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Caminhos cruzados erico verissimo


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— Como vão de dinheiro?

— Mal.


— É o diabo.

Novo suspiro. Ponciano continua:

— Bom, não sou rico, mas posso ajudar...

Laurentina fez um gesto de protesto:

— Não se incomode, seu Ponciano, ora, havia de ter graça.

— Faço questã...

Ponciano se ergue e põe em cima da mesa uma nota de vinte mil-réis e torna a sentar-se.

— Bote esse dinheiro no bolso — pede Laurentina. — Decerto o Janjoca arranja emprego hoje e no fim do mês já tem dinheiro — acrescenta, sem nenhuma convic­ção.

— Não. Faço questã.

Fita na mulher seus olhinhos frios.

Outra vez o peso do silêncio acentuando o tique-taque do relógio. Os pensamentos correm na cabeça de Poncia­no. Ele despe Laurentina. O corpo dela não deve ser tão rijo nem tão bem-feito como era há dez anos... Mas ela ainda é Laurentina. E há de ceder um dia. Pode levar tempo, não importa, mas há de ceder. Ele não esperou dez anos? Pode esperar mais dez dias, dez semanas, dez meses. É como uma cobra procurando hipnotizar o pinto. Parada, de longe... A cobra não se perturba. Sabe que o bicho há de vir vindo de mansinho para o seu papo, é questão apenas de tempo.

Ruído de passos no corredor. Ponciano olha para o relógio. — Onze e quinze. Vou andando.

Laurentina não diz nada.

O homem se ergue e pega o chapéu. A porta se abre e João Benévolo entra. Fica contrariado por encontrar ainda Ponciano. Tem ímpetos de dizer-lhe um nome feio, de dar-lhe um sopapo. Mas Ponciano é grande e musculo­so. A raiva ferve dentro do peito de João Benévolo mas sai logo pela boca transformada num assobio. Carnaval de Veneza.

Ponciano explica:

— Não repare, eu já ia saindo.

Despede-se e vai embora. Seus passos se perdem longe, no silêncio da rua.

— Então? — Laurentina ergue os olhos para o marido numa interrogação ansiosa.

— Nada.

O dinheiro em cima da mesa...



— Donde veio aquele dinheiro?

Com o beiço esticado, Laurentina faz um sinal na direção da rua.

— Que será que ele quer? Quais serão as tenções desse sujeito? — pergunta João Benévolo.

Tina encolhe os ombros. Uma onda de energia em­briaga Janjoca.

— Não pegues nessa porcaria.

— Eu não quis. Ele fez questão...

— Pois não se pega. Amanhã se devolve. Era só o que faltava!

Os seus olhos ficam por muito tempo fitos na nota. Ali está o dinheiro para o remédio de Napoleãozinho e para umas cinco refeições... Mas isto é um desaforo, um acinte...

Vão deitar-se em silêncio.

21

Perto de Virgínia uma senhora idosa assesta a luneta com uma importância fidalga para os pares que passam dançando.



— Que é que a senhora acha desse namoro da Chinita com aquele moço grande? — pergunta ela, mos­trando o par com os olhos.

Virgínia é positiva:

— Acho que dá em droga...

A camaradagem é recente. Nasceu porque a senhora da luneta puxou conversa. É uma criatura de voz desa­gradável e seca.

— Essa gente do Cel. Pedrosa entrou assim de repente na sociedade, não acha?

Fala com cuidado, como quem apalpa o terreno.

— A senhora quer saber uma coisa? — Virgínia encara firmemente a interlocutora. — Eles têm dinheiro e está tudo acabado. Ninguém pergunta mais nada.

— Engraçado... — A outra entorta a cabeça e sorri um largo sorriso que revela as gengivas intumescidas e pálidas. — O fato é que eles estão entrando...

— Comigo não.

A ressalva de Virgínia é dura e ríspida.

— Sim, acredito, mas com os outros. Vão inaugurar na segunda-feira o palacete deles nos Moinhos de Vento.

— Somos quase vizinhos...

— Dizem que custou seiscentas contos...

— Dizem.


— ...e que tem piscina, campo de tênis, parque muito grande. A casa, então, é uma verdadeira beleza.

A senhora da luneta fala com ênfase, como se es­tivesse descrevendo o palácio dum marajá.

Mas Virgínia não a escuta mais. Porque seus olhos deram com um fantasma: sorrindo, de dentes brancos num contraste com o moreno tostado do rosto. Alcides... Está de preto (que idéia essa de vir de smoking a uma festa em que todos os homens estão em traje de passeio?) e tem um cravo branco na lapela. Encosta-se a uma co­luna e fica olhando com um ar divertido a massa huma­na que se move, coleante, como um grande molusco, ao compasso da música.

O cantor do jazz agora está sentimental. Com voz arrastada chora:



Barrio prateado por la luna...

O tango argentino continua, o bandônion geme, os namorados que dançam ficam de olhos compridos, o violinista baixa a cabeça com amor e quase chega a bei­jar o instrumento. O momento é grave. O pistão, o trom­bone e a pancadaria estão num silêncio religioso.

“Ele já me terá visto?” — pergunta Virgínia a si mesma. E sente que o coração bate com força, como há muito não batia. Isto é um absurdo, simplesmente não pode ser verdade, é ridículo, inconcebível, no entanto o prazer é tão estranho, tão requintado, e principalmente tão inesperado...

A senhora da luneta torna a falar:

— ...e banheiro com ladrilhos coloridos... vinte contos... móveis de jacarandá, candelabros. ..

Os olhos de Alcides encontram os de Virgínia. Ele sorri e inclina a cabeça num cumprimento polido, faz uma pequena curvatura. Sorrindo, parece ainda mais moço, pouco mais velho que Noel. Virgínia pensa no filho. Oh! Isto é um absurdo... Ela devia negar-se a acreditar. Mas Alcides a contempla com a insistência de sempre. E seus olhos dizem, pedem tanta coisa. ..

— ...uma Ceia de Cristo de tamanho natural.

A música pára. Alcides sorri ainda.

22

Da sua meia porta Cacilda olha o beco.



Na esquina o vulto do guarda-civil. Na calçada fron­teira, janelas com luz vermelha, mulheres às portas das casas. Passam homens: sós ou aos grupos. Uma francesa muito pintada convida:

Viens!

Quando um entra, o vulto da mulher desaparece da janela, que se fecha. Pouco depois o homem sai. Passam-se alguns minutos, a luz vermelha torna a brilhar, a francesa reaparece e os convites se repetem:

Viens, bonitinho.

Cacilda está cansada. Ela não chama... Se quise­rem entrar, que entrem. Acha feio chamar. Só francesa e china de soldado é que convidam. Ela não.

Num café da esquina berra um rádio, Carlos Gardel canta um tango. Perto da janela de Cacilda uma mulata gorda acompanha a melodia, cantarolando.

No meio da rua dois homens discutem, aos gritos. Aparece um guarda e os acalma. O silêncio volta. A ja­nela da francesa torna a fechar-se.

— A Liana não tem vergonha — diz a mulata gorda.

Na outra calçada estala uma risada debochada. Ca­cilda encolhe os ombros. Que importa? Já ganhou o dia. De manhã no apartamento do Edifício Colombo. Ao anoi­tecer, no rendez-vous da Travessa das Acácias. Vem-lhe à mente a cara congestionada do homenzinho. . .

Um guarda apita longe. Gardel se cala. Um cachor­ro começa a latir. A janela de Liana torna a abrir-se. A francesa reaparece.

Cacilda encolhe os ombros. Que me importa?

domingo


23

O dia amanhece quente e luminoso.

Clarimundo abre a janela para a manhã, e tem a impressão de que o mundo acaba de nascer. Cantam os sinos duma igreja próxima. As pombas do quintal fron­teiro estão agitadas, batem asas, voejam, pousam arru­lhando nos telhados da vizinhança. Cada vidraça é um espelho a reverberar claridade do sol. Roupas coloridas imóveis pendem de cordas, no pátio da casa do Cap. Mota. Mais ao fundo, uma fila de bananeiras em cujas folhas escorre uma luz verde e oleosa. O rio se confunde com o céu no mesmo azul rútilo, e só a pincelada lilás dos cerros é que diz onde termina um e o outro começa.

Clarimundo olha para a casa fronteira. Lá está a velha de preto, às voltas com as coisas para o café. A mesa está posta: a toalha de xadrez vermelho, o bule azul. Agora chega a moça bonita. Mais adiante, na outra casa, o homem do gramofone lê um jornal: a máquina odiosa está a um canto, com o seu fone de campânula, calada: mas daqui a pouco na certa começa a berrar. Por enquan­to só berram os filhos do homem, e como berram! O pro­fessor deixa a janela, num protesto.

Batem à porta. É o rapaz do restaurante que vem trazer o café. Entra.

— Bom dia.

— Bom dia.

Põe a bandeja em cima da mesa e volta-se para sair. O professor dirige o olhar para ele:

— Ó moço!

O garçon pára.

— Como é o seu nome?

O rapaz fica surpreendido. Já o disse mais de mil vezes. Chama-se Valério. O professor sempre esquece. Que homem cabuloso!

— Seu Valério, o senhor está com muita pressa?

O rapaz sorri, um pouco contrafeito. É gorjeta, na certa, — pensa.

— Pressa mesmo não tenho... Por quê?

Clarimundo esfrega as mãos e examina o outro com curiosidade científica.

— Sente-se ali.

Mostra uma cadeira. Depois de hesitar por alguns segundos, o moço do restaurante obedece.

O professor vai até a janela, olha para fora mas nada vê do mundo objetivo. Coça o queixo e volta-se.

— Quantos anos o senhor tem?

— Dezanove.

— Dezenove — corrige o professor. — Deze...ze. Muito bem.

Muito duro na cadeira, visivelmente embaraçado, Valério espera. Que homem chato!

— Já esteve na escola? — torna a perguntar o pro­fessor.

— Já, sim senhor.

— Pois ora muito bem.

Clarimundo aponta para a bandeja.

— Se o senhor segurar esta bandeja, largando-a logo depois, que é que acontece?

— Ué... ela cai.

— Muito bem. Mas por que é que cai?

Hesitação.

— Ora... cai porque eu larguei...

— Mas não há outra razão?

O embaraço de Valério aumenta. (Que sujeito pau, nem parece um professor de barba na cara. Já se viu?) Um colorido tênue já lhe vai aparecendo nas faces.

— Não sei... eu... o...

Clarimundo solta a pergunta como uma pedrada:

— É a gravidade? O senhor nunca ouviu falar na lei da gravidade?

O professor sorri. Um pensamento mau atravessa o espírito do rapaz. “O professor estará querendo me empulhar?”

— Gravidade?

Como um eco ele repete a palavra.

Clarimundo suspira desalentado.

— Está bem, seu Desidério, muito obrigado, pode ir.

Com o ar dum ladrão relapso que o delegado solta por compaixão, depois duma reprimenda violenta, Valério sai, envergonhado e cheio de embaraço.

Clarimundo simplesmente não pode compreender como as pessoas ignoram as coisas simples como seja o fenômeno que preside a queda dos corpos. Que esperança haverá para o seu livro num mundo de ignorantes e ce­gos? A gravidade, uma coisa corriqueira! Se fosse numa aula, esse Desidério... Tibério ou coisa que o valha le­vava na prova um zero bem redondo de tinta encarnada.

O professor torna a acercar-se da janela. O vizinho está fazendo o gramofone funcionar. Aquele diabo (pensa Clarimundo) utiliza um dos inventos do nosso século mas é bem possível que nunca tenha ouvido falar na gravida­de...

Pela janela da casa fronteira vê o quadro de todas as manhãs. A mesa pequena com a velha, a filha e o filho ao redor. As mesmas caras, os mesmos objetos, de­certo as mesmas palavras. Todos sabem que os corpos caem mas ninguém nunca ouviu falar na gravidade! Toda a gente anda de automóvel, escuta rádio, olha para o céu, vê os aviões, no entanto continua a ignorar a existência duma lei fundamental da Física.

Clarimundo se volta para dentro do quarto. Penden­te da parede, enquadrado por uma moldura barata, lá está o retrato de Einstein — página arrancada a uma revista. O professor contempla-o com admiração. E a expressão de seu rosto é de quem está intercedendo diante do mestre para que ele perdoe “aos que não sabem o que fazem”.

Em cima da mesa, o café esfria, esquecido.

24

Às oito horas a criada vem trazer o chocolate para os patrões que estão ainda deitados. Dodó já se levantou, lavou-se, escovou os dentes e pintou-se, tornando a voltar para a cama. Sempre faz assim. Não quer que o seu Teotônio a veja amarfanhada e desfigurada pelo sono. E ago­ra está aqui, na sua camisa de seda lilás, com os ombros cobertos por uma mañanita cor-de-rosa feita pelas velhi­nhas do asilo.



Teotônio acorda com relutância, recebe o sorriso da mulher, levanta-se, veste o seu quimono (comprou-o de­pois que leu uma entrevista em que certo magnata norte-americano aparecia, segundo dizia o repórter, “metido num confortável quimono de seda azul”). Vai até o ba­nheiro, faz a sua ligeira toilette matinal e volta para a cama. É um velho costume do casal: tomar café sempre juntos. Nos domingos e dias santos, na cama; nos outros dias, à mesa da copa. Não tinham prometido perante o padre, no dia do casamento, que um seria a sombra do outro?

Dodó passa a taça fumegante para o marido. Ele agradece com um sorriso. Ela toma da sua e começam ambos a sorver o chocolate com lenta delícia. Os biscoitinhos estão saborosos — elogia Teotônio. A mulher diz o nome da confeitaria donde vieram.

O sol escorre por entre as cortinas cor de oliva. Por cima da cabeceira da cama, Santa Teresinha, dentro du­ma moldura dourada, mostra, com o seu sorriso angélico, sua cruz e suas flores, numa litogravura envernizada.

Junto com o chocolate a criada trouxe os jornais da manhã.

— Já procuraste a notícia da nossa festa?

Dodó sacode a cabeça. Não procurou mas vai pro­curar. E enquanto o marido fica rapando com a colher o fundo da taça, (— Estás bem como um menino guloso, Tônio! Imagina só se alguma pessoa de fora te visse!) Dodó abre o jornal e passa os olhos pelas notas sociais.

Lá está a notícia! Uma coluna compacta.

Revestiu-se dum brilho invulgar.”

Ela sorri. Não é exagero: um brilho invulgar. Não nos fariam nenhum favor em dizer isso. A notícia se es­picha, os termos de praxe. Coisas sabidas: a qualidade do jazz, a afluência do “que a nossa sociedade tem de mais fino e representativo”. Mas os olhos de Dodó procuram, procuram uma coisa que ela própria tem vergonha de con­fessar a si mesma... Mas procuram assim mesmo. A vaidade é um pecado. E enquanto os seus olhos passeiam pela notícia, ela procura não procurar, procura não dese­jar encontrar, tenta passar a outros tópicos... É uma luta entre o Anjo da Guarda e Satanás. O Anjo da Guarda murmura: “Dodó, uma cristã verdadeira não deve ter vai­dades mundanas. Passa adiante, olha a lista de nascimen­tos, de óbitos, de viajantes, os programas de cinema, mas não procures, não procures mais...” Satanás porém, salta com sua carantonha horrível e diz: “Procura, procura, porque isso é bom, a gente sente uma coisa agradável dentro do peito, parece que incha, fica mais contente. Procura, Dodó, que mal há nisso, que pecado?” Mas o Anjo não abandona a sua protegida. E vai vencer. Porque Dodó baixa os olhos depressa para ler outra notícia. Mas é tarde... Ela já viu. Sem querer; não tem culpa. Ali está o nome dela...

o nome da Exma. Sra. D. Dodó Leitão Leiria, um dos mais finos vultos do nosso set, verdadeira figu­ra de romana, a mãe dos pobrezinhos, uma persona­lidade a cuja inteligência, esforço, dedicação e qua­lidades de coração devemos a criação da maioria dos nossos hospitais e asilos...”

A comoção lhe sobe em forma de maçã até a gar­ganta. Seus olhos se turvam.

Enquanto isso, Teotônio Leitão Leiria, silencioso, de braços cruzados, olha para o forro e rumina um velho ressentimento.

— Tônio, meu filho, olha...

A voz de Dodó está trêmula. O seu segundo queixo também treme. Passa o jornal para o marido, mostrando com o dedo a passagem comovente.

— Vê como eles são bondosos...

Teotônio lê.

— Dodó, eles não fazem mais que dizer a verdade.

Elogiando assim, Teotônio de alguma maneira está pedindo desculpas, está se reabilitando da aventura amo­rosa da noite anterior.

Aparece no canto do olho direito de D. Dodó uma lágrima fulgurante, que espia, indecisa, envergonhada e de repente perdendo todo o acanhamento rola, decidida, face abaixo, indo morrer no canto da boca.

D. Dodó domina a comoção e continua a ler as notas sociais. Um baile do Filosofia para a próxima quinzena. Um garden-party no Excursionista. Acha-se em festa o lar do Dr.... Aniversário...

Teotônio levanta-se e começa a passear dum lado para outro no quarto, com as mãos metidas fortemente nos bolsos do quimono (bem como Mr. W. L. W. Simpson, o magnata, quando caminhava de cima para baixo no seu apartamento, dizendo para o repórter: “Sou manifestante contrário à N. R. A., porque a economia dirigida...”)

D. Dodó estranha.

— Que é que tens, meu filho?

— Nada, é que estou pensando...

A mulher é toda interesse e carinho.

— Não podes dizer?

Teotônio continua a caminhar, muito perfilado, olhando de quando em quando com o rabo dos olhos pa­ra o espelho do penteador.

— Estás sentindo alguma dor? — insiste D. Dodó, já aflita.

Não. Teotônio não quer dizer. São assuntos ínti­mos... idéias... Leva a mão à cabeça, como quem diz: É uma coisa horrível ter idéias, elas borbulham, fervem, quase nos arrebentam o cérebro! D. Dodó está desolada, imaginando desastres. Mas de repente Leitão Leiria esta­ca na frente da mulher e desabafa:

— Minha querida, eu vou te ser franco... — Pausa. Olha de viés para o espelho. — Ando preocupado...

— O estômago outra vez?

— Não... Antes fosse. É um caso de consciência.

— De consciência?

Silêncio. Um silêncio de catástrofe, de fim de mun­do. Depois, com voz teatral, Teotônio prossegue:

— Já reparaste no plano do Cel. Pedrosa?

— Cel. Pedrosa?

O ar de Dodó é de quem nunca ouviu pronunciar este nome.

— Sim, do Zé Maria Pedrosa, o pai da Chinita.

— Mas que plano?

— A coisa não está bem definida, clara, não é qual­quer um que enxerga. É uma manobra velada, mas um olho experimentado e lúcido descobre logo...

O auto-elogio é claro. Pausa.

— Diga duma vez, meu filho.

Teotônio dá mais uma volta pelo quarto, pára na frente do espelho, ajusta o cinto do quimono, passa a mão pelo rosto e volta-se para a mulher. Agora o seu tom de voz é mais natural:

— Pois o Cel. Pedrosa anda adulando o Arcebispo. A escada para a ascensão é Monsenhor Gross!

D. Dodó estremece ao ouvir o nome do amigo da casa.

— Eu percebi o jogo. Convites para almoço, auxílio para as obras da Catedral... Ontem no Metrópole o Ma­deira me garantiu que Monsenhor Gross já almoçou na casa dos Pedrosas...

D. Dodó está chocada. Isto equivale a um roubo, uma violação.

Teotônio continua a despejar.

— A coisa é clara... O Pedrosa está se impondo para conseguir posição na política. Dinheiro não é... Ele tem que chegue. Religião sincera também não... e eu depois te digo por quê. Então que é? Interesse político na certa. Eu não me engano Dodó, tenho olho clínico, enxergo longe...

Dodó sacode a cabeça.

— O que me contaram ontem me deixou de boca aberta...

Pausa dramática.

— O Armênio me disse que o Pedrosa, no dia em que completar vinte e cinco anos de casado, vai dar vinte e cinco contos de réis para as obras da Catedral...

Ao dizer isto, Teotônio bate violentamente com a palma da mão na coxa. E senta-se, como que compelido pelo peso da própria confissão. Ali estava o grande golpe. O mais que ele, Leitão Leiria, dera para as obras da Ca­tedral haviam sido dez contos, pagáveis em prestações se­mestrais. Mas vinte e cinco contos duma sentada, era sufocante, era de rachar! No terreno das idéias, no do­mínio da inteligência, aquele caboclo boçal que era Zé Maria Pedrosa não podia terçar armas com ele. Mas em matéria de dinheiro era forçoso reconhecer que o homem levava vantagem. Nisso residia principalmente o ressen­timento de Teotônio.

D. Dodó, ajudada pelo Anjo, controla os seus senti­mentos e diz com espírito cristão:

— Ora, Teotônio, todos são filhos de Deus. A troco de que o Cel. Pedrosa não pode ser amigo de Monsenhor Gross e ter posição na política? Em todo o caso os vinte e cinco contos dele vão ajudar muito a construção da nossa rica Catedral...

Leitão Leiria se ergue. A sua voz é um sussurro con­fidencial quando ele desfere o tiro de misericórdia:

— Mas acontece que Zé Maria Pedrosa não é digno dessa amizade, não merece entrar no nosso meio...

Aproxima-se da mulher e remata:

— Ele tem uma amante.

Uma amante! Não é preciso dizer mais nada. Para D. Dodó foi dita a última palavra. Agora tudo cessa diante desta monstruosidade. Uma amante!

Teotônio explica. Ele sabe, tem a certeza, viu. Ela abriu uma conta na loja. Chama-se Paulette, ou Nanet­te... Francesa, loura, mora num apartamento... Conta­ram-lhe detalhes. (Oh! Ele ouviu com repugnância, não gosta dessas indiscrições, não tem nada com a vida dos outros.) Dizem que ela faz o diabo com o coronel. Houve quem visse (Dodó, desculpa este detalhe escabroso, mas é só para veres a indignidade...) a tal Paulette ou Na­nette montada em cima do coronel, como se ele fosse um cavalo...

A criada bate à porta. Pode entrar! A rapariga vem buscar a bandeja com as xícaras vazias. Marido e mulher ficam a se entreolhar em silêncio. Passa-se um minuto. Depois que a criada sai, quem fala primeiro é D. Dodó:

— Meu filho, amanhã é a festa deles. Bodas de prata. Mandaram convite. Não achas que devemos ir, por delicadeza?

O que move D. Dodó não é propriamente um senti­mento de delicadeza. É que ela tem uma curiosidade enor­me de conhecer o palacete que se vai inaugurar. Contam tanta coisa... Parque, piscina, pinturas suntuosas, mo­bílias à Luís XV...

Teotônio está pensativo.

— Será direito? Depois do que sabemos...

Seria bonito — pensa ele — romper duma vez, descobrir as baterias (Teotônio tem predileção pelas ima­gens guerreiras), travar combate em campo aberto. Mas Zé Maria é freguês que gasta em média dois contos por mês na loja: oitocentos com a família e um conto e du­zentos com a amante.

Toma uma resolução.

— Vamos, como se nada tivesse acontecido. Enfim, a família não tem culpa das indecências do pai.

Olha para o espelho e sorri para si mesmo, numa auto-aprovação muda.

25

Na casa do tuberculoso a mulher de rosto de pedra abre a janela que dá para o quintal. O sol entra alegre. Maximiliano sorri. Ver o sol é o prazer de todas as ma­nhãs. A luz salta para dentro, inunda tudo. Depois como que vai recuando quando entardece. A sombra vem vindo, descendo pela parede; de tardezinha a luz tem a forma da janela, depois vai minguando até sumir-se. É uma distra­ção olhar aquilo. Não pode levantar-se. Não acha gosto em ler: as letras do jornal cansam os olhos. Assim ele se distrai olhando o sol. Quando não há sol, nem esse brinquedo ele tem... Os filhos correm, a mãe não deixa que eles entrem no quarto. Maximiliano só lhes ouve o barulho, riso ou choro, na varanda. A vida rola... Os vizinhos mandam coisas: doces, leite, pão... Vem às vezes um médico que o examina com precaução, tocando-o com a ponta dos dedos, de longe, medroso. E a cara do outro não encoraja.



Maximiliano espera. Os dias são longos. Quando trabalhava na loja, achava que o relógio andava devagar. Que dizer da marcha das horas depois que ele adoeceu? Os ruídos da rua chegam até aqui: buzinas, músicas, vozes. Os raros visitantes ficam à porta. Ele compreen­de... Medo do contágio. Ele sabe, não tem raiva, não se queixa. O que tem é pena da mulher e dos filhos. O me­lhor mesmo é que a morte venha logo.

A mulher não tem serventia, não sabe fazer nada: moça criada com luxo, apesar de pobre. No princípio tu­do correu bem, viviam relativamente bem com seu orde­nado modesto. Um dia, aquela dor no peito, aquela fra­queza, falta de apetite, tosse. Havia um caso de tuberculo­se na família. Mas ele não fez caso. Continuou trabalhando forte. Duma feita apanhou chuva. Daí por diante foi piorando. Deixou de ir à loja cinco dias seguidos. Nas ou­tras semanas teve outras falhas. O patrão disse que não era “pai de cascudo” e mandou-o procurar outro empre­go. Foi. Não encontrou. A doença progredia. O médico ficou com pena, aconselhou mudança de ar, pelo menos mudança de casa. Mas com que dinheiro? Só rindo, mes­mo... Depois... ele não se lembra de mais nada. Tudo começou a piorar com mais rapidez: contas, dificuldades, desconforto. Perdeu a noção do tempo, caiu na cama e não se ergueu mais.

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