A DIFUSÃO DA IMAGEM DOS MANDINGAS COMO FEITICEIROS NO ATLÂNTICO
Demonstrei como os termos mandinga e mandingueiro no Brasil colonial foram associados ao significado de feitiçaria. Mas esta relação entre mandingas e feitiçaria não teve início no Brasil, mas na Alta Guiné. Os três principais agentes de propagação desta ideia estereotipada foram os viajantes, os missionários e a Inquisição.
Os primeiros viajantes e cronistas portugueses do século XV não tinham informações precisas sobre os mandingas. Sabiam, por meio das informações que corriam no Norte da África que os mandingas habitavam uma região onde havia abundância em ouro e que o Mandi Mansa (imperador do Mali) governava vários povos. Pode-se constatar isso desde os relatos de Duarte Pacheco Pereira (1460-1533) e João de Barros (1496-1570. Por volta de 1593, André Alvares Almada (c. 1550-1603) escreveu a mais importante obra sobre a região da Guiné, na qual apresentou os mandingas como guerreiros, traiçoeiros, ladrões, matadores de brancos, grandes comerciantes que vendiam, dentre outras mercadorias, ouro e escravos, controladores das fortalezas ao longo do Rio Gâmbia, e religiosos que difundiam o islamismo pela Costa e interior.60
No início do século XVII, o capitão André Donelha, baseado em sua experiência de prático dos rios da Guiné, descreveu o rio Gâmbia e suas potencialidades econômicas, e forneceu preciosos informações sobre as populações que viviam ao longo do citado rio, como os mandingas. Estava claro para Donelha a grande abrangência política do poder do Mandi Mansa, o Imperador do Mali, e da importância da língua mandinga. Além disso, ele enfatiza o papel dos mandingas como mercadores e pregadores do islamismo. Mas foram os predicadores do Islamismo que incomodou o português cristão: os “bixirimis, que são os sacerdotes”, aproveitavam-se do comércio para “samear a maldita seita de Mafoma antre a gente bárbara. Correm todo o sertão da Guiné e todos os portos do mar, e assim se não achará nenhum porto, desd’os Jalofos, São Domingos, rio Grande até Serra Lioa, que neles se não achem Mandingas bixirimis.”61 Donelha confirmou o que a maioria dos autores já observara: a importância dos bexerins entre os mandingas, principalmente no Gâmbia, e da notável relação entre a atividade mercantil e o proselitismo religioso:
“(...) o que levam para vender são feitiços em cornos de carneiros e nóminas e papeis escritos, que vendem por relíquias, e com vender tudo isso sameiam a seita de Mafamede por muitas partes e vão em romaria à casa de Meca e correm todo o sertao d’Etiopia”.62
No final do século XVII, o Governador-Geral do Cabo Verde e Guiné, Manuel da Costa Pessoa, encarregou o capitão português Francisco Lemos Coelho de escrever uma descrição da “distribuição geográfica dos povos indígenas, suas crenças, seus hábitos”, porque era “bem conhecedor dos assuntos versados”.63 Sua obra reforça a opinião da importância do rio Gâmbia como local de comércio controlado pelos Mandingas. A região que se estendia à margem, habitada por mandingas e por outros povos que absorveram os seus costumes islâmicos e então passaram a ser chamados também de mandingas (processo de malinkização). Para Coelho, os povos vizinhos dos mandingas, como os falupos e banhús, não eram convertidos ao islamismo e “não observão religião nenhuma”, mas “não faltão mandingas que os enganão com seus embustes”.64 Em 1688 foi publicada em Lyon uma obra para contar os feitos financiados pelo rei francês contra corsários e “bárbaros”. Nesta, consta uma descrição do povo mandinga, como cavaleiros intrépidos, que comercializam com mercadores árabes em Tombuctu, e que eram mágicos:
Os povos de etnia Mandinga eram antigamente grandes Idólatras & muito fortes na magia & nos encantamentos. Eles têm muitos videntes & Mágicos que chamam de Bexerins, após alguns anos eles difundiram suas idéias junto aos seus vizinhos por meio do seu comércio. O seu soberano Pontífice reside na capital do Reino: diz-se que é um famoso Mágico que há depois do Rei de Bena que evoca os Demônios & e se usa disto para atormentar os seus inimigos.65
Como se pode notar, os viajantes dos séculos XVI e XVII, e particularmente, os capitães, a serviço da Coroa Portuguesa, compreenderam o domínio econômico e cultural dos povos mandingas sobre os demais povos da Guiné. Os mandingas eram grandes comerciantes (em língua malinquê diulas), os quais difundiam a língua malinquê e o islamismo. Apesar da concorrência comercial e religiosa66, os portugueses buscavam fazer alianças para ter acesso às mercadorias que vinham do interior, porque não tinham permissão dos régulos locais para adentrar e nem resistiam às doenças da terra. Estas informações revelam o tipo de representação que existia em relação aos povos mandingas quando os jesuítas chegaram à Guiné para realizar a primeira missionação na região.
Em julho de 1604, desembarcou em Santiago, Ilha de Cabo Verde, três sacerdotes jesuítas e um irmão para realizar a Missão da Guiné. O padre Baltazar Barreira foi designado como superior da Missão. O objetivo era converter os negros e incorporar o “novo reino” ao corpo da cristandade. Quando chegou a Guiné, Barreira já um velho experiente no trato com os extra-europeus. Ele já contava com anos de prática adquirida em outra missão ultramarina, onde atuou na conversão dos povos da África Centro-Ocidental durante quase vinte anos. Em seus primeiros relatos, pode-se notar muitas semelhanças entre seus escritos e o de Almada. O velho Baltazar preocupou-se em identificar quais os costumes e crenças dos nativos para elaborar a melhor o sistema de mediação e conversão. Para o padre, com exceção do islamismo, não havia outra religião na região da Guiné – apenas superstições e gentilidades. Ao fazer descrições etnográficas das populações de Cabo Verde, Rios da Guiné até Serra Leoa, Barreira descreveu os mandingas da seguinte maneira
Seguem a ceita de Mafoma como os mais que atras ficaõ, e tem misquitas e escolas de leer e escreuer, e muytos casizes, que leuaõ esta peste a outros Reinos da banda do Sul, enganando a gente com nominas que fazem de metal e de coiro, muyto bem lauradas, en que mete escritos cheos de mentiras, afirmando que tendo consigo estas nominas nê na guerra nê na paz auerá cousa que lhes faça mal.67
O padre Manuel Alvares que se integrou à Missão em 1607 fez descrições semelhantes dos mandingas. Sobretudo, enfatizando o papel deles como propagadores do Islamismo e vendedores de amuletos: “andaõ metidos com esta gentilidade e os enganão dandolhe nóminas e huns relicários que trazem ao pescoço, assi como os agnus Dei e outras reliquias.”68 A prática religiosa mandinga, era marcada pela difusão do Islã, uso de talismãs que protegiam o corpo de males cotidianos, das enfermidades, dos feitiços, dos desentendimentos entre as pessoas e das guerras que assolavam as aldeias, naquele turbulento contexto de produção de cativos para alimentar o tráfico. Os talismãs mandingas eram manufaturados geralmente em couro cozido, em formato de uma bolsinha ou feitos de metal ou de couros de animais; colocava-se dentro deles orações do Alcorão escritas em árabe. Eram produzidos pelos bexerins que os distribuíam ou vendiam durante suas atividades comerciais e religiosas por toda a Costa da Guiné. Costumava-se usá-los pendurados ao pescoço ou nas roupas, sendo que, quanto maior a quantidade deles, mais protegida ficava a pessoa. Eram amplamente usados pelos sacerdotes, comerciantes, guerreiros, pessoas comuns e até colocados em cavalos.
Na primeira década da Missão, a maioria dos padres que chegavam à Guiné morriam das “febres da terra”, certamente malária, outros se envolviam no tráfico de escravos e o restante era insuficiente para prestar assistência religiosa aos povos que habitavam a região dos Rios da Guiné e Cabo Verde. De 1604 a 1622 cerca de 35 cartas foram envidas pelos missionários da Guiné ao provincial em Lisboa, ao Rei de Portugal e Espanha e outros padres da Ordem. Ao mesmo tempo que as cartas relatavam os desafios da missionação, exaltavam o sucesso do trabalho missionário. Os objetivos das cartas eram inventariar o acontecido e prever a evolução futura das ações. Adriano Prosperi confirma o caráter propagandístico dessas cartas e a evidência, nos textos, de íntima associação entre “exotismo e apaziguamento cultural”, ou seja, transmitiam-se informações sobre as práticas dos gentios e se acrescentavam as notícias reconfortantes de suas conversões e adequações ao modelo europeu.69 Para dar apenas um exemplo do grau de abrangência e circulação dessas cartas, elas foram lidas pelo jesuíta padre Alonso Sandoval, que atuava em Cartagena das Índias, quando escreveu sua obra, entre 1617 e 1619. 70 Ele reproduziu na obra cartas enviadas pelos religiosos de sua ordem residentes em outra partes do Império, Luanda e Guiné, como as cartas de Baltazar Barreira. Obviamente que as informações sobre os mandingas descritos como feiticeiros pelo padre Sandoval, e veiculadas pela Companhia de Jesus, através das várias edições da referida obra, são resultados desses registros baseados no que os missionários viam, ouviam e imaginavam e foram adquirindo grau de verdade para Igreja.
Conforme foi demonstrado nesse ensaio, o termo mandingueiro foi propalado muito pela Inquisição, ao perseguir, investigar e prender pessoas acusadas de portar amuletos para proteção do corpo. Criada em 1536, a Inquisição de Lisboa atuou na África Ocidental, por meio de seus agentes locais e recebeu pouquíssimas denúncias relacionadas às crenças dos “pagãos” e muçulmanos da região dos Rios da Guiné e Cabo Verde. Além disso, os agentes locais a serviço da Inquisição tinha braços curtos no continente africano, devido ao poder das chefaturas locais, a presença tímida da Igreja que não despendia de contingente para converter os povos e promover a manutenção da sua fé. Portanto, a perseguição recaiu sobre os judeus e cristãos-novos, numa época de disputa de mercados e maior desenvolvimento dos negócios junto às das sociedades Atlânticas africanas.
Importante destacar que os moradores da Guiné, Cabo Verde, Angola, Brasil e Portugal, acusados de portar amuletos foram todos denominados mandingueiros, e o amuleto bolsa de mandinga. De modo geral, os negros denunciados à Inquisição por porte de amuletos que receberam condenações, tiveram seus delitos classificados como pacto demoníaco, feitiçaria, superstições. Portanto, foi a Inquisição Portuguesa quem mais difundiu o termo mandinga com o sentido de feitiçaria por todo o Atlântico. Ao atribuir grande poder às bolsinhas, estabeleceu uma forte relação entre a magia dos africanos e poder de tais amuletos.
Conclusão.
Em seu estudo sobre a malinkização da Guiné no período de expansão do Kaabu, Carlos Lopes explica que, diante do poderio econômico dos mandingas, da importância da língua malinké e da sua influência política, os demais povos passaram a se identificar como mandingas. Nesta zona de influência Kaabunquê etnônimos foram apropriados e novas identidades criadas. Com isso, concluo afirmando que não se pode cair no erro de simplificar as dinâmicas políticas e culturais de ambos os lados do Atlântico e transferir taxonomias étnicas da África para o Brasil. Somente com ferramentas sofisticadas sobre a experiência dos africanos é possível identificar suas etnicidades e possíveis traços de sua cultura de origem. É preciso saber como o sujeito se declarava e/ou seguir as pistas das suas experiências nas fontes. Portanto, insisto na tese de que, no Brasil, mandingueiro não era mandinga, mas uma referência aos usos de práticas mágicas para proteção do corpo.
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