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Nem nuvem cobre o céu, nem na gente anda


Trabalhoso cuidado ou peso grave.

Nova cor toma o Sol, ou se erga. ou lave

No claro Tejo, e nova luz nos manda.
Tudo se ri, se alegra e reverdece.

Todo mundo parece que renova.

Nem há triste planeta ou dura sorte.
[26] A minh’alma só chora e se entristece.

Maravilha d’Amor cruel e nova!


O que a todos traz vida, a mim traz morte.
(AMORA, Antônio Soares. Era Clássica. 5. ed. São Paulo: DIFEL, s. d. p. 25-26.)

CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. Ed. organizada por Emanuel Paulo Ramos. Porto: Porto, s. d.


42 - OS LUSÍADAS




[130] CANTO TERCEIRO

131


Qual contra a linda moça Policena,

Consolação extrema da mãe velha,

Porque a sombra de Aquiles a condena,

Co ferro o duro Pirro se aparelha;

Mas ela, os olhos com que o ar serena

(Bem como paciente e mansa ovelha)

Na mísera mãe postos, que endoudece,

Ao duro sacrifício se oferece:


[162]

132


Tais contra Inês os brutos matadores,

No colo de alabastro, que sustinha

As obras com que Amor matou de amores

Aquele que despois a fez Rainha,

As espadas banhando, e as brancas flores,

Que ela dos olhos seus regadas tinha,

Se encarniçavam, férvidos e irosos

No futuro castigo não cuidosos.


133

Bem puderas, ó Sol, da vista destes,

Teus raios apartar aquele dia,

Como da seva mesa de Tiestes,

Quando os filhos por mão de Atreu comia!

Vós, ó côncavos vales, que pudestes

A voz extrema ouvir da boca fria,

O nome do seu Pedro, que lhe ouvistes,

Por muito grande espaço repetistes!
134

Assi como a bonina, que cortada

Antes do tempo foi, cândida e bela,

Sendo das mãos lacivas maltratada

Da minina que a trouxe na capela,

O cheiro traz perdido e a cor murchada:

Tal está, morta, a pálida donzela,

Secas do rosto as rosas e perdida

A branca e viva cor, co a doce vida.
135

As filhas do Mondego a morte escura

Longo tempo chorando memoraram,

E, por memória eterna, em fonte pura

As lágrimas choradas transformaram.

O nome lhe puseram, que inda dura,

Dos amores de Inês, que ali passaram.

Vede que fresca fonte rega as flores,

Que lágrimas são a água e o nome Amores!
[163]

136


Não correu muito tempo que a vingança

Não visse Pedro das mortais feridas,

Que, em tomando do Reino a governança,

A tomou dos fugidos homicidas;

Do outro Pedro cruíssimo os alcança,

Que ambos, imigos das humanas vidas,

O concerto fizeram, duro e injusto,

Que com Lépido e António fez Augusto.


137

Este, castigador foi rigoroso

De latrocínios, mortes e adultérios;

Fazer nos maus cruezas, fero e iroso,

Eram os seus mais certos refrigérios.

As cidades guardando, justiçoso,

De todos os soberbos vitupérios,

Mais ladrões, castigando, à morte deu,

Que o vagabundo Alcides ou Teseu.
138

Do justo e duro Pedro nasce o brando

(Vede da natureza o desconcerto!),

Remisso e sem cuidado algum, Fernando,

Que todo o Reino pôs em muito aperto;

Que, vindo o Castelhano devastando

Às terras sem defesa, esteve perto

De destruir-se o Reino totalmente;

Que um fraco Rei faz fraca a forte gente.
139

Ou foi castigo claro do pecado

De tirar Lianor a seu marido

E casar-se com ela, de enlevado

Num falso parecer mal entendido,

Ou foi que o coração, sujeito e dado

Ao vício vil, de quem se viu rendido,

Mole se fez e fraco; e bem parece

Que um baxo amor os fortes enfraquece.
[164]

140


«Do pecado tiveram sempre a pena

Muitos, que Deus o quis e permitiu:

Os que foram roubar a bela Helena,

E com Ápio também Tarquino o viu.

Pois por quem David Santo se condena?

Ou quem o Tribo ilustre destruiu

De Benjamim? Bem claro no-lo ensina

Por Sarra Faraó, Siquém por Dina.


141

E pois, se os peitos fortes enfraquece

Um inconcesso amor desatinado,

Bem no filho de Almena se parece

Quando em Ônfale andava transformado.

De Marco António a fama se escurece

Com ser tanto a Cleópatra afeiçoado.

Tu também, Peno próspero, o sentiste

Despois que ha moça vil na Apúlia viste.
142

Mas quem pode livrar-se, porventura,

Dos laços que Amor arma brandamente

Entre as rosas e a neve humana pura,

O ouro e o alabastro transparente?

Quem, de ha peregrina fermosura,

De um vulto de Medusa propriamente,

Que o coração converte, que tem preso,

Em pedra, não, mas em desejo aceso?
143

Quem viu um olhar seguro, um gesto brando,

Ha suave e angélica excelência,

Que em si está sempre as almas transformando,

Que tivesse contra ela resistência?

Desculpado por certo está Fernando,

Pera quem tem de amor experiência;

Mas antes, tendo livre a fantasia,

Por muito mais culpado o julgaria.


[165] CANTO QUARTO

94

Mas um velho, de aspeito venerando,



Que ficava nas praias, entre a gente,

Postos em nós os olhos, meneando

Três vezes a cabeça, descontente,

A voz pesada um pouco alevantando,

Que nós no mar ouvimos claramente,

Cum saber só de experiências feito,

Tais palavras tirou do experto peito:
95

«Ó glória de mandar, ó vã cobiça

Desta vaidade a quem chamamos Fama!

Ó fraudulento gosto, que se atiça

Ca aura popular, que honra se chama!

Que castigo tamanho e que justiça

Fazes no peito vão que muito te ama!

Que mortes, que perigos, que tormentas,

Que crueldades neles experimentas!
[189]

96

«Dura inquietação d’alma e da vida



Fonte de desemparos e adultérios,

Sagaz consumidora conhecida

De fazendas, de reinas e de impérios!

Chamam-te ilustre, chamam-te subida,

Sendo dina de infames vitupérios;

Chamam-te Fama e Glória soberana,

Nomes com quem se o povo néscio engana!
97

A que novos desastres determinas

De levar estes Reinos e esta gente?

Que perigos, que mortes lhe destinas,

Debaixo dalgum nome preminente?

Que promessas de reinos e de minas

D’ouro, que lhe farás tão facilmente?

Que famas lhe prometerás? Que histórias?

Que triunfos? Que palmas? Que vitórias?
98

Mas, ó tu, geração daquele insano

Cujo pecado e desobediência

Não somente do Reino soberano

Te pôs neste desterro e triste ausência,

Mas inda doutro estado mais que humano,

Da quieta e da simpres inocência,

Idade d’ouro, tanto te privou,

Que na de ferro e de armas te deitou:
99

Já que nesta gostosa vaidade

Tanto enlevas a leve fantasia,

Já que à bruta crueza e feridade

Puseste nome, esforço e valentia,

Já que prezas em tanta quantidade :

O desprezo da vida, que devia

De ser sempre estimada, pois que já

Temeu tanto perdê-la Quem a dá:
[190]

100


Não tens junto contigo o Ismaelita,

Com quem sempre terás guerras sobejas?

Não segue ele do Arábio a lei maldita,

Se tu pola de Cristo só pelejas?

Não tem cidades mil, terra infinita,

Se terras e riqueza mais desejas?

Não é ele por armas esforçado,

Se queres por vitórias ser louvado?


101

Deixas criar às portas o inimigo,

Por ires buscar outro de tão longe,

Por quem se despovoe o Reino antigo,

Se enfraqueça e se vá deitando a longe;

Buscas o incerto e incógnito perigo

Por que a Fama te exalte e te lisonje

Chamando-te senhor, com larga cópia,

Da Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia.
102

Oh, maldito o primeiro que, no mundo,

Nas ondas vela pôs em seco lenho!

Dino da eterna pena do Profundo,

Se é justa a justa Lei que sigo e tenho!

Nunca juízo algum, alto e profundo,

Nem cítara sonora ou vivo engenho

Te dê por isso fama nem memória,

Mas contigo se acabe o nome e glória!
103

Trouxe o filho de Jápeto do Céu

O fogo que ajuntou ao peito humano,

Fogo que o mundo em armas acendeu,

Em mortes, em desonras (grande engano!).

Quanto milhor nos fora, Prometeu,

E quanto pera o mundo menos dano,

Que a tua estátua ilustre não tivera

Fogo de altos desejos, que a movera!
[191]

104


Não cometera o moço miserando

O carro alto do pai, nem o ar vazio

O grande arquitector co filho, dando

Um, nome ao mar, e o outro, fama ao rio.

Nenhum cometimento alto e nefando

Por fogo, ferro, água, calma e frio,

Deixa intentado a humana geração.

Mísera sorte! Estranha condição!»

[193] CANTO QUINTO
37

Porém já cinco Sóis eram passados

Que dali nos partíramos, cortando

Os mares nunca de outrem navegados,

Prosperamente os ventos assoprando,

Quando ha noute, estando descuidados

Na cortadora proa vigiando,

Ha nuvem que os ares escurece,

Sobre nossas cabeças aparece.
38

Tão temerosa vinha e carregada,

Que pôs nos corações um grande medo;

Bramindo, o negro mar de longe brada,

Como se desse em vão nalgum rochedo.

«Ó Potestade (disse) sublimada:

Que ameaço divino ou que segredo

Este clima e este mar nos apresenta,

Que mor cousa parece que tormenta?»
39

Não acabava, quando ha figura

Se nos mostra no ar, robusta e válida,

De disforme e grandíssima estatura;

O rosto carregado, a barba esquálida,

Os olhos encovados, e a postura

Medonha e má e a cor terrena e pálida;

Cheios de terra e crespos os cabelos,

A boca negra, os dentes amarelos.
[203]

40

Tão grande era de membros que bem posso



Certificar-te que este era o segundo

De Rodes estranhíssimo Colosso,

Que um dos sete milagres foi do mundo.

Cum tom de voz nos fala, horrendo e grosso,

Que pareceu sair do mar profundo.

Arrepiam-se as carnes e o cabelo,

A mi e a todos, só de ouvi-lo e vê-lo!
41

E disse: «Ó gente ousada, mais que quantas

No mundo cometeram grandes cousas,

Tu, que por guerras cruas, tais e tantas,

E por trabalhos vãos nunca repousas,

Pois os vedados términos quebrantas

E navegar meus longos mares ousas,

Que eu tanto tempo há já que guardo e tenho,

Nunca arados de estranho ou próprio lenho:
42

Pois vens ver os segredos escondidos

Da natureza e do húmido elemento,

A nenhum grande humano concedidos

De nobre ou de imortal merecimento,

Ouve os danos de mi que apercebidos

Estão a teu sobejo atrevimento,

Por todo o largo mar e pola terra

Que inda hás-de sojugar com dura guerra.
43

«Sabe que quantas naus esta viagem

Que tu fazes, fizerem, de atrevidas,

Inimiga terão esta paragem,

Com ventos e tormentas desmedidas;

E da primeira armada que passagem

Fizer por estas ondas insofridas,

Eu farei de improviso tal castigo

Que seja mor o dano que o perigo!
[204]

44

Aqui espero tomar, se não me engano,



De quem me descobriu suma vingança;

E não se acabará só nisto o dano

De vossa pertinace confiança:

Antes, em vossas naus vereis, cada ano,

Se é verdade o que meu juízo alcança,

Naufrágios, perdições de toda sorte,

Que o menor mal de todos seja a morte!
45

E do primeiro Ilustre, que a ventura

Com fama alta fizer tocar os Céus,

Serei eterna e nova sepultura,

Por juízos incógnitos de Deus.

Aqui porá da Turca armada dura

Os soberbos e prósperos troféus;

Comigo de seus danos o ameaça

A destruída Quíloa com Mombaça.
46

Outro também virá, de honrada fama,

Liberal, cavaleiro, enamorado,

E consigo trará a fermosa dama

Que Amor por grão mercê lhe terá dado.

Triste ventura e negro fado os chama

Neste terreno meu, que, duro e irado,

Os deixará dum cru naufrágio vivos,

Pera verem trabalhos excessivos.
47

Verão morrer com fome os filhos caros,

Em tanto amor gerados e nacidos;

Verão os Cafres, ásperos e avaros,

Tirar à linda dama seus vestidos;

Os cristalinos membros e perclaros

À calma, ao frio, ao ar, verão despidos,

Despois de ter pisada, longamente,

Cos delicados pés a areia ardente.
[205]

48

E verão mais os olhos que escaparem



De tanto mal, de tanta desventura,

Os dous amantes míseros ficarem

Na férvida, implacabil espessura.

Ali, despois que as pedras abrandarem

Com lágrimas de dor, de mágoa pura,

Abraçados, as almas soltarão

Da fermosa e misérrima prisão.»
49

Mais ia por diante o monstro horrendo,

Dizendo nossos Fados, quando, alçado,

Lhe disse eu: «Quem és tu? Que esse estupendo

Corpo, certo me tem maravilhado!»

A boca e os olhos negros retorcendo

E dando um espantoso e grande brado,

Me respondeu, com voz pesada e amara,

Como quem da pergunta lhe pesara:
50

«Eu sou aquele oculto e grande Cabo

A quem chamais vós outros Tormentório,

Que nunca a Ptolomeu, Pompónio, Estrabo,

Plínio e quantos passaram fui notório.

Aqui toda a Africana costa acabo

Neste meu nunca visto Promontório,

Que pera o Pólo Antártico se estende,

A quem vossa ousadia tanto ofende.
51

Fui dos filhos aspérrimos da Terra,

Qual Encélado, Egeu e o Centimano;

Chamei-me Adamastor, e fui na guerra

Contra o que vibra os raios de Vulcano;

Não que pusesse serra sobre serra,

Mas, conquistando as ondas do Oceano,

Fui capitão do mar, por onde andava

A armada de Neptuno, que eu buscava.
[206]

52

Amores da alta esposa de Peleu



Me fizeram tomar tamanha empresa;

Todas as Deusas desprezei do Céu,

Só por amar das águas a Princesa.

Um dia a vi, co as filhas de Nereu,

Sair nua na praia e logo presa

A vontade senti de tal maneira

Que inda não sinto cousa que mais queira.
53

Como fosse impossibil alcançá-la,

Pola grandeza feia de meu gesto,

Determinei por armas de tomá-la

E a Dóris este caso manifesto.

De medo a Deusa então por mi lhe fala;

Mas ela, cum fermoso riso honesto,

Respondeu: «Qual será o amor bastante

De Ninfa, que sustente o dum Gigante?
54

Contudo, por livrarmos o Oceano

De tanta guerra, eu buscarei maneira

Com que, com minha honra, escuse o dano.»

Tal resposta me torna a mensageira.

Eu, que cair não pude neste engano

(Que é grande dos amantes a cegueira),

Encheram-me, com grandes abondanças,

O peito de desejos e esperanças.
55

Já néscio, já da guerra desistindo,

Ha noite, de Dóris prometida,

Me aparece de longe o gesto lindo

Da branca Tétis, única, despida.

Como doudo corri de longe, abrindo

Os braços pera aquela que era vida

Deste corpo, e começo os olhos belos

A lhe beijar, as faces e os cabelos.
[207]

56

Oh que não sei de nojo como o conte!



Que, crendo ter nos braços quem amava,

Abraçado me achei cum duro monte

De áspero mato e de espessura brava.

Estando cum penedo fronte a fronte,

Que eu polo rosto angélico apertava,

Não fiquei homem, não; mas mudo e quedo

E, junto dum penedo, outro penedo!
57

Ó Ninfa, a mais fermosa do Oceano,

Já que minha presença não te agrada,

Que te custava ter-me neste engano,

Ou fosse monte, nuvem, sonho ou nada?

Daqui me parto, irado e quase insano

Da mágoa e da desonra ali passada,

A buscar outro mundo, onde não visse

Quem de meu pranto e de meu mal se risse.
58

Eram já neste tempo meus Irmãos

Vencidos e em miséria extrema postos,

E, por mais segurar-se os Deuses vãos,

Alguns a vários montes sotopostos.

E, como contra o Céu não valem mãos,

Eu, que chorando andava meus desgostos,

Comecei a sentir do Fado imigo,

Por meus atrevimentos, o castigo:
59

Converte-se-me a carne em terra dura;

Em penedos os ossos se fizeram;

Estes membros que vês, e esta figura,

Por estas longas águas se estenderam.

Enfim, minha grandíssima estatura

Neste remoto Cabo converteram

Os Deuses; e, por mais dobradas mágoas,

Me anda Tétis cercando destas águas.»
[208]

60

Assi contava; e, cum medonho choro,



Súbito de ante os olhos se apartou;

Desfez-se a nuvem negra, e cum sonoro

Bramido muito longe o mar soou.

Eu, levantando as mãos ao santo coro

Dos Anjos, que tão longe nos guiou,

A Deus pedi que removesse os duros

Casos, que Adamastor contou futuros.
61

«Já Flégon e Piróis vinham tirando,

Cos outros dous, o carro radiante,

Quando a terra alta se nos foi mostrando

Em que foi convertido o grão Gigante.

Ao longo desta costa, começando

Já de cortar as ondas do Levante,

Por ela abaixo um pouco navegámos,

Onde segunda vez terra tomámos.
62

A gente que esta terra possuía,

Posto que todos Etiopes eram,

Mais humana no trato parecia

Que os outros que tão mal nos receberam.

Com bailos e com festas de alegria

Pela praia arenosa a nós vieram,

As mulheres consigo e o manso gado

Que apacentavam, gordo e bem criado.
63

As mulheres, queimadas, vêm em cima

Dos vagarosos bois, ali sentadas,

Animais que eles têm em mais estima

Que todo o outro gado das manadas.

Cantigas pastoris, ou prosa ou rima,

Na sua língua cantam, concertadas

Co doce som das rústicas avenas,

Imitando de Títiro as Camenas.
[209]

64

Estes, como na vista prazenteiros



Fossem, humanamente nos trataram,

Trazendo-nos galinhas e carneiros

A troco doutras peças que levaram;

Mas como nunca, enfim, meus companheiros

Palavra sua alga lhe alcançaram

Que desse algum sinal do que buscamos,

As velas dando, as âncoras levamos.
65

Já aqui tínhamos dado um grão rodeio

À costa negra de África, e tornava

A proa a demandar o ardente meio

Do Céu, e o Pólo Antártico ficava.

Aquele ilhéu deixámos onde veio

Outra armada primeira, que buscava

O Tormentório Cabo e, descoberto,

Naquele ilhéu fez seu limite certo.
66

Daqui fomos cortando muitos dias,

Entre tormentas tristes e bonanças,

No largo mar fazendo novas vias,

Só conduzidos de árduas esperanças.

Co mar um tempo andámos em porfias,

Que, como tudo nele são mudanças,

Corrente nele achámos tão possante,

Que passar não deixava por diante:
67

Era maior a força em demasia,

Segundo pera trás nos obrigava,

Do mar, que contra nós ali corria,

Que por nós a do vento que assoprava.

Injuriado Noto da porfia

Em que co mar (parece) tanto estava,

Os assopros esforça iradamente,

Com que nos fez vencer a grão corrente.
[210]

68

Trazia o Sol o dia celebrado



Em que três Reis das partes do Oriente

Foram buscar um Rei, de pouco nado,

No qual Rei outros três há juntamente;

Neste dia outro porto foi tomado

Por nós, da mesma já contada gente,

Num largo rio, ao qual o nome demos

Do dia em que por ele nos metemos.
69

Desta gente refresco algum tomámos

E do rio fresca água; mas contudo

Nenhum sinal aqui da Índia achámos

No povo, com nós outros casi mudo.

Ora vê, Rei, quamanha terra andámos.

Sem sair nunca deste povo rudo,

Sem vermos nunca nova nem sinal

Da desejada parte Oriental.
70

Ora imagina agora quão coitados

Andaríamos todos, quão perdidos

De fomes, de tormentas quebrantados,

Por climas e por mares não sabidos,

E do esperar comprido tão cansados

Quanto a desesperar já compelidos,

Por céus não naturais, de qualidade

Inimiga de nossa humanidade!
71

Corrupto já e danado o mantimento,

Danoso e mau ao fraco corpo humano

E, além disso, nenhum contentamento,

Que sequer da esperança fosse engano.

Crês tu que, se este nosso ajuntamento

De soldados não fora Lusitano,

Que durara ele tanto obediente,

Porventura, a seu Rei e a seu regente?
[211]

72

Crês tu que já não foram levantados



Contra seu Capitão, se os resistira,

Fazendo-se piratas, obrigados

De desesperação, de fome, de ira?

Grandemente, por certo, estão provados,

Pois que nenhum trabalho grande os tira

Daquela Portuguesa alta excelência

De lealdade firme e obediência.
73

Deixando o porto, enfim, do doce rio

E tornando a cortar a água salgada,

Fizemos desta costa algum desvio,

Deitando pera o pego toda a armada;

Porque, ventando Noto, manso e frio,

Não nos apanhasse a água da enseada

Que a costa faz ali, daquela banda

Donde a rica Sofala o ouro manda.
74

Esta passada, logo o leve leme

Encomendado ao sacro Nicolau,

Pera onde o mar na costa brada e geme,

A proa inclina da e doutra nau;

Quando, indo o coração que espera e teme

E que tanto fiou dum fraco pau,

Do que esperava já desesperado,

Foi da novidade alvoroçado.
75

E foi que, estando já da costa perto,

Onde as praias e vales bem se viam,

Num rio, que ali sai ao mar aberto,

Batéis à vela entravam e saíam.

Alegria mui grande foi, por certo,

Acharmos já pessoas que sabiam

Navegar, porque entre elas esperámos

De achar novas algas, como achámos.
[212]

76

Etíopes são todos, mas parece



Que com gente milhor comunicavam;

Palavra alga Arábia se conhece

Entre a linguagem sua que falavam;

E com pano delgado, que se tece

De algodão, as cabeças apertavam;

Com outro, que de tinta azul se tinge,

Cada um as vergonhosas partes cinge.
77

Pela Arábica língua que mal falam

E que Fernão Martins mui bem entende,

Dizem que, por naus que em grandeza igualam

As nossas, o seu mar se corta e fende;

Mas que, lá donde sai o Sol, se abalam

Pera onde a costa ao Sul se alarga e estende,

E do Sul pera o Sol, terra onde havia

Gente, assi como nós, da cor do dia.
78

Mui grandemente aqui nos alegrámos

Co a gente, e com as novas muito mais.

Pelos sinais que neste rio achámos

O nome lhe ficou dos Bons Sinais.

Um padrão nesta terra alevantámos,

Que, pera assinalar lugares tais,

Trazia alguns; o nome tem do belo

Guiador de Tobias a Gabelo.
79

Aqui de limos, cascas e de ostrinhos,

Nojosa criação das águas fundas,

Alimpámos as naus, que dos caminhos

Longos do mar vêm sórdidas e imundas.

Dos hóspedes que tínhamos vizinhos,

Com mostras aprazíveis e jucundas,

Houvemos sempre o usado mantimento,

Limpos de todo o falso pensamento.
[213]

80

Mas não foi, da esperança grande e imensa



Que nesta terra houvemos, limpa e pura

A alegria; mas logo a recompensa

A Ramnúsia com nova desventura.

Assi no Céu sereno se dispensa;

Co esta condição, pesada e dura,

Nacemos: o pesar terá firmeza,

Mas o bem logo muda a natureza.
81

E foi que, de doença crua e feia,

A mais que eu nunca vi, desempararam

Muitos a vida, e em terra estranha e alheia

Os ossos pera sempre sepultaram.

Quem haverá que, sem o ver, o creia,

Que tão disformemente ali lhe incharam

As gingivas na boca, que crecia

A carne e juntamente apodrecia?
82

Apodrecia cum fétido e bruto

Cheiro, que o ar vizinho inficionava.

Não tínhamos ali médico astuto,

Cirurgião sutil menos se achava;

Mas qualquer, neste ofício pouco instruto,

Pela carne já podre assi cortava

Como se fora morta, e bem convinha,

Pois que morto ficava quem a tinha.
83

Enfim que nesta incógnita espessura

Deixámos pera sempre os companheiros

Que em tal caminho e em tanta desventura

Foram sempre connosco aventureiros.

Quão fácil é ao corpo a sepultura!

Quaisquer ondas do mar, quaisquer outeiros

Estranhos, assi mesmo como aos nossos,

Receberão de todo o Ilustre os ossos.
[214]

84

Assi que deste porto nos partimos



Com maior esperança e mor tristeza,

E pela costa abaixo o mar abrimos,

Buscando algum sinal de mais firmeza.

Na dura Moçambique, enfim, surgimos,

De cuja falsidade e má vileza

Já serás sabedor, e dos enganos

Dos povos de Mombaça, pouco humanos.
85

Até que aqui, no teu seguro porto,

Cuja brandura e doce tratamento

Dará saúde a um vivo e vida a um morto,

Nos trouxe a piedade do alto Assento.

Aqui repouso, aqui doce conforto,

Nova quietação do pensamento,

Nos deste. E vês aqui, se atento ouviste,

Te contei tudo quanto me pediste.
86

Julgas agora, Rei, se houve no mundo

Gentes que tais caminhos cometessem?

Crês tu que tanto Eneias e o facundo

Ulisses pelo mundo se estendessem?

Ousou algum a ver do mar profundo,

Por mais versos que dele se escrevessem,

Do que eu vi, a poder de esforço e de arte,

E do que inda hei-de ver, a oitava parte?
87

Esse que bebeu tanto da água Aónia,

Sobre quem têm contenda peregrina,

Entre si, Rodes, Smyrna e Colofónia,

Atenas, Ios, Argo e Salamina;

Essoutro que esclarece toda Ausónia,

A cuja voz, altíssona e divina,

Ouvindo, o pátrio Míncio se adormece

Mas o Tibre co som se ensoberbece:
[215]

88

«Cantem, louvem e escrevam sempre extremos



Desses seus Semideuses e encareçam,

Fingindo magas Circes, Polifemos,

Sirenas que co canto os adormeçam;

Dem-lhe mais navegar à vela e remos

Os Cícones e a terra onde se esqueçam

Os companheiros, em gostando o loto;

Dem-lhe perder nas águas o piloto;
89

Ventos soltos lhe finjam e imaginem

Dos odres, e Calipsos namoradas;

Harpias que o manjar lhe contaminem;

Decer às sombras nuas já passadas:

Que, por muito e por muito que se afinem

Nestas fábulas vãs, tão bem sonhadas,

A verdade que eu conto, nua e pura,

Vence toda grandiloca escritura!»
90

Da boca do fecundo Capitão

Pendendo estavam todos, embebidos,

Quando deu fim à longa narração

Dos altos feitos, grandes e subidos.

Louva o Rei o sublime coração

Dos Reis em tantas guerras conhecidos;

Da gente louva a antiga fortaleza,

A lealdade de ânimo e nobreza.
91

Vai recontando o povo, que se admira,

O caso cada qual que mais notou;

Nenhum deles da gente os olhos tira

Que tão longos caminhos rodeou.

Mas já o mancebo Délio as rédeas vira

Que o irmão de Lampécia mal guiou,

Por vir a descansar nos Tethyos braços;

E el-Rei se vai do mar aos nobres paços.
[216]

92

Quão doce é o louvor e a justa glória



Dos próprios feitos, quando são soados!

Qualquer nobre trabalha que em memória

Vença ou iguale os grandes já passados.

As envejas da ilustre e alheia história

Fazem mil vezes feitos sublimados.

Quem valerosas obras exercita,

Louvor alheio muito o esperta e incita.
93

Não tinha em tanto os feitos gloriosos

De Aquiles, Alexandro, na peleja,

Quanto de quem o canta os numerosos

Versos: isso só louva, isso deseja.

Os troféus de Milcíades, famosos,

Temístocles despertam só de enveja;

E diz que nada tanto o deleitava.

Como a voz que seus feitos celebrava.
94

Trabalha por mostrar Vasco da Gama

Que essas navegações que o mundo canta

Não merecem tamanha glória e fama

Como a sua, que o Céu e a Terra espanta.

Si; mas aquele Herói que estima e ama

Com dões, mercês, favores e honra tanta

A lira Mantuana, faz que soe

Eneias, e a Romana glória voe.
95

Dá a terra Lusitana Cipiões, Césares,

Alexandros, e dá Augustos;

Mas não lhe dá contudo aqueles dões

Cuja falta os faz duros e robustos.

Octávio, entre as maiores opressões,

Compunha versos doutos e venustos

(Não dirá Fúlvia, certo, que é mentira,

Quando a deixava António por Glafira).
[217]

96

Vai César sojugando toda França



E as armas não lhe impedem a ciência;

Mas, na mão a pena e noutra a lança,

Igualava de Cícero a eloquência.

O que de Cipião se sabe e alcança

É nas comédias grande experiência.

Lia Alexandro a Homero de maneira

Que sempre se lhe sabe à cabeceira.
97

Enfim, não houve forte Capitão

Que não fosse também douto e ciente,

Da Lácia, Grega ou Bárbara nação,

Senão da Portuguesa tão somente.

Sem vergonha o não digo: que a razão

De algum não ser por versos excelente

É não se ver prezado o verso e rima,

Porque quem não sabe arte, não na estima.
98

Por isso, e não por falta de natura,

Não há também Virgílios nem Homeros;

Nem haverá, se este costume dura,

Pios Eneias nem Aquiles feros.

Mas o pior de tudo é que a ventura

Tão ásperos os fez e tão austeros,

Tão rudos e de engenho tão remisso,

Que a muitos lhe dá pouco ou nada disso.
99

Às Musas agardeça o nosso Gama

O muito amor da pátria, que as obriga

A dar aos seus, na lira, nome e fama

De toda a ilustre e bélica fadiga;

Que ele, nem quem na estirpe seu se chama,

Calíope não tem por tão amiga

Nem as filhas do Tejo, que deixassem

As telas d’ouro fino e que o cantassem.
100

Porque o amor fraterno e puro gosto

De dar a todo o Lusitano feito

Seu louvor, é somente o prosuposto

Das Tágides gentis, e seu respeito.

Porém não deixe, enfim, de ter disposto

Ninguém a grandes obras sempre o peito:

Que, por esta ou por outra qualquer via,

Não perderá seu preço e sua valia.

[293] CANTO NONO


36

Mas já no verde prado o carro leve

Punham os brancos cisnes mansamente;

E Dione, que as rosas entre a neve

No rosto traz, decia diligente.

O frecheiro que contra o Céu se atreve

A recebê-la vem, ledo e contente;

Vêm todos os Cupidos servidores

Beijar a mão à Deusa dos amores.
37

Ela, por que não gaste o tempo em vão

Nos braços tendo o filho, confiada

Lhe diz: «Amado filho, em cuja mão

Toda minha potência está fundada;

Filho, em quem minhas forças sempre estão,

Tu, que as armas Tifeias tens em nada,

A socorrer-me a tua potestade

Me traz especial necessidade.
38

Bem vês as Lusitânicas fadigas,

Que eu já de muito longe favoreço,

Porque das Parcas sei, minhas amigas,

Que me hão-de venerar e ter em preço.

E porque tanto imitam as antigas

Obras de meus Romanos, me ofereço

A lhe dar tanta ajuda, em quanto posso,

A quanto se estender o poder nosso.
39

E porque das insídias do odioso

Baco foram na Índia molestados,

E das injúrias sós do mar undoso

Puderam mais ser mortos que cansados,

No mesmo mar, que sempre temeroso

Lhe foi, quero que sejam repousados,

Tomando aquele prémio e doce glória

Do trabalho que faz clara a memória.
[303]

40

E pera isso queria que, feridas



As filhas de Nereu no ponto fundo,

De amor dos Lusitanos incendidas

Que vêm de descobrir o novo mundo,

Todas na ilha juntas e subidas,

(Ilha que nas entranhas do profundo

Oceano terei aparelhada,

De dões de Flora e Zéfiro adornada);
41

Ali, com mil refrescos e manjares,

Com vinhos odoríferos e rosas,

Em cristalinos paços singulares,

Fermosos leitos, e elas mais fermosas;

Enfim, com mil deleites não vulgares,

Os esperem as Ninfas amorosas,

De amor feridas, pera lhe entregarem

Quanto delas os olhos cobiçarem.
42

Quero que haja no reino Neptunino,

Onde eu nasci, progénie forte e bela;

E tome exemplo o mundo vil, malino,

Que contra tua potência se rebela,

Por que entendam que muro Adamantino

Nem triste hipocrisia val contra ela;

Mal haverá na terra quem se guarde

Se teu fogo imortal nas águas arde.»
43

Assi Vénus propôs; e o filho inico,

Pera lhe obedecer, já se apercebe:

Manda trazer o arco ebúrneo rico,

Onde as setas de ponta de ouro embebe.

Com gesto ledo a Cípria, e impudico,

Dentro no carro o filho seu recebe;

A rédea larga às aves cujo canto

A Faetonteia morte chorou tanto.
[304]

44

Mas diz Cupido que era necessária



Ha famosa e célebre terceira,

Que, posto que mil vezes lhe é contrária,

Outras muitas a tem por companheira:

A Deusa Giganteia, temerária,

Jactante, mentirosa e verdadeira,

Que com cem olhos vê, e, por onde voa,

O que vê, com mil bocas apregoa.
45

Vão-na buscar e mandam-na diante,

Que celebrando vá com tuba clara

Os louvores da gente navegante,

Mais do que nunca os de outrem celebrara.

Já, murmurando, a Fama penetrante

Pelas fundas cavernas se espalhara;

Fala verdade, havida por verdade,

Que junto a Deusa traz Credulidade.
46

O louvor grande, o rumor excelente,

No coração dos Deuses que indinados

Foram por Baco contra a ilustre gente,

Mudando, os fez um pouco afeiçoados.

O peito feminil, que levemente

Muda quaisquer propósitos tomados,

Já julga por mau zelo e por crueza

Desejar mal a tanta fortaleza.
47

Despede nisto o fero moço as setas,

Ha após outra: geme o mar cos tiros;

Direitas pelas ondas inquietas

Algas vão, e algas fazem giros;

Caem as Ninfas, lançam das secretas

Entranhas ardentíssimos suspiros;

Cai qualquer, sem ver o vulto que ama,

Que tanto como a vista pode a fama.
[305]

48

Os cornos ajuntou da ebúrnea la,



Com força, o moço indómito, excessiva,

Que Tétis quer ferir mais que nenha,

Porque mais que nenha lhe era esquiva.

Já não fica na aljava seta alga,

Nem nos equóreos campos Ninfa viva;

E se, feridas, inda estão vivendo,

Será pera sentir que vão morrendo.
49

Dai lugar, altas e cerúleas ondas,

Que, vedes, Vénus traz a medicina,

Mostrando as brancas velas e redondas,

Que vêm por cima da água Neptunina.

Pera que tu recíproco respondas,

Ardente Amor, à flama feminina,

É forçado que a pudicícia honesta

Faça quanto lhe Vénus amoesta.
50

Já todo o belo coro se aparelha

Das Nereidas, e junto caminhava

Em coreias gentis, usança velha,

Pera a ilha a que Vénus as guiava.

Ali a fermosa Deusa lhe aconselha

O que ela fez mil vezes, quando amava;

Elas, que vão do doce amor vencidas,

Estão a seu conselho oferecidas.
51

Cortando vão as naus a larga via

Do mar ingente pera a pátria amada,

Desejando prover-se de água fria

Pera a grande viagem prolongada,

Quando, juntas, com súbita alegria,

Houveram vista da Ilha namorada,

Rompendo pelo céu a mãe fermosa

De Menónio, suave e deleitosa.
[306]

52

De longe a Ilha viram, fresca e bela,



Que Vénus pelas ondas lha levava

(Bem como o vento leva branca vela)

Pera onde a forte armada se enxergava;

Que, por que não passassem, sem que nela

Tomassem porto, como desejava,

Pera onde as naus navegam a movia

A Acidália, que tudo, enfim, podia.
53

Mas firme a fez e imobil, como viu

Que era dos Nautas vista e demandada,

Qual ficou Delos, tanto que pariu

Latona Febo e a Deusa à caça usada.

Pera lá logo a proa o mar abriu,

Onde a costa fazia ha enseada

Curva e quieta, cuja branca areia

Pintou de ruivas conchas Citereia.
54

Três fermosos outeiros se mostravam,

Erguidos com soberba graciosa,

Que de gramíneo esmalte se adornavam,

Na fermosa Ilha, alegre e deleitosa.

Claras fontes e límpidas manavam

Do cume, que a verdura tem viçosa;

Por entre pedras alvas se deriva

A sonorosa linfa fugitiva.
55

Num vale ameno, que os outeiros fende.

Vinham as claras águas ajuntar-se,

Onde üa mesa fazem, que se estende

Tão bela quanto pode imaginar-se.

Arvoredo gentil sobre ela pende,

Como que pronto está pera afeitar-se,

Vendo-se no cristal resplandecente,

Que em si o está pintando propriamente.
[307]

56

Mil árvores estão ao céu subindo,



Com pomos odoríferos e belos;

A laranjeira tem no fruito lindo

A cor que tinha Dafne nos cabelos.

Encosta-se no chão, que está caindo,

A cidreira cos pesos amarelos;

Os fermosos limões ali cheirando,

Estão virgíneas tetas imitando.
57

As árvores agrestes, que os outeiros

Têm com frondente coma enobrecidos,

Alemos são de Alcides, e os loureiros

Do louro Deus amados e queridos;

Mirtos de Citereia, cos pinheiros

De Cibele, por outro amor vencidos;

Está apontando o agudo cipariso

Pera onde é posto o etéreo Paraíso.
58

Os dões que dá Pomona ali Natura

Produze, diferentes nos sabores,

Sem ter necessidade de cultura,

Que sem ela se dão muito milhores:

As cereijas, purpúreas na pintura,

As amoras, que o nome têm de amores,

O pomo que da pátria Pérsia veio,

Milhor tornado no terreno alheio;
59

Abre a romã, mostrando a rubicunda

Cor, com que tu, rubi, teu preço perdes,

Entre os braços do ulmeiro está a jucunda

Vide, cs cachos roxos e outros verdes;

E vós, se na vossa árvore fecunda,

Peras piramidais, viver quiserdes,

Entregai-vos ao dano que cos bicos

Em vós fazem os pássaros inicos.
[308]

60

Pois a tapeçaria bela e fina



Com que se cobre o rústico terreno,

Faz ser a de Aqueménia menos dina,

Mas o sombrio vale mais ameno.

Ali a cabeça a flor Cifísia inclina

Sobolo tanque lúcido e sereno;

Florece o filho e neto de Ciniras,

Por quem tu, Deusa Páfia, inda suspiras.
61

Pera julgar, difícil cousa fora,

No céu vendo e na terra as mesmas cores,

Se dava às flores cor a bela Aurora,

Ou se lha dão a ela as belas flores.

Pintando estava ali Zéfiro e Flora

As violas da cor dos amadores,

O lírio roxo, a fresca rosa bela,

Qual reluze nas faces da donzela;
62

A cândida cecém, das matutinas

Lágrimas rociada, e a manjerona;

Vêm-se as letras nas flores Hiacintinas,

Tão queridas do filho de Latona.

Bem se enxerga nos pomos e boninas

Que competia Clóris com Pomona.

Pois, se as aves no ar cantando voam,

Alegres animais o chão povoam.
63

Ao longo da água o níveo cisne canta;

Responde-lhe do ramo filomela;

Da sombra de seus cornos não se espanta

Actéon n’água cristalina e bela.

Aqui a fugace lebre se levanta

Da espessa mata, ou tímida gazela;

Ali no bico traz ao caro ninho

O mantimento o leve passarinho.
[309]

64

Nesta frescura tal desembarcavam



Já das naus os segundos Argonautas,

Onde pela floresta se deixavam

Andar as belas Deusas, como incautas.

Algas, doces cítaras tocavam;

Algas, harpas e sonoras frautas;

Outras, cos arcos de ouro, se fingiam

Seguir os animais, que não seguiam.
65

Assi lho aconselhara a mestra experta:

Que andassem pelos campos espalhadas;

Que, vista dos barões a presa incerta,

Se fizessem primeiro desejadas.

Algas, que na forma descoberta

Do belo corpo estavam confiadas,

Posta a artificiosa fermosura,

Nuas lavar se deixam na água pura.
66

Mas os fortes mancebos, que na praia

Punham os pés, de terra cobiçosos

(Que não há nenhum deles que não saia),

De acharem caça agreste desejosos,

Não cuidam que, sem laço ou redes, caia

Caça naqueles montes deleitosos,

Tão suave, doméstica e benina,

Qual ferida lha tinha já Ericina.
67

Alguns, que em espingardas e nas bestas

Pera ferir os cervos, se fiavam,

Pelos sombrios matos e florestas

Determinadamente se lançavam;

Outros, nas sombras, que de as altas sestas

Defendem a verdura, passeavam

Ao longo da água, que, suave e queda,

Por alvas pedras corre à praia leda.
[310]

68

Começam de enxergar subitamente,



Por entre verdes ramos, várias cores,

Cores de quem a vista julga e sente

Que não eram das rosas ou das flores,

Mas da lã fina e seda diferente,

Que mais incita a força dos amores,

De que se vestem as humanas rosas,

Fazendo-se por arte mais fermosas.
69

Dá Veloso, espantado, um grande grito:

«Senhores, caça estranha (disse) é esta!

Se inda dura o Gentio antigo rito,

A Deusas é sagrada esta floresta.

Mais descobrimos do que humano esprito

Desejou nunca, e bem se manifesta

Que são grandes as cousas e excelentes

Que o mundo encobre aos homens imprudentes.
70

Sigamos estas Deusas e vejamos

Se fantásticas são, se verdadeiras.»

Isto dito, veloces mais que gamos,

Se lançam a correr pelas ribeiras.

Fugindo as Ninfas vão por entre os ramos,

Mas, mais industriosas que ligeiras,

Pouco e pouco, sorrindo e gritos dando,

Se deixam ir dos galgos alcançando
71

De ha os cabelos de ouro o vento leva,

Correndo, e da outra as fraldas delicadas;

Acende-se o desejo, que se ceva

Nas alves carnes, súbito mostradas.

Ha de indústria cai, e já releva,

Com mostras mais macias que indinadas,

Que sobre ela, empecendo, também caia

Quem a seguiu pela arenosa praia.
[311]

72

Outros, por outra parte, vão topar



Com as Deusas despidas, que se lavam;

Elas começam súbito a gritar,

Como que assalto tal não esperavam;

Has, fingindo menos estimar

A vergonha que a força, se lançavam

Nuas por entre o mato, aos olhos dando

O que às mãos cobiçosas vão negando;
73

Outra, como acudindo mais depressa

À vergonha da Deusa caçadora,

Esconde o corpo n’água; outra se apressa

Por tomar os vestidos que tem fora.

Tal dos mancebos há que se arremessa,

Vestido assi e calçado (que, co a mora

De se despir, há medo que inda tarde)

A matar na água o fogo que nele arde.
74

Qual cão de caçador, sagaz e ardido,

Usado a tomar na água a ave ferida,

Vendo ò rosto o férreo cano erguido

Pera a garcenha ou pata conhecida,

Antes que soe o estouro, mal sofrido Salta

n’água e da presa não duvida,

Nadando vai e latindo: assi o mancebo

Remete à que não era irmã de Febo.
75

Leonardo, soldado bem disposto,

Manhoso, cavaleiro e namorado,

A quem Amor não dera um só desgosto

Mas sempre fora dele mal tratado,

E tinha já por firme prosuposto

Ser com amores mal afortunado,

Porém não que perdesse a esperança

De inda poder seu fado ter mudança,
[312]

76

Quis aqui sua ventura que corria



Após Efire, exemplo de beleza,

Que mais caro que as outras dar queria

O que deu, pera dar-se, a natureza.

Já cansado, correndo, lhe dizia:

«Ó fermosura indina de aspereza,

Pois desta vida te concedo a palma,

Espera um corpo de quem levas a alma!
77

Todas de correr cansam, Ninfa pura.

Rendendo-se à vontade do inimigo;

Tu só de mi só foges na espessura?

Quem te disse que eu era o que te sigo?

Se to tem dito já aquela ventura

Que em toda a parte sempre anda comigo,

Oh, não na creias, porque eu, quando a cria,

Mil vezes cada hora me mentia.
78

Não canses, que me cansas! E se queres

Fugir-me, por que não possa tocar-te,

Minha ventura é tal que, inda que esperes,

Ela fará que não possa alcançar-te.

Espera; quero ver, se tu quiseres,

Que sutil modo busca de escapar-te;

E notarás, no fim deste sucesso,



Tra la spica e la man qual muro he messo.
79

«Oh! Não me fujas! Assi nunca o breve

Tempo fuja de tua fermosura;

Que, só com refrear o passo leve,

Vencerás da fortuna a força dura.

Que Emperador, que exército se atreve

A quebrantar a fúria da ventura

Que, em quanto desejei, me vai seguindo,

O que tu só farás não me fugindo?
[313]

80

Pões-te da parte da desdita minha?



Fraqueza é dar ajuda ao mais potente.

Levas-me um coração que livre tinha?

Solta-mo e correrás mais levemente.

Não te carrega essa alma tão mesquinha

Que nesses fios de ouro reluzente

Atada levas? Ou, despois de presa,

Lhe mudaste a ventura e menos pesa?
81

Nesta esperança só te vou seguindo:

Que ou tu não sofrerás o peso dela,

Ou na virtude de teu gesto lindo

Lhe mudarás a triste e dura estrela.

E se se lhe mudar, não vás fugindo,

Que Amor te ferirá, gentil donzela,

E tu me esperarás, se Amor te fere;

E se me esperas, não há mais que espere.»
82

Já não fugia a bela Ninfa tanto,

Por se dar cara ao triste que a seguia,

Como por ir ouvindo o doce canto,

As namoradas mágoas que dizia.

Volvendo o rosto, já sereno e santo,

Toda banhada em riso e alegria,

Cair se deixa aos pés do vencedor,

Que todo se desfaz em puro amor.
83

Oh, que famintos beijos na floresta,

E que mimoso choro que soava!

Que afagos tão suaves! Que ira honesta,

Que em risinhos alegres se tornava!

O que mais passam na manhã e na sesta,

Que Vénus com prazeres inflamava,

Milhor é exprimentá-lo que julgá-lo;

Mas julgue-o quem não pode exprimentá-lo.
[314]

84

Destarte, enfim, conformes já as fermosas



Ninfas cos seus amados navegantes,

Os ornam de capelas deleitosas

De louro e de ouro e flores abundantes.

As mãos alvas lhe davam como esposas;

Com palavras formais e estipulantes

Se prometem eterna companhia,

Em vida e morte, de honra e alegria.
85

Ha delas, maior, a quem se humilha

Todo o coro das Ninfas e obedece,

Que dizem ser de Celo e Vesta Filha,

O que no gesto belo se parece,

Enchendo a terra e o mar de maravilha,

O capitão ilustre, que o merece,

Recebe ali com pompa honesta e régia,

Mostrando-se senhora grande e egrégia.
86

Que, despois de lhe ter dito quem era,

Cum alto exórdio, de alta graça ornado,

Dando-lhe a entender que ali viera

Por alta influição do imobil fado,

Pera lhe descobrir da unida esfera

Da terra imensa e mar não navegado

Os segredos, por alta profecia,

O que esta sua nação só merecia,
87

Tomando-o pela mão, o leva e guia

Pera o cume dum monte alto e divino,

No qual ha rica fábrica se erguia,

De cristal toda e de ouro puro e fino.

A maior parte aqui passam do dia,

Em doces jogos e em prazer contino.

Ela nos paços logra seus amores,

As outras pelas sombras, entre as flores.
[315]

88

Assi a fermosa e a forte companhia



O dia quase todo estão passando

Na alma, doce, incógnita alegria,

Os trabalhos tão longos compensando.

Porque dos feitos grandes, da ousadia

Forte e famosa, o mundo está guardando

O prémio lá no fim, bem merecido,

Com fama grande e nome alto e subido.
89

Que as Ninfas do Oceano, tão fermosas,

Tétis e a Ilha angélica pintada,

Outra cousa não é que as deleitosas

Honras que a vida fazem sublimada.

Aquelas preminencias gloriosas,

Os triunfos, a fronte coroada

De palma e louro, a glória e maravilha,

Estes são os deleites desta Ilha.
90

Que as imortalidades que fingia

A antiguidade, que os Ilustres ama,

Lá no estelante Olimpo, a quem subia

Sobre as asas ínclitas da Fama,

Por obras valorosas que fazia,

Pelo trabalho imenso que se chama

Caminho da virtude, alto e fragoso,

Mas, no fim, doce, alegre e deleitoso,
91

Não eram senão prémios que reparte,

Por feitos imortais e soberanos,

O mundo cos varões que esforço e arte

Divinos os fizeram, sendo humanos.

Que Júpiter, Mercúrio, Febo e Marte,

Eneias e Quirino e os dous Tebanos,

Ceres, Palas e Juno com Diana,

Todos foram de fraca carne humana.
[316]

92

Mas a Fama, trombeta de obras tais,



Lhe deu no Mundo nomes tão estranhos

De Deuses, Semideuses, Imortais,

Indígetes, Heróicos e de Magnos.

Por isso, ó vós que as famas estimais,

Se quiserdes no mundo ser tamanhos,

Despertai já do sono do ócio ignavo,

Que o ânimo, de livre, faz escravo.
93

E ponde na cobiça um freio duro,

E na ambição também, que indignamente

Tomais mil vezes, e no torpe e escuro

Vício da tirania infame e urgente;

Porque essas honras vãs, esse ouro puro,

Verdadeiro valor não dão à gente:

Milhor é merecê-los sem os ter,

Que possuí-los sem os merecer.
94

Ou dai na paz as leis iguais, constantes,

Que aos grandes não dêem o dos pequenos,

Ou vos vesti nas armas rutilantes,

Contra a lei dos immigos Sarracenos:

Fareis os Reinos grandes e possantes,

E todos tereis mais e nenhum menos:

Possuireis riquezas merecidas,

Com as honras que ilustram tanto as vidas.
95

E fareis claro o Rei que tanto amais,

Agora cos conselhos bem cuidados,

Agora co as espadas, que imortais

Vos farão, como os vossos já passados.

Impossibilidades não façais,

Que quem quis, sempre pôde; e numerados

Sereis entre os Heróis esclarecidos

E nesta «Ilha de Vénus» recebidos.


[317] CANTO DÉCIMO

1

Mas já o claro amador da Larisseia



Adúltera inclinava os animais

Lá pera o grande lago que rodeia

Temistitão, nos fins Ocidentais;

O grande ardor do Sol Favónio enfreia

Co sopro que nos tanques naturais

Encrespa a água serena e despertava

Os lírios e jasmins, que a calma agrava,
2

Quando as fermosas Ninfas, cos amantes

Pela mão, já conformes e contentes,

Subiam pera os paços radiantes

E de metais ornados reluzentes,

Mandados da Rainha, que abundantes

Mesas de altos manjares excelentes

Lhe tinha aparelhados, que a fraqueza

Restaurem da cansada natureza.
3

Ali, em cadeiras ricas, cristalinas,

Se assentam dous e dous, amante e dama;

Noutras, à cabeceira, d’ouro finas,

Está co a bela Deusa o claro Gama.

De iguarias suaves e divinas,

A quem não chega a Egípcia antiga fama ,

Se acumulam os pratos de fulvo ouro,

Trazidos lá do Atlântico tesouro.
[318]

4

Os vinhos odoríferos, que acima



Estão não só do Itálico Falerno

Mas da Ambrósia, que Jove tanto estima

Com todo o ajuntamento sempiterno,

Nos vasos, onde em vão trabalha a lima,

Crespas escumas erguem, que no interno

Coração movem súbita alegria,

Saltando co a mistura d’água fria.
5

Mil práticas alegres se tocavam;

Risos doces, sutis e argutos ditos,

Que entre um e outro manjar se alevantavam,

Despertando os alegres apetitos;

Músicos instrumentos não faltavam

(Quais, no profundo Reino, os nus espritos

Fizeram descansar da eterna pena)

Ca voz da angélica Sirena.
6

Cantava a bela Ninfa, e cos acentos,

Que pelos altos paços vão soando,

Em consonância igual, os instrumentos

Suaves vêm a um tempo conformando.

Um súbito silêncio enfreia os ventos

E faz ir docemente murmurando

As águas, e nas casas naturais

Adormecer os brutos animais.
7

Com doce voz está subindo ao Céu

Altos varões que estão por vir ao mundo,

Cujas claras Ideias viu Proteu

Num globo vão, diáfano, rotundo,

Que Júpiter em dom lho concedeu

Em sonhos, e despois no Reino fundo,

Vaticinando, o disse, e na memória

Recolheu logo a Ninfa a clara história.
[319]

8

Matéria é de coturno, e não de soco,



A que a Ninfa aprendeu no imenso lago;

Qual Iopas não soube, ou Demodoco,

Entre os Feaces um, outro em Cartago.

Aqui, minha Calíope, te invoco

Neste trabalho extremo, por que em pago

Me tornes do que escrevo, e em vão pretendo,

O gosto de escrever, que vou perdendo.
9

Vão os anos decendo, e já do Estio

Há pouco que passar até o Outono;

A Fortuna me faz o engenho frio,

Do qual já não me jacto nem me abono;

Os desgostos me vão levando ao rio

Do negro esquecimento e eterno sono.

Mas tu me dá que cumpra, ó grão rainha

Das Musas, co que quero à nação minha!
10

Cantava a bela Deusa que viriam

Do Tejo, pelo mar que o Gama abrira,

Armadas que as ribeiras venceriam

Por onde o Oceano Índico suspira;

E que os Gentios Reis que não dariam

A cerviz sua ao jugo, o ferro e ira

Provariam do braço duro e forte,

Até render-se a ele ou logo à morte.




SONETOS DE CAMÕES


43

A fermosura desta fresca serra

E a sombra dos verdes castanheiros,

O manso caminhar destes ribeiros,

Donde toda a tristeza se desterra;
O rouco som do mar, a estranha terra,

O esconder do sol pelos outeiros,

O recolher dos gados derradeiros,

Das nuvens pelo ar a branda guerra;


Enfim, tudo o que a rara Natureza

Com tanta variedade nos ofrece,

Me está, se não te vejo, magoando.
Sem ti, tudo me enoja e me aborrece;

Sem ti, perpetuamente estou passando

Nas mores alegrias mor tristeza.
44

A Morte, que da vida o nó desata,

Os nós, que dá o Amor, cortar quisera

Na Ausência, que é contra ele espada fera,

E co Tempo, que tudo desbarata.
Duas contrárias, que ũa a outra mata,

A Morte contra o Amor ajunta e altera:

Ũa é Razão contra a Fortuna austera,

Outra, contra a Razão, Fortuna ingrata.


Mas mostre a sua imperial potência

A Morte em apartar dum corpo a alma,

Duas num corpo o Amor ajunte e una;
Porque assi leve triunfante a palma,

Amor da Morte, apesar da Ausência,

Do Tempo, da Razão e da Fortuna.
45

A ti, Senhor, a quem as sacras Musas

Nutrem e cibam de poção divina

(Não as da fonte délia cabalina,

Que são Medeias, Circes e Medusas,
Mas aquelas em cujo peito infusas

As leis estão, que a lei da Graça ensina,

Benignas no amor e na doutrina

E não soberbas, cegas e confusas),


Este pequeno parto, produzido

De meu saber e fraco entendimento,

Uma vontade grande te oferece.
Se for de ti notado de atrevido,

Daqui peço perdão do atrevimento,

O qual esta vontade te merece.
46

Ah! Fortuna cruel! Ah! duros Fados


Quão asinha em meu dano vos mudastes!

Passou o tempo que me descansastes,

Agora descansais com meus cuidados.
Deixastes-me sentir os bens passados,

Para mor dor da dor que me ordenastes;

Então nũa hora juntos mos levastes,

Deixando em seu lugar males dobrados.


Ah! quanto milhor fora não vos ver,

Gostos, que assi passais tão de corrida,

Que fico duvidoso se vos vi:
Sem vós já me não fica que perder,

Se não se for esta cansada vida,

Que por mor perda minha não perdi!
47

Ah! minha Dinamene! assi[m] deixaste

Quem não deixara nunca de querer-te?

Ah! Ninfa minha! Já não posso ver-te,

Tão asinha esta vida desprezaste!
Como já para sempre te apartaste

De quem tão longe estava de perder-te?

Puderam estas ondas defender-te,

Que não visses quem tanto magoaste?


Nem falar-te somente a dura morte

Me deixou, que tão cedo o negro manto

Em teus olhos deitado consentiste!
Ó mar, ó céu, ó minha escura sorte!

Que pena sentirei, que valha tanto,

Que inda tenho por pouco o viver triste?
48

Ai, imiga cruel! Que apartamento

É este que fazeis da pátria terra?

Quem do paterno ninho vos desterra,

Glória dos olhos, bem do pensamento?
Is tentar da Fortuna o movimento

E dos ventos cruéis a dura guerra?

Ver brenhas de água e o mar feito em serra,

Levantado de um vento e de outro vento?


Mas, já que vós partis sem vos partirdes,

Parta convosco o Céu tanta ventura,

Que seja mor que aquela que esperardes.
E só nesta verdade ide segura:

Que ficam mais saudades com partirdes,

Do que breves desejos de chegardes.






ODES DE CAMÕES




49 - ODE 1
Aquele moço fero

Na peletrônia cova doutrinado

Do Centauro severo,

Cujo peito esforçado

Com tutanos de tigres foi criado;
Na água fatal, menino

O lava a mãe, pressaga do futuro,

Pera que ferro fino

Não passe o peito duro

Que de si mesmo a si se tem por muro.

A carne lhe endurece,

Que ser não possa de armas ofendida.

Cega! que não conhece

Que pode haver ferida

Na alma, que menos dói perder a vida!


Que, aonde o braço irado

Dos Troianos passava arnês e escudo,

Ali se viu passado

Daquele ferro agudo

Do Menino que em todos pode tudo.
Ali se viu cativo

Da cativa gentil que serve e adora;

Ali se viu que, vivo,

Em vivo fogo mora,

Porque de seu senhor se vê senhora.
Já toma a branda lira

Na mão que a dura Pélias meneara;

Ali canta e suspira

Não como lhe ensinara

O Velho, mas o Moço que o cegara.
Pois, logo, quem culpado

Será, se, de pequeno, oferecido

Foi logo a seu cuidado,

No berço instituído

A não poder deixar de ser ferido?
Quem, logo fraco infante,

De outro mais poderoso foi sujeito,

Que pera cego amante

Foi de princípio feito,

Com lágrimas banhando o brando peito?
Se agora foi ferido

Da penetrante seta e força de erva,

E se Amor é servido

Que sirva à linda serva,

Pera que minha estrela me reserva?
O gesto bem talhado,

O airoso meneio e a postura,

O rosto delicado,

Que na vista afigura

Que se ensina por arte a fermosura,
Como pode deixar

De cativar quem tenha entendimento?

Que, quem não penetrar

Um doce gesto, atento,

Não lhe é nenhum louvor viver isento.
Que aqueles cujos peitos

Ornou de altas ciências o destino.

Esses foram sujeitos

Ao cego e vão Menino,

Arrebatados do furor divino.
O Rei famoso hebreio,

Que mais que todos soube, mais amo

Tanto, que a deus alheio
Falso sacrificou;

Se muito soube e teve, muito errou.


E o grão Sábio que ensina,

Passeando, os segredos da Sofia

À ba[i]xa concubina

Do vil eunuco Hermia

Aras ergueu que aos Deuses só devia.
Aras ergue a quem ama

O Filósofo insigne namorado.

Dói-se a perpétua fama

E grita que culpado

De lesa divindade é acusado.
Já foge de onde habita;

Já paga a culpa enorme com desterro.

Mas, oh! grande desdita!

Bem mostra tamanho erro

Que doutos corações não são de ferro.
Antes na altiva mente,

No su[b]til sangue e engenho mais perfeito,

Há mais conveniente

E conforme sujeito

Onde se imprima o brando e doce afeito.

50 - ODE 2
Aquele único exemplo
De fortaleza heróica e ousadia,

Que mereceu, no templo

Da Fama eterna, ter perpétuo dia,

O grão filho de T[h]étis, que dez anos

Flagelo foi dos míseros Troianos,
Não menos ensinado

Foi nas ervas e médica polícia

Que destro e costumado

No soberbo exercício da milícia:

Assi[m] que as mãos que a tantos morte deram,

Também a muitos vida dar puderam.


E não se desprezou,

Aquele fero e indômito mancebo,

Das artes que ensinou

Pera o lânguido corpo e intenso Febo;

Que, se o temido Heitor matar podia,

Também chagas mortais curar sabia.


Tais artes aprendeu

Do semiviro mestre e douto velho,

Onde tanto cre[s]ceu

Em virtude, ciência e em conselho,

Que Télefo, por ele vulnerado,

Só dele pôde ser de[s]pois curado.


Pois vós, ó excelente

E ilustríssimo Conde, do Céu dado

Pera fazer presente

De altos heróis o século passado;

Em quem bem trasladada está a memória

De vossos ascendentes, honra e glória;


Posto que o pensamento

Ocupado tenhais na guerra infesta,

Ou co sanguinolento

Taprobano, ou Achém, que o mar molesta,

Ou co Cambaio, oculto imigo nosso,

Que qualquer deles teme o nome vosso;


Favorecei a antiga

Ciência que já Aquiles estimou;

Olhai que vos obriga

Verdes que, em vosso tempo, rebentou

O fruto daquela Orta onde flore[s]cem

Plantas novas, que os doutos não conhecem.


Olhai que, em vossos anos,

Ũa Orta produze várias ervas

Nos campos indianos,

As quais aquelas doutas e protervas

Medéia e Circe nunca conheceram,

Posto que a lei da Mágica excederam.


E vede carregado

De anos, e trás a vária experiência,

Um velho que, ensinado

Das gangéticas Musas na ciência

Podalíria su[b]til e arte silvestre,

Vence o velho Quiron, de Aquiles mestre;


O qual está pedindo

Vosso favor e ajuda ao grão volume

Que, impresso à luz saindo,

Dará da Medicina um vivo lume,

E descobrir-nos-á segredos certos,

A todos os Antigos encobertos.


Assi[m] que não podeis

Negar, como vos pede, beni[g]na aura:

Que, se muito valeis

Na sanguinosa guerra turca e maura,

Ajuda[i] quem ajuda contra a morte,

E sereis semelhante ao Grego forte.


51 - Elegia 1
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