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Caminhos cruzados erico verissimo


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Uma voz estranha de súbito dissipa o paraíso de Noel:

— Eu estive pensando...

Honorato cala-se por um instante para engolir uma garfada de alimento. Depois continua:

Estive pensando, meu filho, que se tu quises­ses...

Noel espera. Virgínia olha de um para outro. Hono­rato engole e prossegue:

— ...se tu quisesses trabalhar comigo, eu te faria meu sócio.

Ah! Virgínia solta uma risadinha aspirada de cínico de teatro de aldeia. Noel sem compreender bem a proposta do pai lança-lhe um olhar vazio. Honorato explica:

— Tu já descobriste — (Trincha mais um pedaço de carne) — ...que não tens vocação para a advoca­cia... — (Tira com a faca um grão de arroz que lhe caiu sobre a manga do casaco) — Precisas arranjar... uma ocupação... Ora, um dia, quando eu faltar, tu ficas tomando conta do negócio... — (Uma garfada de comi­da) — Que achas?

Noel brinca outra vez com a colher, embaraçado. O rapaz de cabeça oblonga, no côncavo de prata, tem no rosto uma grotesca expressão de dúvida.

Virgínia intervém:

— Pra que é que um homem estuda dez anos? Pra que é que tira um diploma? Pra ser bodegueiro como o pai, que nunca aprendeu nada além das quatro operações?

— Ora, Gigina! — exclama Honorato, quase engas­gado. Mas o seu protesto é convencional: no fundo as alfinetadas da mulher não o ferem. Ele está habituado...

— Vais botar o teu diploma no escritório, junto com os sacos de feijão e arroz? — pergunta Virgínia com sar­casmo.

— Ora Gigina!

Honorato cruza os talheres e empurra o prato.

— Eu estou falando sério, quero arrumar a vida do menino.

— Oh! o pai exemplar! Muito bem! Querubina? — Virgínia se volta para a criada com o rosto resplendente. — Telefona pro jornal e diz que eu tenho uma notícia muito boa pra eles: Pai que se interessa pelo filho. Uma cena comovente.

Desata a rir.

Ela precisa achá-los ridículos e aborrecíveis. Precisa achar uma justificativa para os seus sentimentos para com Alcides.

Levanta-se e vai até o quarto tomar uma pérola Juventus.

Honorato come a sobremesa. Noel olha ainda para a cabeça oblonga no côncavo da colher. Mas o que ele vê está em sua memória: a face trigueira de Fernanda, ani­mada por um sorriso de confiança na vida.

— Papai, eu acho que vou aceitar a sua proposta.

Mal termina de pronunciar estas palavras, admira-se da própria audácia. Parece que outro falou por ele. Honorato sorri.

— Pois é. Ficas no escritório. Serviço muito bom. Correspondência, tal e coisa... Vais gostar. — Bate no ombro do filho. — Muito bem. Depois conversaremos.

Noel já está de novo na companhia de Fernanda, numa sala tocada pelo luar. Lá fora os grilos cantam. Como é morna e macia a mão dela e que gosto estranho têm os seus lábios...

A emoção é tão forte que Noel se levanta brusco e vai até a janela.

40

— Não leias depois do almoço que faz mal, — aconselha Laurentina ao marido, que está com a cabeça enterrada num livro.



João Benévolo mal e mal ergue os olhos.

— Almoço?

A sua pergunta exprime admiração, pois comeram tão pouco... O restaurante mandou um pingo de comida por dois mil-réis.

João Benévolo torna a focar a atenção no livro. Laurentina vai atender o filho que chora no quarto. O gramofone do vizinho insiste na mesma valsa de todos os dias. Ouve-se o estalar das asas das pombas de D. Veva.

Napoleãozinho chora de dor no estômago, choro manso, fraco, tremido. As lágrimas lhe correm pelo rosto magro. Laurentina dá ao filho um pouco dágua com gotas de elixir paregórico.

O relógio bate uma hora e o som fica ecoando pela casa. Como que despertada pelo ruído, Tina acorda para odiar o marido. Odiar com um ódio calmo, frio, feito de exasperação, e de recriminações recalcadas. O gemido do relógio de ordinário lhe dá vontade de chorar. No entanto agora, ao ouvi-lo, tem ímpetos é de ir até a sala arrancar o livro da mão de Janjoca e mandá-lo para a rua arranjar emprego a todo o custo. A apatia do marido a exaspera. Ele não quer, não tem vontade. No fundo prefere ficar ali lendo os seus romances, por pura preguiça. O dinheiro acabou. Restam os últimos nove mil-réis do empréstimo de Ponciano. Dentro de dois dias não haverá em casa nem mais um tostão. O leiteiro aparece com a conta, dia sim dia não. A viúva Mendonça desce todos os dias para cobrar o aluguel e já anda falando em despejo... Ela não tem mais um vestido que preste, o Napoleão não tem mais calçado para ir ao colégio. Se ela tivesse coragem, saía pa­ra a rua a procurar alguma coisa... No entanto, a todas essas, João Benévolo está na varanda, calmo, lendo, co­mo se tudo corresse bem. Não sente a miséria. Às vezes até assobia. Ou ri. Hoje de manhã, botou seis mil-réis fora num livro... Seis mil-réis; comida para dois dias! E agora está lendo o livro tranqüilamente, como se não estivesse há seis meses sem emprego, como se a família vivesse na fartura...

João Benévolo encontra-se no albergue “Almirante Benbow” disfarçado de bucaneiro. Pela janela se avista a baía. O mar é verde; as montanhas, azuis: (A paisagem na mente de João Benévolo é um desenho simplista colo­rido por uma criança). O capitão anda caminhando pelos arrecifes, de luneta na mão, esperando o misterioso ma­rinheiro da perna de pau. É como a história ainda não se esboçou com nitidez, como ainda não se revelou o herói, João Benévolo se introduz nela como uma persona­gem clandestina que olha as pessoas e as coisas, preparado para, dum momento para outro, meter-se na pele do mocinho. E enquanto o perna de pau não aparece, João Benévolo (ou antes, o misterioso bucaneiro) come toicinho com ovos (não é pequena a fome que ele sente realmente) e bebe rum. Bate-lhe na cara o vento que vem do mar, e ele sente cheiro de maresia e gosto de rum, embora em toda a sua vida nunca tenha visto o mar nem provado rum.

Os minutos se escoam, marcados pelo tique-taque do relógio velho. Os sons da valsinha que o gramofone do vizinho toca penetram mansamente no mundo dos bucaneiros e piratas, misturando-se com o bramido das ondas que se quebram contra os penhascos.

Só tenho uma coisa a lhe dizer replicou o doutor é que se você continuar a beber dessa ma­neira muito breve o mundo estará livre dum patife!

A cólera do velho bandido foi terrível. Ergueu-se dum salto, de navalha em punho...

— Janjoca, faz alguma coisa.

A voz de Laurentina puxa João Benévolo dos domí­nios da aventura para projetá-lo na triste realidade. Contrariado por ser interrompido num momento tão crí­tico, ele levanta os olhos com uma raiva surda.

Tina ali está na sua frente, de braços caídos como a. estátua mesma do desânimo, imagem do aborrecimento. Suas pálpebras permanecem caídas enquanto ela vai pronunciando as palavras uma a uma, arrastadamente:

— Que é que vai ser de nós? Faz alguma coisa...

João Benévolo fecha o livro e começa a assobiar o Carnaval de Veneza. O retrato de Napoleãozinho Bonapar­te está impassível na parede: o Imperador olha o campo de batalha, embriagado de glória; não sente fome, nem sede, não tem mulher e filho para sustentar, não precisa mudar roupa. Que felizardo, esse Napoleão Bonaparte!

Laurentina continua:

— Por que não vais falar com o teu ex-patrão?

— Não adianta...

A voz lamentosa insiste:

— Conta pra ele como a gente vive...

— Não tenho jeito...

— Pode ser que ele te dê algum lugarzinho... Ou uma recomendação...

João Benévolo quisera sumir-se, transformar-se nu­ma mosca e sair voando pela janela. Quisera ser uma mesa, uma cadeira, um armário, um rato, — pelo menos agora, enquanto a voz enjoativa realeja esta canção la­murienta de miséria.

— Vai, João Benévolo, amanhã o dinheiro acaba... Queres que a gente viva à custa do seu Ponciano?

João Benévolo estremece ao ouvir o nome do outro.

— Isso não!

Mas a explosão é fraca. Depois da chama, gelo. Mal a última sílaba do nome de Ponciano se esvai no ar, João Benévolo esquece o ressentimento, o rival, a miséria. Neste momento ele só tem uma necessidade imperiosa: livrar-se da mulher.

— Está bem... — concorda fracamente.

Laurentina torna a fechar os olhos:

— Mas vai mesmo... Vai, pede, pode ser que ele arranje.

— Pois sim.

— Mas vai agora!

João Benévolo olha para o relógio:

— Uma e dez. Ainda é cedo. Ele só chega às três no escritório...

Laurentina suspira e torna ao quarto de dormir onde o Poleãozinho está lendo um número atrasado do “Tico-Tico”.

Muito preocupado com a sorte do doutor, João Bené­volo volta à novela.

O doutor nem pestanejou. Os olhos de ambos se cruzaram em desafio, mas o capitão logo baixou os seus e guardou a navalha; rosnando como um cão batido, voltou a sentar-se.

João Benévolo suspira, aliviado.

Ao menos no livro as coisas correm como a gente deseja.

41

Enrolada no xale (apesar do calor da hora) D. Eu­dóxia está sentada na sua velha cadeira de balanço que, ao oscilar para a frente e para trás, produz um ruído surdo.



Fernanda termina de lavar os pratos do almoço. Pedrinho, deitado na sua cama, lê uma velha brochura.

Fernanda pensa com desprazer no serviço que vai ter esta tarde no escritório: cartas pedindo o resgate de títulos, comunicações a bancos, memorandos a fregueses do interior... A chapa de sempre. Depois, as enormes minutas de Leitão Leiria, cheias de adjetivos complicados, pretensiosas e ocas. E quando ele a manda datilografar os seus artigos políticos para o jornal? Santo Deus!

A água escorre da torneira para a pia e, enquanto esfrega o último prato, Fernanda imagina como seria se ela conseguisse uma nomeação de professora. Uma es­cola num subúrbio, o convívio com as crianças, o quadro-negro, os mapas, as carinhas de todos os feitios, morenas, brancas, pálidas, coradas, gordas, magras, marotas, tris­tonhas, insolentes, assustadas. .. E o prazer de ensinar, sentar-se na classe com o aluno, e como irmã mais velha, ir lhe dizendo coisas, como quem conta uma história, sem carrancas, sem gritos, com amor, muito amor... Como ela adora as crianças e como seria bom lidar com elas...

Começa a enxugar o prato, perdida nos seus pensa­mentos. E quando imagina de novo as caras dos alunos, surpreende-se a descobrir no meio delas o Noel do passa­do, o Noel que ela levava para a escola pela mão. Mas o Noel menino que ela vê agora tem muito, muito do Noel homem com quem ela esteve ontem em Ipanema.

A voz de D. Eudóxia vem da varanda:

— Não gastes muita água. O dono da casa já recla­mou.

Sem responder, Fernanda depõe o prato em cima da mesa e começa a enxugar as mãos.

Agora a aula se sumiu e só lhe ficou Noel no pensa­mento. E por mais que ela queira esconder, por mais que se queira iludir, a verdade se lhe revela mais uma vez.

E essa realidade que ela se tem esforçado sempre por não reconhecer, o sentimento que tem procurado abafar com escusas mentirosas agora vem à superfície, nesta hora morna e calada de repouso.

Não é possível iludir-se mais. Ela ama Noel. (Mesmo mentalmente a palavra amor tem um som equívoco, qua­se ridículo. Se inventassem outra para substituir o termo tão batido?) Seria bom que ambos pudessem seguir num prolongamento daqueles dias da infância, como dois bons amigos, sempre juntos... Afinal, por que ela não há de ter direito também a um pouco de felicidade como todo o mundo?

— Fernanda! — Outra vez a voz da mãe. — Ainda não terminaste esse serviço?

E o baque surdo e ritmado da cadeira de balanço.

— Já está pronto! Já está pronto, dona Rabugenta!

Volta aos seus pensamentos. Não, é absurdo. As linhas paralelas jamais se encontram. (Lembranças da escola de D. Eufrásia Rojão que dizia com sua voz metáli­ca: “Linhas paralelas são linhas retas eqüidistantes que por mais que se prolonguem nunca se encontram.”) Ela e Noel pertencem a mundos diferentes. Os pais dele se oporiam ao casamento. Ele mesmo não teria coragem para tanto... Tão desamparado, tão sem vontade... E, além do mais, quem garante que ele a ame? Não. É melhor pensar nas cartas da firma. Acusamos o recebimento do seu estimado favor...

Fernanda desce as mangas do vestido e vai apanhar o seu livro, para aproveitar os minutos que lhe restam.

Pedrinho largou a novela. Não pôde ler nem duas linhas: sempre a imagem de Cacilda a persegui-lo a todo instante. Não consegue esquecer a rapariga. Pensa nela a todas as horas. Engana-se nas contas, erra nos talões, o gerente da loja já reclamou. Mas é inútil... A idéia de que Cacilda vive num beco imundo, na janela, oferecendo-se a todos os homens que passam, lhe é insuportável. No entanto Cacilda é uma boa moça. Por que será que nunca conta nada do seu passado? Parece tão conformada, tão feliz... Outras contam histórias... “Eu era noiva, meu noivo me fez mal, meu pai me botou para fora de casa e eu caí na vida.” Mas Cacilda não. É um mistério. Nunca se queixa... Ah! Se ele fosse mais velho, tivesse um bom emprego, tirava Cacilda do beco, levava-a para uma casi­nha limpa e quieta, onde os dois vivessem felizes.

Pedrinho olha para o teto, onde uma aranha cinzen­ta procura atrair uma mosca. A cena é divertida. Mas dentro de poucos segundos Pedrinho esquece mosca e ara­nha para pensar de novo em Cacilda. Tem a impressão de que está vendo aqueles olhos verdes, sentindo o contato daquela pele, o bafo quente daquela boca, ouvindo a voz macia dizer: “Olá, nego!”

Remexe-se na cama.

Mas é uma loucura. Os amigos já descobriram a paixão e fazem troça dele. E se mamãe descobrir? E se Fernanda desconfiar?

Pedrinho se levanta.

Mas enfim Cacilda é ser humano como os outros. Ele tem visto muita mulher casada inferior a ela. Que diabo! Paixão é coisa que pode acontecer a qualquer um...

Abre a gaveta da mesinha de cabeceira. Sacode a caixa de charuto. Aqui está o dinheiro com que vai com­prar um colar Sloper para ela. Mais dois mil-réis, e fica­rão completos os seis...

Na janela do alto da casa fronteira aparece um vulto: o professor.

A voz de D. Eudóxia:

— Pedrinho! Fernanda! Está na hora de vocês saí­rem para o emprego. O professor já apareceu na janela.

Pedrinho veste o casaco com preguiça. Fernanda larga do livro e vai empoar o rosto.

O ruído surdo e ritmado da cadeira de balanço continua.

42

O professor olha a rua.



Na porta da sua sapataria, Fiorello descasca uma laranja. Um cachorro magro e pelado senta-se-lhe aos pés e ergue o focinho para o italiano, pedinchão. Um automóvel passa. Uma criança de dois anos, muito crespa, corre até a sarjeta, com as calças caídas e a cara lam­buzada de caldo de feijão, e fica sentada à beira da calça­da, muito quieta e atenta, como se estivesse assistindo a um espetáculo interessante. Na frente do seu mercadinho, o árabe Said Maluf conversa animadamente com um ambulante. De sua janela, o Cap. Mota grita para o vizi­nho:

— Lindo veranico de maio!

E do outro lado vem a resposta:

— É verdade! Que Deus o conserve!

Clarimundo olha para a casa fronteira. A velha de preto está na cadeira de balanço, que oscila como um berço. A moça bonita e o rapaz barulhento estão descendo a escada, saem para a calçada e se vão, rua afora. O gra­mofone do outro vizinho hoje felizmente não está tocando. Mas lá está ele beijando os filhos... decerto vai sair também. ‘(Clarimundo tem vaga idéia de que os outros homens também precisam trabalhar, têm os seus empre­gos, com horário fixo, etc... )

D. Veva aparece à janela e sacode para fora um tapete que desprende uma nuvem de poeira que a luz incendeia. No quintal um cachorro atropela as galinhas.

Clarimundo palita os dentes com metódica pachorra. Hoje precisa insistir com os rapazes a respeito da pro­núncia de to have. Em sua maioria, não pronunciam o h aspirado. Ora, isto é um defeito horrível. Não convém es­crever a pronúncia figurada, pois quando os rapazes forem grafar os vocábulos ingleses correm o risco de escrever a pronúncia figurada — o que é outro desastre mui grave. Porque o ensaio das línguas hoje em dia...

Clarimundo perde-se em divagações.

Uma criança começa a chorar nas vizinhanças de sua janela. Um trem apita, longe. Uma nuvem muito grande esconde o sol, lançando sobre a Travessa das Acácias sua tênue sombra.

Clarimundo pensa no homem de Sírio.

— Vai ser uma obra muito interessante! — garante a si mesmo.

E sorri.


43

O telefone do hall tilinta. Vera toma o receptor.

— Alô! Quem fala?

E a voz, do outro lado do fio:

— Aqui é a Chinita! É a Vera?

O rosto de Vera se ilumina:

— Querida! Como vais?

Imagina a cara viva da outra: os olhos negros, a franja lustrosa de chinesa, o nariz petulante, os lábios polpudos.

— Vou bem. Olha, Vera, tu podias vir até aqui?

— Agora?


— Agora. Estamos arrumando a casa pra de noite. Eu queria que tu nos ajudasses... nos desses idéias. Esta­mos pregando os quadros... Bá! Que trabalho! Quando chegar a hora da festa acho que estou morta... Podes vir?

Vera pensa um instante.

— Está bem. Vou em seguida.

— Vou te esperar. Adeusinho.

— Adeusinho. Toma!

Vera estrala um beijo sonoro no fone. Chinita res­ponde com uma risada. A filha de D. Dodó entra correndo no quarto.

Grita para baixo:

— Rita, mande o Jacinto tirar o auto. — E para a mãe, que está no living: — Mamãe, vou até a casa da Chinita.

D. Dodó ergue os olhos do livro que está lendo (A Vida de Santa Teresinha) e pergunta:

— Vais demorar?

Mas Vera já está fechada no quarto. D. Dodó baixa os olhos. Passam-se cinco minutos. Ouve-se o ruído do motor do Chrysler, na frente da casa. Vera desce a escada, apressada:

— Adeus!


— Manda logo o automóvel, minha filha, que eu tenho muitas obrigações para hoje.

D. Dodó ouve a batida da porta da rua e pouco de­pois o ronco do motor do carro, que arranca.

Fecha o livro por um instante e fica a pensar nos compromissos do dia. Visitar dois dos seus pobrezinhos naquela rua de Navegantes. Falar com a secretária da Sociedade das Damas Piedosas a respeito das notícias para a próxima quermesse. Passar pela casa das Monteiro para avisar que a distribuição de cobertores no Asilo ficou transferida para domingo que vem. Ir à casa da senhora do Dr. Martins combinar o dia da quermesse. Passar pela loja, dar um beijo no Teotônio (detalhes indispensáveis) e levar mais um vidro de Nuit de Noel. Ah! E também comprar umas fitinhas para botar nas camisas de dormir de Vera. (Essa menina não cuida da roupa dela! Nunca vi tamanho indiferentismo. Ai!)

Com um suspiro, D. Dodó torna a abrir o livro.



Podia em tais circunstâncias alimentar esperança de ser admitida de pronto no Carmelo? Para fazer-me crescer em virtude num momento, fazia-se mister um milagrezinho, e este milagre tão desejado fê-lo Deus no dia inolvidável, 25 de dezembro de 1886. Nessa festa do Natal, nessa noite abençoada, Jesus, meigo Infante recém-nascido, de uma hora para ou­tra mudou as trevas da minha alma em catadupas de luz. Fazendo-se fraco e...

D. Dodó esquece o livro e pensa no seu milagre. Foi há dez anos. Teotônio tinha caído de cama com uma pneumonia dupla. Três médicos à cabeceira: dois o desenganavam, só um tinha um restinho de esperança. Um dia ela foi ajoelhar-se aos pés da imagem de Santa Teresinha e pediu: Se ele sarar, eu prometo ficar mais religiosa do que sou e só cuidar da Santa Madre Igreja e da caridade. Amém. No dia seguinte Teotônio melhorou. A febre bai­xou, os médicos criaram alma nova. Explicavam: “O organismo reagiu.” Mas secretamente ela sabia que não tinha sido o organismo e sim a vontade de Deus Nosso Senhor e a mediação de Santa Teresinha. Passaram-se os dias e Teotônio foi melhorando sempre. Veio a convales­cença. E quando ele ficou em condições de andar, ela o levou à Igreja e contou-lhe o milagre. (Dodó ainda se re­corda das lágrimas que brotaram nos olhos do marido.) E nos anos que se seguiram ambos se dedicaram de corpo e alma à Igreja e à Pobreza. Ela, com o auxílio moral e material do marido, organizou festas de benefi­cência, deu dinheiro para hospitais, asilos, creches...

Sempre que pensa no seu milagre, D. Dodó sente um amolecimento interior e tem vontade de chorar. De­pois, o silêncio da casa e da hora, e a impressão funda que lhe causa esta vida de Santa Teresinha, tão bonita e tão santa...

Reclina-se na cadeira e, seguindo um conselho que sempre lhe dá Monsenhor Gross, procura pelo pensamento aproximar-se de Santa Teresinha. Com os olhos do es­pírito vê a noviça de quinze anos, o Carmelo, as vigílias, as orações, a...

A campainha da porta corta-lhe a meditação. D. Dodó tem um sobressalto. A criada vai ver quem é. Rumor de vozes.

— O senhor faça o favor de passar...

D. Dodó escuta, curiosa. A esta hora... quem será?

A criada aparece:

— Um homem do jornal. Quer falar com a senhora. Mandei entrar pra sala.

D. Dodó se levanta; azafamada, põe o livro em cima da mesa, compõe a fisionomia, fabrica um sorriso e entra na sala.

O homem, que está sentado, ergue-se. Uma cabeça pontuda e calva, nariz vermelho, óculos, roupa surrada, sorriso desfalcado de dentes.

— D. Dodó, desculpe o incômodo que lhe dou...

— Seu Marcondes, que prazer!

Durante a sua longa gestão à frente de sociedades beneficentes, D. Dodó tem tido inúmeras ocasiões de tra­tar com seu Marcondes. É da Gazeta. Muito serviçal, faz notícias elogiosas. E depois, é um crente, toma comunhão, vai à missa diariamente, um verdadeiro católico!

Apertam-se as mãos com cordialidade.

— Sente-se, por favor.

Marcondes obedece.

— A que devo esta honra?... — começa D. Dodó.

Marcondes tosse, entorta a cabeça e solta a voz vis­cosa :

— Não vê que nós, jornalistas, somos muito indis­cretos... — Sorriso. Olhinhos brilhantes. — E sabemos que uma certa pessoa muito querida dos pobrezinhos e da nossa alta sociedade está fazendo anos depois de amanhã.

D. Dodó procura fazer a cara mais surpreendida deste mundo. De que se trata? Palavra que não compreende... Não tem a menor idéia. Marcondes sorri.

— Então não sabe? Ora não diga, D. Dodó. Quem é a figura mais querida dos pobrezinhos? Quem é uma das damas mais distintas da nossa sociedade que faz anos depois de amanhã?

— Mas... mas... o...

Marcondes sacode a cabeça oblonga; a sua calva reluz.

— Pois então eu digo. É a muito virtuosa esposa do nosso digníssimo amigo e colaborador Sr. Teotônio Leitão Leiria.

E solta uma risadinha guinchada, contente consigo mesmo.

— Oh! Esse seu Marcondes sempre com as suas gracinhas...

D. Dodó sorri com modéstia. Curto silêncio. Outra vez a voz viscosa:

— Pois, D. Dodó, a Gazeta quer entrevistá-la para a edição de quarta-feira. Já temos o seu clichê. Quer dar-nos a honra?

— Seu Marcondes, mas eu fico muito acanhada...

D. Dodó declara-se a mais insignificante das criatu­ras que Deus botou no mundo, indigna de desatar as sandálias dos mais humildes... Mas não, senhora! A quem devemos os nossos asilos, as nossas festas de cari­dade mais bonitas?... Não senhora!

Por fim:


— Para facilitar — diz Marcondes — eu trago um questionário.

Tira do bolso um papel.

— Para quando quer as respostas?

— Se possível, para amanhã à noitinha, o mais tardar. Pode ser? — D. Dodó sacode a cabeça: sim, com a graça do Altíssimo. — Bom!

Conversam mais alguns minutos. Por fim, o repórter, “não querendo importunar mais”, levanta-se, com cumpri­mentos e mesuras. D. Dodó acompanha-o até a porta.

Despedida, protestos de admiração e amizade. E Marcondes se vai, de chapéu-carteira à cabeça, caminhan­do com os pés espalhados como Charlie Chaplin, o guarda-chuva pendente do braço.

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