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Você pode rir. Rir é permitido


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Você pode rir. Rir é permitido”: a crítica ao sistema soviético por meio da comédia: Interventsiya (1969), Sluzhebnyy roman (1977), Sportloto-82 (1982)

Moisés Wagner Franciscon (UEM)

O órgão encarregado da censura na União Soviética era a Glavit. Porém a presença de seus membros entre a diretoria de produtoras, fiscalizações e o controle da edição dos filmes não era a única fonte de repreensão e de cautela na produção fílmica do país. Estúdios e diretores dependiam dos contratos com o governo para se manterem financeiramente, uma vez que trabalhavam dentro de um sistema estatizado. Era conveniente para os mesmos receber as encomendas de filmes – cuja produção era numericamente prevista no Plano Quinquenal (KENEZ, 2003), e obter os recursos necessários. Se havia apenas uma fonte de financiamento, existiam vários estúdios cinematográficos que precisavam repartir entre si esses mesmos recursos. O sistema incentivava a autocensura – como também o faz no mundo da indústria cinematográfica ocidental, no qual diretores são cobrados pelos produtores para que o filme produzido seja economicamente viável, e que portanto agrade ao que se considera o público alvo. No entanto, havia um espaço para a crítica dentro do cinema soviético: desde que se obedecesse a certos limites, agindo dentro deles. Sua transposição equivalia a condenar a película à tesoura da censura ou ao banimento. Esse espaço de manobra variou muito durante as etapas políticas do regime: aberto nos tempos de Lenin (especialmente durante a vigência da NEP), tremendamente estreito nos tempos de Stalin, amplo nos de Kruschev e um pouco menos extenso nos de Brejnev – acompanhando a própria abertura política de cada etapa da história da União Soviética (LEWIN, 2007).

Certos gêneros eram mais prontamente vigiados que outros: mais o cinema histórico e menos a comédia. É nesse espaço que os diretores testaram com mais tranquilidade os limites da censura no regime soviético. Formularam representações satíricas das diferenças sociais e de sua estrutura, das liberdades individuais, do ambiente de vida e de trabalho no país. A comédia era o gênero de maior audiência na URSS. O humor ácido de certos filmes (já consagrado no anedotário russo, as anekdoty) acabou desfrutando de maior público do que alguns filmes que pretendiam formar a memória histórica soviética. Para a análise dos filmes selecionados foi empregada a sócio-história cinematográfica, de Marc Ferro. Esta permite identificar as películas como produtos históricos de uma sociedade, o que leva a compreendê-la melhor e por uma ótica que textos escritos não poderiam oferecer (FERRO, 1992a; 1976). A concepção de filmes enquanto fontes indissociáveis de seu contexto de criação e que, ao mesmo tempo, não são desnaturalizados por se levar em conta sua linguagem própria, põe em cheque as teorias do totalitarismo que percebem a produção fílmica soviética como propaganda política de ditadores todo-poderosos, ou, na melhor das hipóteses, numa dicotomia simplista entre cineastas lacaios e dissidentes. Tese que é expressa ou subentendida nas obras de Kenez (2003), Overy (2008) e Pereira (2012), entre outros.

Todos os filmes selecionados são da época do líder soviético Leonid Brejnev. Um período de um aumento nas restrições à liberdade criativa de diretores e da vida artística como um todo, se comparado ao líder anterior, Nikita Kruschev. Interventsiya (1969) rompeu os limites tácitos e ironizou a história da Revolução Russa. Sluzhebnyy roman (1978) foi uma comédia cáustica campeã de público. Sportloto-82 (1982) é um exemplo de sátira social com conteúdo moralizante e enganadoramente pró-sistema.

O uso preferencial da comédia para a crítica social e política na URSS pode ser explicado pelas convenções que atenuam o contundência e a seriedade das acusações e reclamações por meio do humor. Não costuma ser tão grave uma crítica na forma de uma piada do que numa denúncia formal e exaltada. O Estado soviético sempre tratou de maneira mais branda a crítica enviesada no humor ou atenuada pela ficção.

Soleni Fressato, ao analisar o julgamento e a imagem da sociedade rural brasileira feita pelo cineasta e ator Mazzaropi em filmes rodados inclusive durante a ditadura militar, emprega os conceitos de cultura popular, circularidade cultural e da crítica pelo riso, desenvolvidos por Mikhail Bakhtin. Conceitos importantes também para a compreensão do cinema humorístico e crítico na União Soviética:

Contexto de repressão não muito distante ao que Bakhtin vivia, na então União Soviética. Talvez, por isso Bakhtin tenha se sentido atraído e interessado pela obra de Rabelais, autor pouco conhecido e estudado em seu país. Referenciando outro espaço e tempo, Bakhtin refletiu sobre a situação da cultura popular na União Soviética e nos deixa uma mensagem clara e precisa: por mais eficiente e homogeneizante que seja a cultura dominante, sempre existe espaço para o deboche, para a rebeldia e para o protesto, enfim para a cultura popular (FRESSATO, 2009, p. 37).

O autor russo chama a atenção para a existência de uma dualidade na concepção de mundo do homem medial, cindido entre a cultura oficial e a cultura popular, entre o mundo da seriedade litúrgica e do poder e o do humor da contestação. Essa mesma dualidade existe em níveis diferentes de intensidade em relação ao poder político constituído em qualquer regime autoritário, como o soviético. Se na Idade Média a festa, o carnaval, sancionavam o riso, na URSS ele era disseminado pela rica tradição das anekdotys, o sarcástico anedotário russo, possuindo um espaço reservado nos bares (no período pós-Stalin), nos grupos de discussão, na família e, também, em algumas obras fílmicas. Havia espaços e momentos próprios para a repetição mecânica da ideologia oficial e o mesmo para sua negação (POCH-DE-FELIU, 2003) ou reinterpretação (LEWIN, 1988). A propaganda ou informação advinda de meios de confiança do governo poderiam ser simplesmente rejeitadas ou invertidas pela desconfiança crônica dos ouvintes, ou então trabalhada e refletida em grupos de discussão informais, que poderiam existir em vários locais diferentes como o coletivo de trabalho, áreas de lazer, reuniões familiares e de amigos, ou departamentos acadêmicos.

Esses grupos são endêmicos em sociedades com um controle da informação oficial mais rígido, como era o caso soviético. Ainda segundo Lewin (1988), por meio de sua existência podia-se reconhecer que a informação não-oficial, verdadeira ou não, fatos e boatos, comprometiam o monopólio dos meios de comunicação nas mãos do Estado e faziam essa mesma informação fluir rapidamente. Eles espalhavam também o anedotário, e eram tão eficientes que, mesmo sem qualquer comunicado nos jornais e telejornais, multidões se aglomeraram para o funeral do roqueiro dissidente – já que seu tom era considerado politizado e crítico demais pelas autoridades para que fosse executado nas emissoras de rádio como as músicas dos demais grupos de rock – Vysotsky em 1980 (BROWN, 2010, p. 411). Um evento de curta duração.

O cinema cômico soviético permite observar sua sociedade de uma maneira muito mais rica do que as teorias do totalitarismo. A existência da condenação, da resistência, da sátira não só abertas e públicas, mas veiculadas por produtos provenientes de empresas pertencentes ao próprio Estado (os estúdios) seria simplesmente impensável. Nesse sentido, Fressato muito bem pode ser citada: “para Ginzburg (1987) é possível saber mais sobre a cultura camponesa do período, consultando a obra de Rabelais do que qualquer outra fonte, sendo esse o grande mérito do conceito de circularidade” (FRESSATO, 2009, p. 35). O mesmo é válido para os limites do poder do Estado na URSS e para a importância da fonte fílmica.

Com o tempo, a prática da paródia, da sátira, se disseminou da cultura popular para a erudita, no Renascimento. Com o cinema cômico soviético aconteceu algo similar. A circularidade cultural permitiu a introdução de imagens e anedotas populares nas películas. Também houve espaço (especialmente nos anos Kruschev) para a constituição de um “circuito comunicacional”1 entre o humor popular, a literatura e a crítica escrita dentro de limites tácitos2 e o cinema.

O cinema na URSS, ao contrário do que as teorias do totalitarismo insinuam, não era a máquina de lavagem cerebral, o núcleo do aparato de coerção ideológica das massas, como aparece, por exemplo, em Pereira (2012, p. 19), Kenez ou Overy. Aqueles filmes mais intensamente carregados de propaganda política não eram os mais vistos por essas mesmas massas. A população soviética apreciava, acima de tudo, a fuga dessa propaganda. As películas com maior público eram as comédias, portadoras do escapismo, da diversão suave, e da sátira. Tais filmes foram, ao contrário de muitos dos filmes mais valorizados pelo regime, ou ao menos, seus jornais, suficientemente influentes entre os soviéticos a ponto de que algumas de suas frases passassem a compor o vocabulário popular. São eles também os que permaneceram na mente dos soviéticos.

O sistema de produção e distribuição privados dos tempos czaristas foi substituído pelo modelo estatal, com a nacionalização e expropriação de cinemas, estúdios e instrumentos, em 1919. O regime descentralizado foi substituído pelo centralizado, a partir de 1929. O cinema passou a contar com um ministério, com agências de fomento e controle. As constantes reorganizações burocráticas também atingiram os órgãos estatais encarregados do cinema. A antiga Sovkino (Companhia de Estoque de Fotografia e Cinema para toda Rússia), que cuidava da distribuição, foi extinta. Seu lugar foi preenchido com a maior e mais poderosa Soyouzkino (Cinema da União). A produção de filmes passou a ser prevista numericamente pelos planos quinquenais estipulados pelos ministérios a partir de Moscou, bem como a sua distribuição e uma previsão do público pagante de ingressos que deveriam alcançar. Esse processo ocorreu não sem embates entre aqueles que desejavam que o cinema fosse franco e os que previam que o valor dos ingressos deveria ajudar no financiamento da produção fílmica centralmente planejada. Se esse financiamento deveria ser feito apenas com base nos filmes nacionais e se estes deveriam ser os únicos exibidos no país, ou se deveria usar a atração dos filmes estrangeiros para arrecadar recursos para o ministério. Se a arte deveria se render ao produtivismo e ao consequente aumento quantitativo de películas lançadas. Como e em que medida se deveria adotar o realismo socialista e em que ele exatamente consistia. Ou ainda sobre a forma da distribuição das películas através do vasto país, e de seu público diferenciado – quando urbano ou rural.

Durante os primeiros tempos da planificação, os cineastas e diretores dos estúdios de filmagem foram compelidos a se adaptar à nova realidade no sistema de produção e nas novas restrições à liberdade artística contidas no padrão desejado pelos preceitos do “realismo socialista” por meios variados, que iam do fim do financiamento até a execução no paredão. Ao lado dos filmes que os estúdios escolhiam produzir para atingir sua cota prevista de filmes e de gastos financeiros, existiam também encomendas do Estado. Eram em geral obras comemorativas, portanto louvatórias e palco privilegiado para a propaganda política. Seu tema era fornecido e imposto pelo próprio governo e por isso mesmo era acompanhada mais de perto pelo aparato de vigilância. No período pós-Stalin, que é aqui analisado, a pior condenação que um cineasta sofreu foi o exílio forçado de Tarkovsky (BIRD, 2008), realizado no mesmo estilo daquele que foi infligido a Chaplin pelo governo americano: aproveitou-se que ele já se encontrava em viagem no exterior, na Europa Ocidental, para proibir seu retorno ao país. Exílio decretado exatamente no período Brejnev.

Com a desestalinização do sistema soviético promovida por Kruschev, a maior fonte de censura passou a ser a promovida pelos próprios diretores e produtores e não mais pela polícia secreta. Esta pode se afastar e baixar suas atividades. A autocensura era desejável pelo corpo cinematográfico uma vez que existiam várias empresas produtoras disseminadas pelo vasto país. Realizar filmes que provocassem o regime levaria ao corte do financiamento e a diminuição de pedidos de novos filmes para os estúdios e os cineastas envolvidos, atingindo seu bolso e seu estilo de vida. Esses recursos seriam destinados para os produtores que permanecessem dentro das regras tácitas. Ainda assim, como os estúdios escolhiam livremente diretores e roteiros quando não se tratavam de obras comemorativas encomendadas pelo Estado, cineastas consagrados sempre encontravam emprego mesmo depois de ter censuradas cenas ou mesmo o filme inteiro pelo governo, como foi o caso de Alexei German (LAWTON, 1992), Andrei Tarkovsky (BIRD, 2008), ou um dos cineastas aqui analisados, Gennadi Poloka.

Portanto, o sistema de produção e distribuição do cinema soviético, se totalmente pertencente ao Estado e vigiado por agências de censura como a Glavit (ou mesmo podendo sofrer a visita do KGB em situações mais sérias), mesmo quando se pretendeu que fosse uma máquina de propaganda, não conseguiu cumprir esse papel diante do necessário consumo, transmissão, recepção e interiorização dos produtos de propaganda pelo público. Apesar dos diretores e roteiristas sofrerem pressões por parte dos controladores dos estúdios cinematográficos, do aperto financeiro do Estado e do acompanhamento do aparato de repressão do regime autoritário que existia na União Soviética, ainda assim conseguiam espaço para inovar, experimentar, e realizar críticas mais ou menos abertas (mas restritas) ao sistema soviético. O uso do riso na produção fílmica para a crítica também expressava o que já ocorria na sociedade, especialmente após a morte de Stalin e da reestruturação do aparato de segurança interno:

O sério é oficial, autoritário, associa-se à violência, às interdições, às restrições. Há sempre nessa seriedade um elemento de medo e de intimidação. Ele dominava claramente na Idade Média. Pelo contrário, o riso supõe que o medo foi dominado. O riso não impõe nenhuma interdição, nenhuma restrição. Jamais o poder, a violência, a autoridade empregam a linguagem do riso (BAKHTIN, 1999, p. 78).

Uma vez que existia o discurso grave e oficioso de filmes que endossavam e repetiam o discurso e a ideologia sancionados, a sátira aos mesmos era algo quase obrigatório, como expõe Bakhtin para o cenário do Renascimento e o embate entre o crescente poder real e a resistência dos costumes da cultura popular.

O uso do filme como fonte já fora proposto por Ferro (1976; 1992a). O autor também mostrara como ele era fonte de inquietação e objeto de controle tanto nas “democracias liberais” quanto nas “democracias populares”. O filme é produção de uma dada sociedade e expressa seu funcionamento de forma latente, conscientemente ou não, voluntariamente ou não. E pode ser uma fonte para além dos documentos escritos:

Partir da imagem, das imagens. Não procurar nelas exemplificação, confirmação ou desmentido de um outro saber, aquele da tradição escrita. Considerar as imagens tais como são, com a possibilidade de apelar para outros saberes para melhor compreendê-las [...]. Eles [os historiadores da Nova História] reconduziram a seu legítimo lugar as fontes de origem popular, escritas, de início, depois não escritas. Resta estudar o filme, associá-lo ao mundo que o produz. A hipótese? Que o filme, imagem ou não da realidade, documento ou ficção, intriga autêntica ou pura invenção, é História; o postulado? Que aquilo que não se realizou, as crenças, as intenções, o imaginário do homem, é tanto a História quanto a História (FERRO, 1976, p. 203).

Ferro também estabelece o método para se ler o filme como um documento escrito, bem como para se perceber as entrelinhas, mensagens não declaradas ou involuntárias da qual ele é portador, expressão de seu diretor, produtor, atores, da sociedade e do embate durante e após a realização e edição do produto final entre estes elementos:

Demais, a parte inesperada, involuntária, pode também ser grande nesse caso. Esses lapsos de um criador, de uma ideologia, de uma sociedade constituem reveladores importantes. Podem ocorrer em todos os níveis do filme, como na sua relação com a sociedade. Seus pontos de ajustamento, os das concordâncias e discordâncias com a ideologia, ajudam a descobrir o latente por trás do latente, o não-visível através do visível (FERRO, 1976, p. 204).

O filme analisado pelo autor, Dura Lex, produzido nos anos 1920, contém uma crítica consciente e oculta ao sistema soviético (situação parecida com a dos três filmes da era Brejnev escolhidos para a análise), expressa no roteiro, adaptação de um livro e que continha vários pontos alterados frente ao mesmo. Assim tornou-se perceptível

uma zona de realidade não-visível. Nessa sociedade soviética, o crítico esconde em si mesmo as verdadeiras razões de sua atitude (acordo/desacordo) frente ao filme. O realizador transpõe (conscientemente/inconscientemente) uma narrativa da qual ele inverte inteiramente o argumento (se o dizer, sem que seja dito, sem que ninguém o queira ver) (FERRO, 1976, p. 207).

A primeira das películas de humor selecionadas, Interventsiya (Intervenção), de Guennadi Poloka, foi produzido a partir da estilização do roteiro de Lev Slavin, numa época em que a ampla liberdade artística sob Kruschev ainda está sendo reprimida e procura-se fazer concessões as novas tendências mais repressoras (HUTCHINGS, 2005, p. 125). Promove uma crítica à história oficial da Revolução Russa, a mesclando e atenuando com a citação de elementos dessa mesma história, especialmente no início (tentativa de equilíbrio e de permanecer dentro do jogo não declarado de liberdade artística e de repressão à dissidência que perde força ao longo do filme). Interventsiya se identifica logo de início, com a apresentação de um narrador, como um musical, um “drama-bufo”, farsa com forte linguagem teatral. O filme apresenta cenas caóticas, rápidas, de perseguições, com mudanças bruscas na angulação, com uma sucessão de personagens e situações. Isso reforça a imagem da confusão reinante e a diversidade de facções em que as antigas elites russas ou classes dependentes e ligadas a elas estavam divididas, nas quais o filme se concentra. Essa apresentação da Revolução Russa como caos faz eco ao anedotário popular. Algumas piadas apresentam Lenin como um grande líder frente aos demais dirigentes do Kremlin, mas outras não perdoam mesmo ele. Muitas vezes o processo revolucionário foi associado com bagunça. Isso se deve tanto a oposição, a negação e a inversão do discurso oficial como reminiscências dos setores que foram derrotados em 1917-21 e que não emigraram. Poloka, mesmo tendo seu filme censurado, foi chamado para dirigir outra película no ano seguinte (1970). Antes de Interventsiya, realizara apenas dois filmes (1963, 1966). Depois dele dirigiu outros sete em tempos soviéticos.



Sluzhebnyy roman (1977), de Eldar Ryazanov, foi um dos maiores sucessos da história do cinema soviético em termos de bilheteria e audiência. É um filme tão popular que recebeu uma refilmagem recentemente (2011). A tradução literal é Romance de escritório. Mas também pode significar Romance burocrático – o que é mais relevante frente a história, uma crítica humorada construída sobre a visão negativa dos extratos médios da sociedade sobre a burocracia soviética. E como romance burocrático, as ações mais simples como uma conversa ou a entrega de flores se transformam em verdadeiros transtornos e em dificuldades sem fim. A mistura de romances melodramáticos com a comédia e a sátira ao sistema soviético não foi uma fórmula usada uma única vez. Ele repetiu o estilo em A garagem (1979) e Estação para dois (1982) (BEUMERS, 2009, p. 172). Novoseltev, o protagonista, precisa usar o transporte coletivo. Olha com admiração o carro com motorista sempre à disposição da diretora Kalugina ou o luxuoso Volga de Samokhvalov. Este é um soviético que estudou por anos no Ocidente, portador de valores morais, padrões de consumo e comportamentos sociais diferenciados. Para conseguir o cargo de diretor assistente, agenda entrevistas com a diretora por meio da secretária do escritório, sempre recompensada com produtos ocidentais, como maços de Marlboro. Como Novoseltev lembra que ela sempre veste roupas de grifes importadas e ninguém sabe como poderia possuí-las (devido aos altos valores praticados no mercado negro) é obrigatório concluir que essa prática era sua rotina. Novoseltev têm medo e rancor de Kalugina, mas seu amigo Samokhvalov o faz perceber ele não terá nenhuma chance de ascensão social no escritório. A menos que conquiste Kalugina e a faça indicá-lo para uma vaga na diretoria. Sua (desastrosa) aproximação é inteiramente calculista. Nesse sentido, é um retrato da URSS dos anos 1970. Quando o ritmo de crescimento econômico arrefeceu, a mobilidade social, que até então marcara a sociedade do país, estagnou também (LEWIN, 2007) e a vasta massa de recém-formados precisou se sujeitar a empregos de menor importância e salário, enquanto os praktiki, diretores práticos, sem estudo, forjados na necessidades da era de rápido crescimento, distribuíam as vagas, gerando um profundo descontentamento social, base para o cinismo que tomou conta da sociedade (LEWIN, 1988, p. 41).Consumir não era mais um pecado burguês há muito tempo. Com a estabilização da sociedade após a morte de Stalin, sem expurgos, fuzilamentos, campanhas de mobilização de massas, vigilância intensa, a normalização do êxodo rural, a consolidação das tendências urbanas e industriais, uma crescente conscientização da posição social emergiu. É um equívoco chamar esse processo de conscientização de classe, como Todd faz, uma vez que é difícil se falar em classes quando estas não estão amparadas por diferentes posições legais no controle da propriedade. Num sistema estatal como o soviético, faz mais sentido falar em conscientização de extrato social. Como Lewin (2007) e Fernandes (2000) lembram, também é um equívoco acreditar que o sistema soviético era controlado pela burocracia, uma vez que, na prática, todos trabalhavam para o Estado e todos eram burocratas. Os extratos médios de profissionais, técnicos, especialistas, ressentia-se de ter que dividir filas para o consumo e os serviços públicos com as camadas mais pobres de trabalhadores manuais, enquanto administradores, gerentes, diretores e políticos desfrutavam dos privilégios concedidos à nomemklatura. Nessas condições, a burocracia – associada à presença ou ao comando dos extratos mais altos – passou a ser vista como um corpo negativo dentro da sociedade. O ambiente é o de um escritório de estatísticas ligado a algum dos inúmeros ministérios econômicos – talvez ao GOSSNAB, do abastecimento. Os diálogos são carregados de ironia sobra a importância apregoada pelo governo ao aparato de gestão econômica.

Sportloto-82 (1982), de Leonid Gaidai, ao promover uma crítica bem humorada ao sistema, também o reforça, através de um discurso moralista. O roteiro lembra o de muitos filmes ocidentais: um bilhete premiado da loto esportiva é perdido, gerando uma corrida entre mocinhos e bandidos. São dois os focos da crítica do filme: a juventude soviética e a desigualdade social. Mostra jovens mergulhados no padrão de consumo de seus pares ocidentais, como rock (que forma a trilha musical), calças e jaquetas jeans, roupas country, calças com boca de sino e golas largas, camisas com expressões em inglês. Mas divididos quanto a origem nacional ou importada desses mesmos objetos de consumo: Coca-Cola, Pepsi ou Baikal? Marlboro ou fumo da Ásia Central? Também há o desejo de viajar – os jovens ficam impressionados com as viagens de Sanych para fora do Leste Europeu, mas precisam se contentar com as praias da Criméia. Sanych e seu sócio Stepan são contrabandistas que enriquecem com o tráfico de produtos frescos, como laranjas. Enquanto alguns vão para hotéis de luxo nas montanhas e outros para acampamentos motorizados, Kostya, dono do bilhete, passa suas férias num galinheiro. Como Todd demonstra (1976), a sociedade soviética não era homogênea. Mas ao contrário do que afirma (1976, p. 46), não era menos igualitária que a da Europa Ocidental (muito pelo contrário).

A relativa liberdade desfrutada pelo cinema soviético nos anos Brejnev teve uma brusca interrupção com o seguinte líder, Yuri Andropov. Saído do aparato do KGB, possuía uma compreensão diferente do papel da censura num sistema fechado como o soviético. Para ele, o regime não poderia se manter de pé sem o uso intensivo do controle sobre a circulação de informação e o abafamento da crítica. Como chefe do KGB, Andropov já havia reduzido a dissidência política e os samizdat de oposição ao regime a uma quase total nulidade (BROWN, 2010, p. 410). Uma vez na cúpula do Kremlin, agora poderia apertar a vigilância também sobre a produção cinematográfica. No período 1982-1985, “alcançaram grande sucesso aqueles filmes onde os problemas sociais não têm praticamente nenhum papel, tendo sido deslocados por histórias de amor ou dramas familiares, ou por contos de conflito pessoal” (LAWTON, 1992, p. 266). Uma maior contenção que preparou os ânimos para a explosão de insatisfação com as liberdades novas e sempre em expansão da glasnost. Nos anos Brejnev, entretanto, o riso teve seu lugar garantido como contestação e crítica moderada aos problemas do país, como lembra o narrador de Interventsiya:

Você pode rir. Rir é permitido. Mas se você gosta de chorar, então chore. Porque se você nem chorar nem rir, então... em seguida, despeça-se de seu dinheiro.



Referências bibliográficas

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Fontes

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POLOKA, Gennadi. Interventsiya (107 minutos) Lenfilm: 1969.

RYAZANOV, Eldar. Sluzhebnyy roman (159 minutos) Mosfilm: 1977.



1 O circuito comunicacional é definido por Valim como um “circuito consumo-mediação-produção (circuito comunicacional) com vistas a tratar adequadamente das mediações institucionais e culturais que regulam, permitem ou impedem a produção e o consumo de filmes, indo ao encontro da carreira, da trajetória das imagens”. Que também exemplifica o conceito dentro do contexto do reforço do imaginário anticomunista na sociedade, em publicações e no cinema: “As manifestações, e os folhetos distribuídos por organizações anticomunistas; os documentos estadunidenses enviados para o DOPS; as matérias em jornais e revistas informando a população sobre “as infiltrações comunistas”; compõem parte de um circuito comunicacional. Juntamente com outros textos, formaram o sistema de representações ficcionais ou sociais que deram o suporte para que o ideário anticomunista se tornasse inteligível. Outrossim, se observarmos o contexto de produção e circulação desses discursos, as mensagens presentes nesses documentos e as redes de práticas que renovaram e defenderam esse sistema ideológico, conseguiremos nos aproximar e compreender como um complexo de relações entre os textos e as condições sociais de sua produção e consumo construiu a hegemonia política que fomentou e difundiu o anticomunismo em meados do século XX” (VALIM, 2006, p. 30; 147).

2 A revista satírica Krokodil, fundada em 1922 e de distribuição semanal, era o principal veículo impresso voltado para o humor dentro da URSS. Apesar de suas charges serem direcionadas especialmente para a condenação e o motejo do modo de vida ou da política ocidentais, também satirizava “inconvenientes elementos isolados da vida soviética” (SMORODINSKAYA; ROMAINE; GOSCILO, 2007, p. 312). Corrupção, irresponsabilidade, preguiça e indisciplina no trabalho, a economia soviética, comportamento social, a burocracia, o “departamentalismo”, a rotina dos escritórios. Havia um amplo leque da realidade do país que era tratada com comicidade em suas páginas. E o anedotário se fazia presente.


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