. A voz dele é um sopro:

— Eles deviam estar dormindo...

Ela sai para ir levar os filhos para a cama.

Maximiliano compreende que o fim não tarda. E espera.

52

Os convidados cercam as mesas de doces e de frios, comem, falam, bebem, riem. Uma senhora gorda diz que tem raiva de quindins. Um rapazola de óculos confessa que adora o manjar-branco. Um senhor calvo mente que nun­ca comeu fios de ovos.



Há uma rapariga bochechuda que parece ter jurado demolir a pirâmide de croquetes. Outros preferem fazer alpinismo nas montanhas dos sanduíches. Os criados passam com garrafas de champanha envoltas em guarda­napos, e vão enchendo as taças.

Vera mastiga miudinho um sanduíche. Armênio olha para-a flor mais fina e dileta do seu jardim social e pede licença para se servir dum pepininho.

— Veja a evolução dos costumes sociais, senhorita Vera.

Vera continua a mastigar, muito distante do sanduí­che e do admirador. O seu pensamento voa para o salão. Chinita deve estar com aquele odioso Salu, confundidos os dois num abraço apertado, como no fundo da piscina. A idiota não compreende que está sendo arrastada, que fatalmente terá de se arrepender um dia...

Armênio continua a falar sobre a evolução dos cos­tumes sociais:

— Antigamente era feio misturar bailes com comi­das. Uma taça de champanha no máximo. Hoje, não... Fazem-se jantares-dançantes e é com a maior displicência que o cavalheiro e a dama deixam o salão para ir comer sanduíches e croquetes com a mão. A senhorita gosta deste costume? Gosta?

A pergunta insistente desperta Vera, que volta ao mundo dos frios e de Armênio:

— Gosto, mas prefiro os de patê.

— Não. Eu estou falando é dos costumes sociais modernos...

— Ah!


A orquestra toca um samba. Froide — pensa Armê­nio — absolument froide. Comme une statue de marbre... E mastiga o seu pepininho, desconsoladamente.

53

Noel e Fernanda conversam sentados nos degraus da escada. O corredor está sombrio. Lá dentro, D. Eudóxia, enrolada no seu xale, balança a sua cadeira. Enxerga-se pelo vão da porta um pedaço da rua e, lá do outro lado, a porta da casa da viúva Mendonça. De quando em quando passa alguém na calçada.



— Que é que achas? — pergunta Noel.

Os olhos de Fernanda brilham foscamente na som­bra.

— Acho que vai bem. Agora é ter força de vontade e continuar. Quantas páginas escreveste?

— Vinte. Foi um esforço danado. A todo o momento eu estava caindo em narrações autobiográficas, contando coisas da minha infância. De repente comecei a sentir que perdia o contato com a realidade e que eu já estava en­veredando para o domínio das fadas. O meu herói já não tinha consciência da sua miséria...

Fernanda sorri e pensa: “Quando a gente nunca sen­tiu a miséria, nem sequer a pode imaginar...”

Noel continua:

— Sentia-se feliz porque lhe davam paz para so­nhar. A miséria de sua casa era uma miséria dourada. Ele esquecia a mulher, os filhos e a falta de emprego e começava a recordar a infância com os seus mistérios e os seus contos de fada...

Pausa. Noel fala sem olhar para Fernanda. Lá de dentro vem o baque da cadeira de balanço e, de quando em quando, um pigarro de D. Eudóxia.

— E o mais alarmante — prossegue Noel — é que o meu homem se negava a reconhecer a sua condição de desempregado, relutava em ver a sua necessidade. Até a fome para ele era uma ilusão...

— Provavelmente escreveste depois dum almoço bem farto...

A voz é de Fernanda — pensa Noel, olhando para a porta — mas estas palavras não são parecidas com ela. Tão amargas, tão irônicas, tão áridas... Noel volta para a amiga o rosto doloroso.

— Desculpa — diz Fernanda — eu não quis te ma­goar...

A fisionomia dela está serena. Noel contempla-a demoradamente. A penumbra dá-lhe mais coragem de encarar a companheira.

O silêncio envolve-os como uma carícia inquietadora. Sim, o silêncio, porque o bam-bam cadenciado da ca­deira já se integrou no silêncio geral.

O romance fica esquecido. Noel sente que agora em todo o seu ser só existe lugar para um desejo — um desejo sem nome ainda, mas delicioso, envolvente, inquietantemente misterioso.

— Fernanda... — diz ele. E não reconhece o som da própria voz. — Hoje papai me ofereceu um lugar no escritório, talvez mesmo sociedade...

Pausa. Outra vez o silêncio. E depois a voz calma de Fernanda:

— E então?

Noel passa desamparadamente a mão pela cabeça, e vai dizendo, como se falasse para si mesmo:

— Custa, mas estou resolvido... Disse que aceita­va... Quem sabe? Talvez me adapte. Talvez vença e consiga ficar humano. Tu te lembras daquela história do Pinitim que tia Angélica me contava? Pinitim subiu para a lua num balão de S. João e se viu no meio dos selenitas... Não entendia a língua deles, tinha fome e não sabia pedir comida, tinha sede e não sabia pedir água. Ninguém entendia a fala de Pinitim. Pinitim foi ficando magro, com saudade do seu mundo...

— E então?

— Eu sou como Pinitim... Não entendo a língua do mundo dos homens. Os homens não entendem a língua do meu mundo. Não é horrível?

Noel sente no braço a pressão dos dedos de Fernanda.

— Mas Noel, o mundo de Pinitim existia ele voltou e de novo foi feliz. O teu mundo é uma ilusão. Não há volta possível. O teu país maravilhoso acabou com a in­fância e com tia Angélica. No dia em que te convenceres disto tu te adaptarás...

— Mas é que eu procuro convencer-me e não consi­go...

— Outra ilusão: não procuras. Alimentas a tua men­tira com outra mentira, com livros, música, coisas que te distanciam do mundo de verdade. É preciso que te convenças de que tia Angélica te contava histórias de mentira...

— Mas eram histórias bonitas...

— A vida é uma história bonita. Uma aventura, eu já te disse, em que a gente nunca sabe o que vai acontecer depois. Não é sensacional? A incerteza do amanhã, as diferenças de temperamento, os choques, os conflitos, o amor e até mesmo o ódio... Não é magnífico?

Noel se lembra do entusiasmo de Fernanda no tempo em que, no colégio, ela defendia as suas idéias.

Agora ela fala com a mesma convicção, a mesma firmeza, o mesmo calor. Fernanda continua:

— Talvez seja melhor escreveres a história da tua infância. Mas escreve e analisa, disseca, decompõe e ve­rás que tudo era mentira. Era um mundo de papel esta­nho e fogos de artifício. Talvez escrevendo consigas matar a mentira.

— Talvez...

— Aceita a proposta do teu pai. Será um passo na direção da vida e dos outros homens, do mundo de verdade. Pinitim precisa convencer-se de que na lua só há montanhas geladas.

Noel lança o derradeiro argumento:

— Mas para quê? Para quê?

Fernanda não se dá por vencida:

— Ora, olhando o mundo com os olhos humanos, estarás em condições de descobrir a beleza de certas pai­sagens que eu te quero mostrar.

— Tu?


— Eu. Levando-te pela mão como nos outros tem­pos... Então?

— Seria lindo!

Agora Noel sente na mão a morna pressão dos dedos da amiga.

54

Salu e Chinita caminham pelo parque de mãos dadas. Por cima das árvores se estendem os colares de lâmpadas coloridas. O céu está claro e estrelado, o ar parado e quen­te.



Pelos caminhos que cortam o parque em diversas direções passam pares de namorados, conversando baixo. Lá de dentro, escapando-se pelas janelas iluminadas, vêm a música da orquestra e o rumor das conversas.

Salu e Chinita seguem em silêncio.

— Linda noite — diz ele.

— Um pouco quente.

— Vai chover.

O silêncio cai de novo. Que diabo! — pensa ele. — Estou me comportando como um colegial. Esta bichinha me deixa tonto.

Continuam a andar, entram por uma alameda de pi­nheiros europeus cuja folhagem em forma de cone desce quase até o chão. As sombras das árvores sobre a relva dos canteiros são dum verde veludoso e escuro.

— Queres sentar? — perguntou Chinita:

— Não. Vamos pra mais longe. Quero te dizer uma coisa...

A voz dele é estrangulada. Chinita percebe a expres­são do rosto do namorado e fica presa dum temor agra­dável. Salu sente o pulsar de suas têmporas.

— Queres ver a vista lá do fundo?

Ele faz que sim com a cabeça. Seguem, contornam a casa e chegam ao fim do jardim que termina num gradil sobre um barranco. Lá embaixo brilham as luzes da cidade, que sobem para o céu noturno numa poeira de ouro. O rio é uma chapa de aço. Piscam luzes na silhueta negra das ilhas. No centro da cidade, dominando o casario, pisca um letreiro luminoso azul e vermelho. As torres da Igreja das Dores silhuetam-se contra o céu.

Salu e Chinita ficam olhando sem ver. Ela treme toda na antecipação de algo muito grande que ela pres­sente vai acontecer. E a sensação é tão estranha que ela diz, quase sem pensar:

— Que frio!

E se encolhe toda, muito embora sabendo que a noite está abafada e faz calor.

Salu aproxima-se dela por trás, passa os braços por baixo dos braços dela e, Segurando-lhe os seios no côncavo das mãos, puxa o corpo da moça contra o seu. Chinita se retorce toda, num desfalecimento, e deixa cair a cabeça para trás. Os lábios de ambos se procuram e se mordem. Ela se vai voltando aos poucos. Abraçam-se com violência, frente a frente. Os olhos de Salu procuram, rápidos... Entre o muro e o contraforte da piscina, num ângulo morto, há um canteiro de relva e o nicho formado pela folhagem dum pinheiro. Num segundo, Salu decide...

Como se dançassem, colados um ao outro, os dois deslizam tremulamente para o canteiro. Salu conduz a rapariga, manso. Mas quando pisam na relva, a suavidade se transforma em fúria.

Salu tomba Chinita, que deixa escapar um grito sem vontade:

— Não!

Mas ele continua. Ela sente contra as costas nuas a aspereza fresca da relva. Vai dizer novamente não, mas os lábios de Salu lhe esmagam na boca a negação fraca. Chinita se entrega. Por uma falha na folhagem do arvo­redo ela vê duma maneira quase inconsciente uma nesga do céu onde brilha uma estrelinha.



De braços inertes, Chinita está num abandono abso­luto. A cabeça de Salu cresce diante de seus olhos e, interpondo-se entre eles e o pedaço de céu, esconde a es­trelinha cintilante.

Ás três horas da madrugada saem os últimos con­vidados.

Apagam-se as grandes luzes do parque. Agora só se ouve o rumor dos criados que fecham portas e janelas.

— Que festão! — exclama Zé Maria descalçando os sapatos e desabotoando o colarinho.

Sentada na sua poltrona, D. Maria Luísa mantém-se ainda em silêncio, olhando para o salão iluminado e vazio como quem avalia os estragos dum terremoto. Mais de cinco contos de réis postos fora. Talvez oito. Talvez mesmo dez. Para que, Santo Deus, para quê?

Zé Maria espreguiça-se e boceja:

— Onde está a Chinita?

Maria Luísa encolhe os ombros. Sei lá!

— E o maroto do Manuel? Por que não ficou pra festa?

A voz de D. Maria Luísa parece que está anunciando uma catástrofe:

— Decerto foi ver as mulheres à-toa. É a vida dele. Parece que não mora aqui. Quando amanhece, ele volta, para dormir até as quatro...

Passam-se os minutos. Os criados apagam as luzes e se retiram.

— Vamos embora? — convida Zé Maria. E sobe pa­ra o quarto descalço, com os sapatos na mão.

D. Maria Luísa fica no escuro. Assim é melhor. Ela não vê os vestígios do desperdício, não enxerga os espe­lhos, os lustres, as douraduras, os jarrões...

Jacarecanga. Zé Maria está jogando escova com o vizinho. Manuel foi para o bilhar com os amigos. Chinita passeia na frente da casa e anda de namoro com o juiz distrital, bom moço, inteligente e muito sério. O pé de madressilva do muro está florido, seu aroma enche a casa toda, misturando-se com o cheiro de açúcar queimado que vem da cozinha. Paz. Paz. Paz.

D. Maria Luísa baixa a cabeça e desata a chorar baixinho.

A chuva lá fora começa a cair violenta, em pingos grossos.

terça-feira

55

— Que dia brabo! — exclama Fiorello para Clari­mundo, que passa sob o aguaceiro, de guarda-chuva aber­to.



O professor faz alto.

— Neste século, seu Fiorello, até o tempo anda maluco. Ontem, céu limpo. Hoje, esta chuva...

— Não quer entrar?

— Não, obrigado. São quase oito. Tenho de ir para o colégio. Até logo.

— Até logo, professore.

Clarimundo retoma a marcha. A chuva cai forte desenhando nas pedras da calçada uma esquisita flora de respingos. Uma criança sai correndo do vão duma porta, com um barquinho de papel na mão, agacha-se na sar­jeta, larga o barco na correnteza e volta para casa corren­do. Encolhido mas indiferente à chuva, Clarimundo con­tinua a caminhar.

O que convém frisar é o absurdo do infinito pessoal na nossa língua. Pois ora muito bem! O francês tem infi­nito pessoal? Não. O inglês tem? Também não. No entanto o infinito pessoal existe, é preciso acatá-lo, em­pregá-lo com correção. Pois ora muito bem!

Clarimundo vai compondo mentalmente a sua lição.

No rio encapelado da sarjeta navegam cascas de laranja, gravetos, folhas secas, pedaços de papel...

Como seu guarda-chuva está furado, o professor sente no rosto os respingos frios. Não tem, entretanto, consciência do que está acontecendo. Está de guarda-chuva, logo é impossível que a chuva lhe esteja batendo no rosto.

Com o seu passo miúdo ele caminha sempre. Na esquina, pára junto do poste e fica à espera do bonde.

Os trilhos se espicham rua afora, a água escorre-lhes pelos sulcos. Um bonde se aproxima. Clarimundo dá dois passos e ergue a mão esquerda. Com um ranger de freios o elétrico estaca.

Durante alguns minutos Clarimundo luta para fe­char o guarda-chuva mas a mola não obedece. Desespera­do, rosto em fogo, o professor sobe para a plataforma, ficando com a copa do guarda-chuva para fora. O bonde põe-se em movimento. Clarimundo, que tem ambas as mãos ocupadas com o maldito guarda-chuva, perde o equilíbrio e vai de encontro ao motorneiro, que o ampara.

— Desculpe — diz o homem de Sírio, embaraçado. — Esta coisa emperrou.

E, segurando o balaústre com uma das mãos, faz movimentos incríveis com a outra, procurando fechar o guarda-chuva.

Depois de alguns segundos de luta, consegue fazer funcionar a mola. Suspira, sorri para o motorneiro um acanhado sorriso de quem se desculpa e vai sentar-se num banco. Vermelho, ofegante do esforço, coração ba­tendo, como se acabasse de ser vítima dum desastre.

Vejam só o que me aconteceu... — pensa ele. E fica ruminando o incidente. — Que estupidez!

O bonde corre. A chuva continua a cair. As caras dos passageiros são cinzentas e flácidas. Cheiro de roupas e de couro molhados. O condutor aproxima-se para cobrar a passagem. Pára na frente de Clarimundo, que ainda pensa no “desastre”. Ora essa é muito boa! Que estupidez!

— A passagem, moço!

Clarimundo procura o dinheiro atarantado. Bolsos do colete: vazios. Bolsos do casaco, de dentro e de fora: vazios. O constrangimento de Clarimundo aumenta. Se­nhor! Quando um homem sai de casa com o pé esquer­do... O condutor espera, com relativa paciência. Clari­mundo se apalpa, revira os bolsos, sorri amarelo... E por fim, com uma sensação de alívio, encontra no fundo do bolso das calças uma moeda de mil-réis. Recebe o troco e fica todo encolhido no seu banco, sem ousar olhar para os lados, com a certeza dolorosa de que toda a gente no bonde viu o seu ridículo, o seu embaraço.

Ao desembarcar sai tão estonteado, que se esquece de abrir o guarda-chuva. À porta do colégio esfrega os pés no capacho e olha o relógio. Atrasado cinco minutos. O contínuo, um mulato de dentes de ouro, cumprimenta:

— Bom dia!

Clarimundo tira o sobretudo, as galochas e o chapéu. O mulato se aproxima para ajudá-lo.

— Aconteceram-me dois desastres no bonde... — começa a explicar o professor.

E conta sua odisséia.

56

O frio e a umidade se vão aos poucos infiltrando na casa e no corpo de João Benévolo e de sua gente. Come­çam a pingar goteiras no teto da varanda. Laurentina distribui pelo chão bacias de folha e caçarolas para apa­rar a água.



Encolhido de frio, João Benévolo se acocora em cima duma cadeira.

— Que casa horrível! — diz. E acrescenta, já de antemão convencido de que nunca há de fazer o que vai dizer: — Vou reclamar pra viúva. É um abuso.

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