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Caminhos cruzados erico verissimo


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— Jesus Cristo era pobre. Os pobres, Ele disse, serão os primeiros a entrar no Céu.

— A senhora quer sentar?

D. Dodó faz com a mão um sinal: não, obrigada.

Sala sombria. Uma mesa de pau, três cadeiras, um armário de madeira sebosa, uma folhinha mostrando uma data remotíssima, remendos de lata nos lugares onde a pertinácia dos ratos abriu buracos. Anda no ar um cheiro indefinível. D. Dodó procura identificá-lo: não consegue: só sabe que é mau.

A mulher magra continua imóvel, esperando.

D. Dodó espalma a mão sobre o peito, entorta a ca­beça e diz em surdina:

— Eu soube que o seu marido está muito doente e que a senhora se encontra em dificuldades...

— É.


O rosto da dona da casa continua parado e inexpres­sivo. Com a mesma máscara poderia ter dito: “É mentira.”

— Pois é... Vim oferecer os meus fracos présti­mos...

Na frente da dama de caridade a mulher do doente: alta, magra, imóvel e silenciosa. D. Dodó começa a ficar impressionada com esta cara pétrea, que não se altera, que não chora nem sorri. O silêncio se prolonga. Um gato espia na porta e sai de mansinho pelo corredor.

— Trouxe-lhe alguma coisa...

— Sim senhora...

— Tem filhos, não é?

— Tenho...

— Quantos?

— Dois.

— Homens?



A outra responde com um aceno de cabeça. D. Dodó abre o mais aliciante dos sorrisos.

— Bom, se a senhora não faz objeção...

Abre a bolsa e tira dela uma nota de vinte mil-réis. Um pensamento lhe assalta a mente: se os repórteres dos jornais entrassem de repente com fotógrafos...

D. Dodó não gosta de ferir suscetibilidades: entregar o dinheiro na mão da outra, não fica bem. A criatura pode se ofender... Aproxima-se da mesa e com toda a delicadeza depõe sobre ela a cédula em que está estampada a imagem dum político que já tomou chá no seu palacete.

Que linda cena para um instantâneo! Tão bonita na sua simplicidade comovente...

A caridosa dama no momento em que modesta­mente depunha sobre a mesa a nota de vinte mil-réis que iria mitigar por alguns momentos o sofri­mento daquele casal desprotegido da sorte.”

Monsenhor Gross havia de gostar tanto, lendo o jornal na manhã seguinte... Que pena os repórteres não saberem... Mas não! Sai, Satanás! A verdadeira caridade deve ser feita às escondidas, com modéstia. “Que a tua mão esquerda não saiba o que a direita faz.”

A mulher do doente continua parada. Aquilo não significa nada para ela. Ela sabe que quando esta senhora perfumada for embora no seu automóvel de luxo, a vida da casa há de continuar como sempre: sujeira, miséria e doença. Ela há de ouvir todas as horas, todos os dias a tosse rouca do marido, há de sentir no ar um cheiro en­joado de remédio, há de ver os filhos atirados por aí, como porquinhos de quintal pobre. Os vinte mil-réis da senhora caridosa serão consumidos em poucos dias na farmácia. É o mesmo que nada. Por tudo isso não chega a ficar contente, nem mesmo consegue sentir gratidão.

Os segundos passam e D. Dodó precisa completar a sua obra. Sente que a sua missão de caridade não ficará completa se ela não vir o doente, nem que seja para lhe dizer duas palavrinhas de conforto.

— Posso ver o seu marido?

O rosto de pedra não registra a menor comoção. A mão ossuda faz um sinal na direção duma porta.

— Ali...


Sombrio, malcheirante e abafado, o quarto do do­ente produz calafrios em D. Dodó. De repente — tarde demais — D. Dodó se lembra de que lhe disseram que se trata dum caso irremediável de tuberculose. Pela fresta da única janela entra uma faixa de sol em que pairam rútilas partículas de poeira. D. Dodó tem a impressão de que são os próprios micróbios da tuberculose que bó­iam no ar.

O doente está deitado numa cama de ferro, a um canto do quarto. Seu rosto descarnado quase desaparece, de tão pálido contra a fronha branca. Só a barba crescida, os olhos negros e o cabelo basto dão individualidade àquela cabeça.

— Boa tarde — cicia D. Dodó.

Da cama parte um fio de voz rouca, esfarelada:

— Boa tarde.

A mulher faz às vezes de intérprete e explica o caso segundo a própria lei da casa, que é uma lei diferente da que rege o mundo da rica visitante.

Veio ver a gente, Maximiliano, e trouxe um di­nheiro.

O marido lança para a dama um olhar de compreen­são. Um cheiro nauseante anda no ar e D. Dodó com a impressão de estar se envenenando lentamente imagina-se uma verdadeira mártir. Resigna-se, pois assim há de fazer jus ao Reino do Céu.

Quisera aproximar-se da cama, passar a mão ma­ternal pela cabeça do doente. Mas tem medo. S. Francisco botava o dedo nas feridas dos leprosos. Mas é que ele era um santo, fazia milagres, e ela é simplesmente Doralice Leitão Leiria, um ser humano como qualquer outro. Por isto fica onde está, cheia de pena e amor, mas ao mesmo tempo terrivelmente amedrontada.

— O senhor há de sarar...

O homem sorri. (O primeiro sorriso que D. Dodó vê nesta casa.) Sorri porque sabe que aquilo é uma men­tira.

— Tenha fé em Deus...

O homem continua a sorrir. Teve fé em Deus, orou, foi à igreja, fez promessas, acendeu velas. Tudo inútil.

— O senhor está sendo purificado pelo sofrimento...

Purificado? Esta palavra cessou de ter significação para ele. O que lhe importa agora é viver, recobrar as forças, ocupar o lugar antigo que tinha na vida, trabalhar e tomar conta da casa.

D. Dodó considera sua missão terminada.

— Até a vista. Vou providenciar para o senhor ser removido para um hospital. Lá vai ter ar, luz e boas en­fermeiras, e não há de lhe faltar nada. Até a vista. Deus o proteja.

Mão no peito, olhos tristes, o pensamento em Santa Teresinha, D. Dodó sai do quarto do doente. Na outra sala já se respira melhor. A cédula de vinte mil-réis continua em cima da mesa.

— A senhora sabe o meu nome?

A mulher do doente faz que não com a cabeça.

— Sou a Dodó Leitão Leiria.

Decepção. O nome não produz o efeito esperado.

— Nunca ouviu falar?

— Não senhora.

D. Dodó força um sorriso.

— Pois admira, minha filha, o meu nome aparece sempre nos jornais.

— A gente aqui não lê jornal.

— Sou presidenta da Sociedade das Damas Piedosas.

Não se move um músculo naquele rosto de múmia. D. Dodó suspira, resignada.

— Depois mandarei uma pessoa aqui tratar da re­moção do doente. Bem, minha filha, adeus! Não repare eu não lhe apertar a mão. Fique com Nosso Senhor e Santa Teresinha.

— Passe bem.

As tábuas do corredor tornam a gemer sob o peso da senhora do comerciante Leitão Leiria. Encostada na folha da porta, a mulher do doente acompanha a outra com o seu olhar gelado.

O chofer espera, ao lado do Chrysler. D. Dodó entra. Os dois filhos do tuberculoso presenciam a cena, os olhos compridos. D. Dodó tira da bolsa alguns níqueis e joga-os para os garotos num gesto suave de quem desfolha pétalas de rosa. Aparvalhadas, no primeiro momento as crianças não compreendem. A indecisão, porém, dura apenas al­guns segundos. No momento seguinte estão ambos acocorados, catando os níqueis, ferozes, trocando arranhões e sopapos. D. Dodó sorri afogada de felicidade.

— Vamos embora, Jacinto.

O motor começa a trabalhar: um tamborilar macio e surdo. O carro arranca. D. Dodó respira. Sente engulho — Deus me perdoe — ao pensar no quarto do tuberculoso. Agora aqui dentro do automóvel ela está de volta ao seu mundo. O perfume Nuit de Noël prevalece sobre a lem­brança nauseante da atmosfera empestada. Atira para trás a cabeça cansada, recostando-a contra o espaldar es­tofado. Sente a alma limpa, o coração leve.

— Jacinto, ligue o rádio.

O chofer obedece. A princípio o alto-falante produz um tiroteio breve cortado de assobios. Depois uma onda de música invade a morna atmosfera do carro. Uma valsa. D. Dodó lembra-se de que tem de tomar várias providências para o chá-dançante que as Damas Piedosas vão realizar esta noite no Metrópole, em benefício do Asilo Santa Teresinha.

— Jacinto, direito para casa.

A valsa continua, envolvente. Parece a música dos anjos. D. Dodó cerra os olhos e imagina que Santa Tere­sinha agora lá no céu sorri para ela.

11

Virgínia tem ímpetos de jogar o frasco de perfume na cabeça de Noca, quando a rapariguinha lhe vem anun­ciar com voz fanhosa:



— O chã tã pranto...

Fica parada ali na porta, a cara idiota, a cabeça minúscula de passarinho no alto do pescoço descarnado e comprido: uma pêra na ponta de uma vara. E aquele esgar canino, aquela máscara de palhaço cretino, aqueles olhinhos espantados... Não: a gente tem vontade de jogar urna coisa na cabeça dela... Virgínia fuzila para a criada um olhar colérico.

Outra vez a voz fanhosa:

— Estã pranto o chã, D. Virgínia.

Ê demais. Nem uma santa agüenta.

— Já ouvi! — berra. — Já ouvi! Não sou surda.

O sorriso canino persiste, deixando visíveis os dentes amarelados, pontiagudos e minúsculos. E é bem um olhar de cão surrado — um olhar de simpatia e fidelidade me­drosa que a rapariga lança para a patroa quando esta passa por ela.

A patroa surra na gente, mas a patroa é boa, dá dinheiro, dá vestido bonito. D. Virgínia grita com a gente — mas depois dá risada pra gente.

E o olhar amoroso segue o vulto quente e perfumado da mulher de roupão azul que desce a escada porque “o chã tã pranto”.

Solidão na sala de jantar, uma solidão tão grande que para Virgínia ela chega a se transformar numa sensação de frio. As mesmas coisas, as mesmas paredes, os mesmos cheiros. Todos estes móveis, estes objetos estão ligados a duas figuras familiares: Honorato e Noel, o marido e o filho — tudo isto para Virgínia faz parte dum conjunto aborrecível e quase odioso.

Senta-se à mesa. O serviço de chá, cerâmica em vermelho e negro, destacando-se sobre a toalha de li­nho... O açucareiro bojudo e polido, evocando a figura do dono da casa... O açúcar pálido como o filho... Tudo como sempre.

Despeja na taça o chá e o leite. De uma das portas Noca espia a patroa com olhos apaixonados.

Virgínia põe açúcar na xícara, pensando em Alcides. Curioso: a imagem do rapaz sempre lhe vem à mente na mesma postura, com a mesma expressão: sorrindo, os dentes muito brancos contrastando com o rosto requeimado, um cigarro fumegando entre os dedos, os olhos brilhando por trás dá fumaça... Foi assim que ela o viu pela primeira vez. A princípio ficou irritada com a insis­tência daquele olhar, depois achou graça e por fim...

De súbito Virgínia dá com os olhos de Noca, ali na porta, espiando, traiçoeiros, de tocaia, fixos. Tem um sobressalto desagradável. É como se a rapariga tivesse estado a ler-lhe os pensamentos mais íntimos.

— Toca pra cozinha, sua ordinária!

Noca se encolhe: os olhos brilham, mas a expressão do rosto é a mesma: o ricto canino, o ar apalermado. E assim transida, com as mãos entrelaçadas a apertar o ventre, Noca vai recuando, recuando devagarzinho e, para disfarçar esta mistura de medo e amor, e ao mesmo tem­po, a formular desajeitadamente uma desculpa, começa a rir um riso gutural e sincopado em u. E desaparece.

Virgínia toma um gole de chá. E por alguns instan­tes fica ainda como que sob o sortilégio daqueles olhos de animal.

Noca, Honorato, Noel, Querubina, as outras criadas — olhos, olhos, olhos que vivem cravados nela, espiando, fiscalizando, procurando adivinhar-lhe os segredos. Para onde quer que se volte encontra um par de olhos acesos. É como se fosse uma prisioneira. Por que não falam? Por que não dizem com palavras o que os olhos dão a enten­der? Por quê?

Aperta o botão da campainha, irritada.

A criada aparece:

— Senhora?

— Querubina, vá ver se o Noel quer chá.

A criada se retira, e Virgínia fica olhando para aque­las ancas curvas, aquelas pernas bem torneadas, aquela cintura fina...

— Indecente... — murmura.

A mocidade de Querubina, a boniteza sadia de Que­rubina, as coxas de Querubina, o busto de Querubina são um permanente insulto a seus olhos. E o maior insulto de todos, o maior absurdo, a maior monstruosidade de Querubina é a sua virgindade.

Virgínia sente um prazer esquisito em atribuir-lhe amantes. Vive há vários meses na esperança de um dia descobrir o marido no quarto da criada. Sabe que, no dia em que apanhar os dois de cochichos num canto, há de dar um escândalo bem grande e barulhento, há de dizer todos os palavrões que vive recalcando. E esta certeza torna a expectativa ainda mais sensacional se um di...

Virgínia está a terminar seu chá quando Querubina reaparece:

— Seu Noel não quer nada.

Os olhos de Virgínia se animam:

— Por que foi que demorou tanto no quarto dele? Bastava perguntar se o rapaz queria chá...

— Ué... eu...

— Eu sei. Ficou se oferecendo...

O mais enervante é que Querubina não reage. Fica assim indiferente, nem embaraçada nem cínica, ouvindo simplesmente sem se ofender, com ar de quem está fa­lando com um louco: concordando para não irritar...

Tire a mesa, sua indecente.

Silenciosa, a rapariga começa a retirar as xícaras da mesa. Inclina-se para apanhar o bule e Virgínia vislumbra o rego entre os seios dela, fundo e sombrio como um vale entre dois montes rígidos. Sim, rígidos, pois ali estão dois seios de vinte anos. Uma raiva vai crescendo, enovelada, no peito de Virgínia.

— Sua vagabunda, você devia estar mas era no beco, ouviu? No beco!

Querubina sai em silêncio, carregando a bandeja.

Agora volta ao pensamento de Virgínia a imagem fascinante; a cara morena, os dentes brancos, o cigarro fumegando, os olhos brilhantes por trás da fumaça...

O relógio bate cinco badaladas. E depois que os sons de sino morrem, Virgínia tem uma consciência ainda mais aguda do silêncio que a envolve.

Solidão.


Mesmo que aqui junto dela estivessem o marido e o filho, ela continuaria só, irremediavelmente só.

Silêncio.

Virgínia fica parada, esperando... Mas esperando quê?

De repente sente-se tomada duma angústia opres­siva: um calor no peito, uma vontade de gritar, uma impressão de abafamento, de fim de mundo.

Onde foi que já sentiu uma coisa assim?

Num sonho? Virgínia procura lembrar-se. Foi no tempo de colégio. Uma tarde, no internato, esmagada pelos muros altos, pelo silêncio e pela saudade do ar livre, começou a sentir aquela sensação esquisita... E fugiu, fugiu porque se não fugisse morria asfixiada depois da mais lenta e medonha das agonias.

Virgínia corre para o telefone, faz o disco girar quatro vezes e leva o fone ao ouvido.

— Alô. É a casa de Mme Menezes? Chame-a ao apa­relho... — Pausa. Virgínia espera, impaciente. — Ah! És tu, querida? Bem... Nada... Telefonei porque estou sozinha e queria ouvir voz de gente. Fico quase maluca. Não imaginas... Olha, vais hoje ao baile do Metrópole? Pois nos encontraremos lá. Estou aflita por ver festa, ba­rulho, movimento. Hein? Não ouço... Ah! Pois sim...

O diálogo dura dez minutos. Depois Virgínia sobe para o quarto. Ao passar pelo escritório, cuja porta está aberta, desvia o rosto com repugnância, pois o vento lhe traz lá de dentro um cheiro familiar, enjoativo, — o cheiro do marido.

Só, no silêncio morno e amigo do quarto, Noel lê o diário de Katherine Mansfield. O retângulo da janela aberta emoldura uma paisagem simples: ao longe um céu azul, liso e desbotado.

Noel afunda mais na poltrona com a impressão de que Katherine Mansfield lhe fala de mansinho ao ouvido. É uma voz familiar, macia e cariciosa, voz de irmã mais velha. (Quando Querubina abriu a porta e perguntou “O senhor não vai descer para o chá?” — ele ficou a olhar para ela com os olhos espantados de quem vê assombra­ção, testa franzida, fazendo um esforço doloroso para compreender. Que bicho estranho era aquele que estava ao pé da porta e que tinha falado? A que língua esquisita pertenciam aquelas palavras? “O senhor não vai descer para o chá?” Finalmente conseguiu traduzir as palavras da intrusa e o mais que logrou fazer foi um aceno negati­vo de cabeça.) Mas Katherine Mansfield lhe fala agora na linguagem das personagens dos contos da sua infância. Noel entende e sorri interiormente. Katie lhe conta do irmão que morreu na guerra. Uns meses antes estiveram juntos, passearam pelo jardim, à hora do crepúsculo. Duma pereira esbelta caiu uma pêra arredondada.

— Ouviste, Katie?

Era um ruído familiar que espertava neles recorda­ções, ecos longínquos. As mãos de ambos percorreram a relva verde e úmida. O rapaz apanhou a fruta e inconsci­entemente, como em outros tempos, limpou-a com o lenço. Recordações do velho home de Montreal. Eram ambos crianças e brincavam no pomar. Levavam cestos para apanhar frutas. As peras lhes caíam em cima das cabeças, rolavam para o chão. As formigas corriam. Eram peras de uma cor viva, amarelo-canário, miudinhas. Katherine se apoiou no ombro do irmão. A noite desceu: o luar ficou um pouco mais profundo. As sombras sobre a relva eram longas e estranhas.

Ela tremia.

— Sentes frio?

— Muito, muito frio.

Depois que a guerra lhe matou o irmão, Katie escre­veu no diário:

Por que não recorro ao suicídio? Porque sinto que tenho um dever a cumprir com relação ao tempo tão bonito em que nós dois estávamos vivos. Quero falar desse passado; ele queria, que eu lhe falasse. Combinamos tudo no meu quartinho alto de Lon­dres.”

Noel fecha o livro. Cerra os olhos e sente no quarto a presença mansa e sedativa de Katherine. Ela está ali na outra poltrona de veludo cor de vinho, a cabecinha de­samparada de pássaro ferido atirada para trás, os olhos fechados, muito pálida. Está cansada, doente, vive a viajar de Londres para a costa da França, em busca de paz e sol. Um dia, numa casa de retiro, em Fontainebleau, encontra num quartinho tranqüilo uma visitante inespe­rada — a morte.

Katie! Katie! Noel tem a impressão de que ouve, ouve-a realmente pronunciar as palavras com que termi­nou o seu diário: Everything is all right. A voz de Katie é doce, remota e no entanto misteriosamente clara.

Um cachorro ladra no quintal vizinho e Noel acorda para o mundo real. Ergue-se devagarinho, põe o livro em cima da mesa e vai debruçar-se à janela.

O jardineiro está podando as roseiras. Os canteiros que formam figuras geométricas se recortam, verdes, contra o ocre avermelhado do chão. Lá debaixo o homem tira o chapéu de palha e, erguendo os olhos, cumprimen­ta:

— Boa tarde!

É um caboclo de barbicha rala e cara pregueada de rugas e Noel responde com um aceno de cabeça. Noca vai até o fundo do quintal levar comida para os coelhos brancos do viveiro. (Um capricho recente de Virgínia.) A rapariga caminha desengonçada, atirando para a frente como uma angolista a sua cabeça disforme. Noel desvia os olhos: Noca lhe causa um desgosto irreprimível. E ele se revolta contra esse desgosto, porque no fundo quisera ser gentil e compassivo para com a pobre criatura. Isso, po­rém, é superior a suas forças. Quando Noca aparece à hora das refeições, é quase certo que lhe estraga o apetite e faz que ele afaste o prato com uma expressão de náusea.

Noel estende o olhar para a paisagem. Lá embaixo se vêem os telhados da Floresta. Mais além, contra um fun­do arroxeado de montanhas, um trecho do Guaíba com lentejoulas de sol. E quintais, pedaços de rua, sombras lilases, manchas douradas de luz, faiscações.

Agora o jardineiro abre a manga dágua e começa a regar os canteiros. O jorro claro se irisa ao sol. Noca volta do viveiro. As sombras vão crescendo e avançando no quintal.

Noel olha ainda a paisagem por um instante. Depois, volta para dentro do quarto.

O silêncio continua. Todos estes objetos aqui são como gênios bons: fazem tudo por manter a ilusão de que dentro destas quatro paredes cabe inteiro o mundo da fantasia.

Noel vai até o seu gramofone, escolhe um disco, põe-no no prato, fá-lo girar, ajusta o diafragma e senta-se de novo na poltrona.

De dentro da caixa de madeira a música salta num jorro luminoso, a melodia se retraça no ar num arabesco ágil. Parece que a atmosfera fica mais clara. A luz do sol desaparece, devorada pela luz maior.

Debussy.

O disco gira. Noel escuta deixando o pensamento correr ao ritmo da música. Tudo fica esquecido, o jardim, o jardineiro, a rapariga feia que foi levar migalhas aos coelhos, os telhados da Floresta, o rio, as montanhas, o céu, tudo, até mesmo Katie.

Agora estamos em pleno reino das fadas. Noel se per­de em Wonderland. A infância ressurge. As flores e os bi­chos falam. Tudo encontra expressão. Os balões sobem e atingem a Lua. As fadas velam o sono das crianças. Branca de Neve é encontrada pelos anões. O Pequeno Polegar achou a sua bota de sete léguas e segue numa viagem impossível. O Chapelinho Vermelho encontra o lobo na floresta...

O disco continua a girar e o sonho se prolonga. Madrinha Angélica surge com a sua cara preta, lustrosa e feliz, contando histórias. Noel agora tem sete anos e escuta.

Era uma vez um rei muito rico que tinha uma filha muito bonita.”

Lá fora a noite adormece todas as coisas. O luar é frio, as sombras são mais negras que madrinha Angélica.

— Dindinha Angé, conta a história do Pinitim.

O carão gordo reluz, os dentes brancos parecem luas contra o céu da noite, e a voz rouca e funda da dindinha negra conta:

— Pois diz que era uma veiz um menino muito la­dino que se chamava Pinitim. Pinitim na noite de S. João se escondeu dentro dum balão muito grande e quando soltaram ele, Pinitim foi junto, subiu e foi parar na Lua. Lá na Lua tudo era feito de açúcar. Moravam lá uns homens meio bichos meio gentes que falavam uma língua que Pinitim não entendia. Quando viram Pinitim cercaram ele, começaram a dançar e fazer troça do pobre do menino. Vai então Pinitim começou a chorar. Tava com fome e não sabia dizer na língua daquela gente: “Quero comê.” Pinitim não sabia das coisas porque na Lua tudo era trocado, tudo era diferente. Então Pinitim foi emagre­cendo, emagrecendo, minguou dum jeito que veio um bicho e comeu ele. (Os olhos do menino Noel estão arre­galados de susto.) Mas Pinitim se acordou e viu que tudo tinha sido um sonho.

Dindinha preta solta uma risada.

Um acorde mais forte apaga a visão. Noel fica atento à música. Por trás da melodia há um chiado permanente que lembra o coaxar longínquo de sapos. É um ruído que Debussy não escreveu mas que está ali no disco, como parte da música.

A melodia continua, Os sapos insistem no seu coral dissonante.

Lá fora a tarde vai envelhecendo, a luz aos poucos se amacia, um vento brando começa a soprar. Sons moles no quintal: o chape-chape da água da manga contra os canteiros de relva.

Noel remergulha em seus pensamentos. Vê mental­mente a cabeça estranha de Debussy, que começa a se balouçar dum lado para outro ao compasso da música.

Noel vai caindo aos poucos num estado de modorra vizinho do sono. A melodia é um rio transparente que corre ao sol numa preguiça adormentadora.

O jardineiro lá fora solta um berro. Noel desperta.

E de novo solta o pensamento. Era possível que Debussy tivesse uma voz áspera como a do jardineiro. Possível também que à tarde fosse regar as suas flores. E que tivesse dívidas a pagar. E dissesse palavras feias. E fizesse gestos violentos. Bem possível também que, como o jardineiro, não gostasse de tomar banho. Mas o Debussy verdadeiro ficou aqui nesta melodia que o disco prendeu. Tudo o que era humano e mortal, que era resíduo, foi eliminado (menos o coral dos sapos) para ficar só a melodia de desenho puro, música de anjos, música de fadas...

E graças à vitrola — pensa Noel — eu a posso ouvir com o mínimo possível de interferência humana. Se es­tivesse no teatro, ouvindo uma grande orquestra executar esta mesma música, teria de ficar na presença de criatu­ras que tossem, pigarreiam, amassam papéis de balas, cheiram bem ou mal; teria de ver os músicos que suam e bufam e ficam vermelhos, um maestro que agita a cabe­leira e faz gestos grotescos... No entanto este móvel de nogueira me dá a melodia quase pura. Um milagre do gênio de Edison combinado com o esforço de outros pe­quenos inventores anônimos, mais o talento comercial dos homens que fundaram a Victor Talking Machine Co., mais o maestro Stokowsky e as muitas dezenas de músicos que formam a Orquestra Sinfônica de Filadélfia, e ainda principalmente o sonho de Debussy, e o esforço de uma centena de operários anônimos, inclusive as abelhas que fornecem cera para os discos... Para ele tudo isto é um conto de fadas, uma obra de magia.

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