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Enfrentando nossos limites: Educação popular e escola pública


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Retomando


Paulo Freire, em sua Pedagogia do Oprimido, já propunha a utilização de temas geradores para elaboração de um programa de ensino. Aprofundando a idéia de diálogo e de palavra geradora, que já usara, ao tratar especificamente da questão da alfabetização de adultos33, propõe uma nova forma de conceber e criar programas educacionais, ela mesma dialógica pela utilização de temas geradores, como forma de "devolver ao povo os elementos que forneceram aos educadores-educando de forma organizada, sistematizada e acrescentada".

Mesmo falando, na época, de ensino para camponeses e operários, fora do sistema educacional formal, propõe, ao contrário do que muitos dizem, que esse ensino deveria se basear em programas estruturados antes do início das atividades de estudo sistemático.

O que traz de novo e inédito é a introdução da dialogicidade na própria elaboração dos programas. No último item do cap. 3, aborda "a significação conscientizadora da investigação dos temas geradores e os vários momentos da investigação"; refletindo sobre a sua experiência pessoal e de outros companheiros na elaboração de programas a partir de temas geradores indica as principais etapas e dificuldades do processo.

Não se trata nem de valorizar o espontaneísmo e de deixar ao sabor do momento de interação a definição dos tópicos a serem trabalhados, nem de uma prefixação dos mesmos tópicos a partir dos interesses de quem conduz o processo. Propõe uma sofisticada interação de uma equipe interdisciplinar com a população participante do processo ensino-aprendizagem, na busca de situações que possam ser significativas e na definição dos tópicos de interesse, sua seqüência e sua articulação.

Posteriormente a Paulo Freire, e baseando-se em suas idéias, alguns projetos utilizaram temas geradores em escolas, no sistema regular de educação. Dois deles subsidiaram diretamente a proposta que está sendo desenvolvida na Secretaria Municipal de Educação-SP: um ocorrido na Guiné-Bissau34 e outro no Rio Grande do Norte35. A reflexões sobre práticas, tentam, sem alterar os princípios propostos por Paulo Freire, redimensioná-los para uma prática escolar...

Apesar da resistência de Carlos, alegando que isso vai atrasar a tarefa, acabam decidindo por iniciar o trabalho em separado com os novos e, da forma mais rápida possível, repetir com eles os passos que deram no ano anterior. Este será o primeiro momento da semana, enquanto se recupera com os mais antigos a produção do ano anterior. No segundo momento, quando vai se reavaliar o tema tirado para o ano passado e os seus desdobramentos para definir os rumos deste ano, os novos se misturam aos antigos. Quem sabe no terceiro momento, quando vão detalhar o trabalho deste ano, a diferença já não seja tão grande.

Márcia relaxa, e Ângela assume o quadro para repetir o horário que ficara elaborado durante a confusão. Propõe que o horário básico seja o mesmo para cada um dos três turnos da escola. Na Sexta-feira, quando todos os professores estarão presentes o dia todo, começar com todos reunidos no pátio, onde estarão fixados os cartazes com os resultados dos trabalhos de cada turno. Isso economizaria o tempo de cada turno ao expor suas decisões. Márcia, como coordenadora pedagógica, faria uma síntese do que foi conseguido e em seguida dividiria os professores por área, em diferentes salas. Neste momento, cruzando os três turnos e todas as séries, seria feita a última checagem do programa. A tarde seria para uma plenária dos grupos, usando a mesma estratégia dos cartazes da manhã e resolvendo as questões ainda pendentes.

Parece que já está resolvido o encaminhamento. Resta "só" separar o material da primeira atividade de cada turno, conferir se as salas estão limpas e arrumadas, se as listas de presença e os papéis manilha e pincéis atômicos são suficientes para os grupos.

- Para variar estouramos o nosso horário, reclama Rosa. Como não podia deixar de ser, é Toninho quem complementa irônico, imitando Rosa:

  "Precisamos ser mais disciplinados':.. Mas valeu! Quem quer tomar uma cerveja para relaxar?


Cinco etapas


Uma leitura detalhada de Paulo Freire, feita por Demétrio Delizoicov, permitiu identificar cinco etapas para elaboração do programa. Aqui estamos indicando as etapas tal como são utilizadas nas escolas que participam do projeto de interdisciplinaridade.

A primeira, o "levantamento preliminar da realidade local", em que a equipe de educadores coleta material sobre o local, usando tanto trabalho de campo, que inclui atividades como visitas a diferentes lugares das redondezas, conversas com moradores e consultas aos movimentos sociais organizados na região, como a busca de fontes secundárias, textos, dados estatísticos, análises já disponíveis sobre a região e sua inserção na cidade. É aqui que se inicia o já mencionado dossiê: uma organização das informações coletadas, desde depoimentos, fotos, vídeos, diários de campo até dados estatísticos, históricos e das ações institucionais existentes e/ou já programadas.

Na segunda etapa, os mesmos educadores, utilizando agora a sua formação diferenciada, analisam o material coletado, tentando encontrar relações entre as falas que expressam a visão da população, em especial dos alunos e seus familiares, e as outras informações obtidas. Tenta-se encontrar o que é significativo para esse grupo social, aquilo que é percebido por eles como uma dificuldade a ser superada e, ao mesmo tempo, a possibilidade de compreender o contexto mais amplo em que sua realidade se situa.

Aqui todos os educadores entram com a diversidade de sua formação para entender os dados da área e as falas da população: o que revelam, o que ocultam, como expressam, refletem ou se contrapõem às relações sociais e econômicas em que esses dados e falas são gerados. Só então alguns temas, que poderão vir a ser geradores, começam a surgir.

Na terceira etapa, faz-se o que Paulo Freire chamou de "círculo de investigação temática". Os pré-temas anteriormente selecionados são codificados, ou seja, escolhem-se situações vivenciais que os sintetizem, e são apresentados ao grupo mais amplo dos educandos e seus familiares, para, em conjunto, começarem a sua descodificação. Nesta época "testamos" se os temas e situações escolhidos são de fato significativos para a população.

Na quarta etapa, os resultados, as falas, cuidadosamente registradas, do círculo de investigação temática são estudados pela equipe de educadores: os temas possíveis, considerando a sua expressão obtida nos círculos de investigação, são vistos sob as óticas de todas as disciplinas do currículo escolar, buscando a articulação entre as diferentes visões. Aqui inicia-se a redução temática.

Só então os resultados são seqüenciados, respeitando-se a faixa etária e as informações disponíveis sobre as possibilidades de cada turma, além dos princípios de estruturação de cada disciplina expressos nos documentos de Visão de Área.

Finalmente, na quinta etapa, os temas são trabalhados pelos professores que planejam suas atividades e as confrontam com os outros professores da mesma série. Em seguida, discutem com os alunos em sala de aula, apresentando-lhes a lógica do programa elaborado, ainda aberto a mudanças que se façam necessárias.

Certamente esse não é um programa tradicional, a ser seguido a risca, mas um "mapa", constantemente refeito ao longo do percurso, que orienta o trabalho do grupo, norteando as inúmeras decisões que se tomam no dia-a-dia.

O programa exige um esforço de organização da escola: o planejamento inicia-se durante o período letivo anterior, quando são coletados ou atualizados os dados das primeiras duas etapas, e estende-se, englobando todo o conjunto de participantes do projeto, em um processo necessariamente coletivo, programado e organizado com antecedência.

No grupo dos novos, após leitura em conjunto do dossiê do ano anterior e uma volta no bairro, entrevistando cada um uma pessoa diferente e anotando todas as impressões que tiveram:

  Nossa! E eu que achei que conhecia este bairro como a palma da minha mão! Nunca tinha notado que ao lado daquele condomínio com prédios todos chiques estavam escondidos barracos! Não consegui localizar aquela foto de jeito nenhum. Olha que eu escolhi esta escola porque moro perto daqui e passo em frente àqueles prédios todos os dias, no ônibus.

  Pois o que mais me impressionou foi a fala daquela moradora, dizendo que já faz mais de dois anos que a Mariquinha, líder da quadrilha que controlava a região, morreu, e desde então quase dia sim, dia não tem tiroteio na favela. O filho da vizinha dela já foi baleado e já teve que ceder a laje da casa onde mora para um atirador de uma das quadrilhas. Tem razão em ficar com medo de os filhos irem para a escola à noite. Eu só não sei o que resolve ir buscá-los no ponto do ônibus... Afinal, será que ela pensa que a presença dela vai protegê-los das balas perdidas?

  Para mim, o que marcou foi a fala daquele morador antigo que tem um verdadeiro museu em casa, com fotos e documentos sobre o bairro. Vai ver porque eu sou professor de história.

  Eu ainda não acredito no resultado daquela pesquisa que o pessoal fez na favela. Imagina se aquelas crianças têm mãe que fica em casa olhando por elas... Eu dei aula em uma escola do Estado, aqui pertinho, e sei como são os alunos! Todos marginais já na 1ª série. Só para vocês terem uma idéia, tinha aluno que chegava sem saber até pegar em um lápis. Um deles nunca tinha visto um livro na vida. Uns bons meses vinham todos sujos, uns verdadeiros porcos, com a desculpa de que o cano que leva a água tinha quebrado. Eu não conseguia nem andar entre as carteiras de tanto nojo. Quanto mais chegar perto! Sempre tem uns poucos que vêm arrumadinhos, de uniforme, todo o dia. O resto, se vêm um dia, no outro estão com camisa errada, às vezes até sem uma só peça do uniforme.

  É. Mas parece que os dados são corretos. Eu já li um estudo sobre esta região que mostra que essa favela é composta, na sua maioria, de migrantes antigos na cidade, com famílias constituídas, os pais trabalhando na construção civil e nas indústrias da região e as mães ficando em casa, tempo integral, pelo menos até as crianças menores chegarem à idade de ir para a creche. Aí, então, elas começam a trabalhar com faxina em casas, uma ou duas vezes por semana, quando conseguem alguém para ficar na casa delas. Muitas nem saem, fazem pequenas costuras ou salgadinhos para vender, só para não saírem de perto dos filhos. O tal estudo dizia que a barra é mais pesada nas regiões de cortiços. Aí sim, os grupos familiares são menores, na maioria das vezes não existe pai na casa, e as crianças ficam muito mais sozinhas.

  Não sei por que nós temos que ficar olhando essas coisas horríveis de favelas e enchentes, pessoas sem condições de viver. Isso me faz mal! E o bairro aqui não é assim ...Eu moro aqui há muito tempo e não sou favelada. Os alunos que freqüentam esta escola também não são. É só uma minoria. As enchentes atrapalham o acesso, mas aqui na escola nunca entrou água. O nosso problema na verdade é que aqui no bairro nós estamos longe do local de trabalho. O meu marido tem que atravessar a cidade todo o dia e pega cada trânsito!

A dificuldade de perceber


Sempre que uma situação nova surge, para poder compreendê-la faz-se uma interpretação: associa-se a outras situações já conhecidas ou vividas, buscam-se explicações, enfim, de alguma forma usa-se das vivências e conhecimentos anteriores para localizar e entender o que se apresenta, chegando-se até a selecionar o que se aceita ou não como informações válidas.

Ir além do senso comum e superar uma visão falsa ou distorcida dos fatos é um exercício permanente que é preciso fazer. É um exercício de "pensar sobre o pensar"; de criticar o próprio procedimento de pensar, descobrir no que se baseia, buscar onde e como estamos distorcendo a realidade ou ignorando informações. Só assim pode-se fazer uma valoração seletiva da forma primeira de encarar o mundo, redescobrindo valores, compatibilizando comportamentos com opiniões, encontrando, modificando, ampliando a forma de se organizar.

Jamais se alcança o conhecimento definitivo; sempre é possível se aprofundar, descobrir, rever o que se pensava estabelecido, descobrir quando, onde e como errou ou se deturpou as informações.

A trajetória da construção do conhecimento humano, tanto na história da humanidade como na individual, no conhecimento cotidiano e no conhecimento sistematizado, tem sido sempre essa.

Pensar sobre a construção do conhecimento revela que esta se constituí em saltos, mudanças abruptas, rupturas, mas também em recorrências e alternâncias decorrentes da observação e compreensão que oferecem qualidade nova ao que anteriormente se entendia como estabelecido, incorporando algumas de suas partes, agora, numa perspectiva cada vez mais ampla, mais estruturada, que dá conta de uma quantidade maior de elementos.

Portanto, é preciso, antes de tudo, tomar consciência do conflito. Em geral, ao olhar com "distanciamento"; no sentido que Paulo Freíre dá ao termo, o dia-a-dia, podemos perceber os conflitos existentes.

A compreensão, ainda que provisória e incompleta, da realidade está voltada à possibilidade de permitir um distanciamento da mesma e à exploração dos conflitos existentes, tanto na própria realidade, como nas diferentes visões que dela surgem ao ser olhada no coletivo e no confronto entre as novas informações e conhecimento disponível no pensamento de cada pessoa 36.

Isto se dá ao se explorarem as contradições do real, das diferentes falas sobre o real, da construção coletiva e individual do conhecimento desse mesmo real. Estar sempre a se perguntar o porquê das diferenças, o que querem dizer, de onde surgem, é o que nos permite conhecer na perspectiva de que o conhecimento nunca está acabado.(...)

Ainda no grupo dos novos, mais tarde...

  Nos pediram para retomar a pesquisa que fizeram e separar as falas das pessoas que achamos mais importantes, mais significativas da situação do bairro. Mas será que temos de tomar como princípio que o bairro é o mais importante? Você que está aí com os dados dos alunos, eles vêm daqui da região?

  Os do diurno, das séries iniciais do regular, sim. Os do noturno e do supletivo, não. Acho que teremos de pensar nos grupos separados.

  Proponho que, a título de exercício, comecemos considerando os do diurno. Depois a gente vê como foi discutido o caso dos do noturno.

  Certo. Vamos lá. Apareceu várias vezes, nesta parte do dossiê, a questão da violência e do transporte. Na fala dos alunos menores aparece uma escola divertida, com piscina, parque e cavalo e na sala dos maiores só que o professor seja menos chato ou que não falte tanto às aulas. Não é estranho?

  Parece que eles chegam com muita expectativa e aos poucos vão percebendo que não há espaço para ela e perdem a capacidade de sonhar...

  Muitas dessas falas me parecem ingênuas. Às vezes, dá impressão de que as pessoas não acreditam que qualquer coisa possa mudar, com exceção da fala da sociedade de moradores, parece que todos os outros esperam que as soluções lhes caiam na cabeça ou estão tão conformados que nem esperam que haja alguma solução.

  Por isso que a sugestão é confrontar as falas com a nossa visão! Agora eu estou entendendo o que a CP queria dizer quando falou que precisávamos verificar onde, na nossa opinião, essas falas necessitavam ser superadas...

  Eu continuo perdido com a quantidade de informações que temos. Vamos pegar uma situação para a partir dela fazer o programa ou vamos pegar todas?

  Eu sugiro pegar o tema Moradia. Daí dá para dar o poema do Vinícius, A Casa, dá para trabalhar números inteiros em matemática, dá para ensinar animais domésticos e selvagens em ciências e família em estudos sociais. Assim a gente não complica muito.

  Em outras palavras, você continua fazendo o que sempre fez. Eu não topo. Estou aqui queimando a pestana exatamente porque acho que o que estávamos fazendo não ajudava os alunos a aprender, além de que eu não estou muito certo de que servia para alguma coisa a não ser para passar em uma prova no final do ano.

  Voltando à nossa questão anterior. Aqui tem uma sugestão para organizar as informações do levantamento preliminar. Que tal pensar como essas falas se relacionam? A sugestão é pensar a partir de algumas categorias como Moradia. Trabalho e Transporte. Em seguida, relacioná-las com Convivência, Redes de água, Luz, etc., e outros serviços como Educação e Saúde.

  Essa charada eu matei. 0 que estão propondo é que a gente pense como por trás dessa realidade está a questão da ocupação do solo urbano...

  Pois o que eu acho interessante é a forma como as pessoas se expressam. Veja como utilizam palavras que não são comuns aqui, como aperreado, e quase não fazem concordância entre sujeito e verbo. Não é só gramática: veja o estilo da narração. Mais parece um poema.

  Que barato! Aqui no bairro tem um grupo de rap e na festa da padroeira se executa uma dança do Nordeste que eu nem conheço. Muita gente está reclamando dos muros pichados, mas aqui tem fotos de uns grafites muito bem feitos, protestando contra a falta de ônibus.

  É, parece que se pusermos a nossa cabeça para pensar e somarmos as diferentes visões, que a nossa formação específica nos dá, vamos conseguir pensar e entender direitinho o que está em jogo neste espaço. Eu nunca havia pensado antes que essa fala pudesse ser tratada como uma narrativa. Fico tão incomodado com os erros de português que não conseguia ver a poesia. Por outro lado, fico aflito com a simplificação que fazem da represa. O discurso da preservação do ambiente da sociedade de moradores parece dizer que é só não jogar o esgoto das casas na água e está tudo resolvido. Ninguém pensa nas empresas que estão instaladas, no processo de tratamento do esgoto, na necessidade de uma fauna e uma flora adequadas.


Olhando com óculos diferentes


Uma nova compreensão dos professores, da realidade na qual a escola está inserida, surgiu do confronto das diferentes visões e do conhecimento que cada um detém de sua área. A troca de conhecimento específico possibilita ao professor perceber aspectos antes não observados.

As diferentes áreas são as formas de olhar disponíveis na cultura contemporânea e o domínio delas é o que dirige o nosso olhar enquanto profissionais. É esse conhecimento que queremos tornar disponível aos nossos alunos. Portanto, questões cujas contradições podem ser resolvidas com os conhecimentos de que os alunos já dispõem fora da escola ou de que o conhecimento escolar não pode dar conta não são temas geradores, no sentido de geradores de conteúdos escolares.

A definição do tema gerador tem sido um processo que, resguardadas suas características gerais, varia de escola para escola. Do ponto de vista prático, os temas em que não se percebe claramente em que o conhecimento sistematizado pode contribuir tendem a ser tratados no nível do conhecimento já disponível para os alunos, tornando-se enfadonhos. Assim como as questões afetivas que estão sempre presentes e não se esgotam como acesso a um conhecimento de área, não são bons "centros" de programação, apesar de estarem sempre mediando, permeando todas as entradas possíveis de programação.

  É. Eu nunca tinha imaginado que o que havíamos feito em ciências ia cruza com o que o pessoal de geografia fez. Foi uma discussão e tanto. A geografia mudo muito do que eu aprendi na escola, aquela coisa só de decorar nomes de lugares. divertido, depois que passa, ver como temos visões preconceituosas das outras áreas. E como acreditamos que somos proprietários de certos conhecimentos, não queremos que ninguém mais toque neles.

  Parece que português e artes ainda não conseguiram chegar a um acordo. Nunca pensei que fosse dar tanto trabalho. E olhe que nós ainda nem chegamos a discuti o que vamos ensinar. Isso é só para tirar o tema gerador! Tudo isso me deixa insegura. Não tenho mais certeza sequer do que eu penso quanto mais do que vou ensinar.

Tecendo redes...

Compreender a realidade em seus múltiplos aspectos é mais do que perceber vagamente que existem relações entre eles. É na percepção de como, quando e onde essas relações se estabelecem que podemos ir além da visão primeira, genérica.

Tentar mergulhar além das aparências é um exercício de reconstrução das possíveis relações entre aspectos que víamos isolados, ou genericamente conectados. Nesse ponto, é de grande valia perceber que as principais contradições que encontramos no estudo do real são de natureza social e usar o conhecimento disponível na área de ciências sociais para balizar a procura dessas relações . ..."

Plano de ação

1) Como considerar os dados da realidade na construção do projeto político-pedagógico da escola?

2) Que ações a escola pode desenvolver no seu cotidiano, para um trabalho de construção do conhecimento a partir da realidade local?

3) Como a realidade local pode ser ponto de partida para a construção dos projetos político-pedagógicos do conjunto das escolas estaduais?

Escola como espaço público, de produção de conhecimento, cultura, lazer e recreação

Cultura, lazer, educação e produção de conhecimento podem parecer, num primeiro olhar, temas que não apresentam relação um com o outro, principalmente quando consideramos os espaços públicos, em especial a escola, como local onde essas práticas e vivências acontecem.

Quando na problematização inicial colocamos algumas práticas resgatadas no 2° Momento da Constituinte Escolar e constatamos falas como: "alunos depredam o patrimônio público - escola.", nos remetemos à seguinte pergunta: afinal o que representa este Público da fala resgatada? Para que possamos refletir um pouco mais sobre esta questão, alguns pontos merecem ser mencionados e aprofundados.

Ao analisar os espaços públicos de lazer e cidadania, Carlos Rodrigues Brandão afirma que:



"...no Brasil, de uma maneira muito evidente, as atitudes das pessoas frente aos espaços públicos como posse do governo são algo que existe internalizado em todos nós. A percepção comum entre nós é assim: aquilo que é público não é meu e mesmo que também não seja efetivamente do Estado, é uma questão dele. (...) Para mim, o sentido de lazer está exatamente nesses campinhos de futebol que são também uma lembrança de muita saudade em minha vida. Conversando com professores eu dizia o seguinte: reparem uma coisa engraçada, em SP as pessoas depredam trens, destroem telefones públicos, vandalizam escolas e, no entanto, nunca vi fazerem a mesma coisa com um campo de futebol.

Creio que não se dá apenas porque campo de futebol seja prazeroso. Quando os campos de futebol não são destruídos, é porque as pessoas do lugar os fizeram e os assumem como se fossem delas e não como sendo de uma instância alheia 'de governo"' (1994, p. 29).

Muitas vezes lidamos com os espaços públicos, ou seja, com tudo aquilo que está além dos portões de nossas casas, de um modo um tanto hostil, como algo do qual realmente não nos apropriamos e não concebemos como nosso. Outras vezes, nos referimos ao que é público com um certo descaso, parecendo que o que é público não é de ninguém. É importante salientar que esta atitude faz parte da nossa cultura, está internalizada em nós. Assim, nos deparamos com dois espaços: um espaço "público" do qual não nos sentimos parte, e outro, o "privado", que como o próprio nome afirma, é de alguém, o que automaticamente me priva de sua apropriação ou acesso.

No livro "Festa no Pedaço", José G. C. Magnani (1984), no capítulo intitulado "A rede de lazer", ao fazer uma análise das "Redes de lazer" de uma cidade interiorana de São Paulo - Três Corações - chega a um interessante conceito que pode nos ajudar na reflexão sobre os espaços públicos, em contraposição aos espaços privados de nossa comunidade: o conceito de Pedaço. Para ele, o Pedaço é um componente de ordem espacial, que corresponde a uma determinada rede de relações sociais. O componente espacial possui algumas fontes de referências que constituem o que chamaríamos de seu núcleo: o telefone público, a padaria, alguns bares e casas de comércio, o ponto de "búzios", o terreiro e o templo, o campo de futebol e alguns salões de baile, lugares onde a rede de relações sociais vão se delimitando.

Enquanto o núcleo do Pedaço apresenta um contorno nítido, inclusive com a participação de alguns serviços básicos, as bordas são fluidas e não se apresentam com delimitação territorial precisa. Neste sentido, o termo nos remete a um espaço intermediário entre o Privado (a casa) e o Público onde se "desenvolve uma sensibilidade básica, mais ampla que a fundada nos laços familiares, porém mais densa, significativa e estável que as relações formais e individualizadas impostas pela sociedade"(1984, p. 138).

Em cidades interioranas, as relações com o trabalho, a devoção e o lazer, por exemplo, são vividas em uma comunidade onde todos se conhecem. Quando falamos nas grandes metrópoles, as várias instituições que atendem a tais demandas não só são diversificadas como encontram-se dispersas. O mercado de trabalho e sua alta rotatividade, que empurra as pessoas de uma empresa à outra, e a falta de emprego, que obriga as pessoas a passarem boa parte de seu tempo à procura de trabalho, acabam por dificultar a construção de laços sociais mais permanentes.

Podemos estender esta reflexão a outras instituições e serviços urbanos, como a escola, determinados equipamentos de lazer, órgãos públicos, que são também atingidos por essa lógica. A própria maneira como são construídos esses equipamentos e estruturados os órgãos não viabilizam a criação de uma rede de convívio como nas cidades do interior. Ainda sobre isso, Magnani fala:

"Diferentemente daqueles setores - onde na maioria das vezes os vínculos que ampliam a sociabilidade restrita da família nuclear não são os de vizinhança, mas os que se estabelecem a partir de relações profissionais - uma população sujeita às oscilações do mercado de trabalho e às condições precárias de existência é mais dependente pela rede formada por laços de parentescos, vizinhança e origem. Essa malha de relações assegura a sobrevivência, e é no espaço regido por tais relações onde se desenvolve a vida associativa, desfruta-se o lazer, trocam-se informações, pratica-se a devoção onde se tece, enfim, a trama do cotidiano" (1984, p. 139 - 140).

A idéia de Público, historicamente construída no nosso imaginário, tem sido geralmente uma idéia de algo alheio, com o qual o Estado deve se responsabilizar e não devemos nos envolver, com exceção de raros momentos em que exigimos a oferta de alguns destes espaços.

Assim, superar esta compreensão do que é o público, significa conceber os espaços públicos como direito, aos quais todos devem ter acesso. Além disto, também é preciso discutir a questão do Lazer enquanto um direito social, direito ao prazer e direito à vivência de diferentes formas de apropriação e construção da realidade.

Para aprofundar a compreensão do lazer enquanto um direito, é necessário retomar as discussões sobre a relação que estabelecemos com os espaços públicos e privados. As nossas ações, a forma como nos relacionamos com o que é público e o que é privado são construídas e internalizadas em nós, sendo portanto uma prática cultural. Assim, é necessário refletir: o que é então cultura? Vejamos:

"Pedro é muito culto, conhece várias línguas, entende de arte e de literatura. Imagine! É claro que o Luís não pode ocupar o cargo que pleiteia. Não tem cultura nenhuma. É semi-analfabeto! Ouvi uma conferência que criticava a cultura de massa, mas me pareceu que a conferência defendia a cultura de elite. Por isso, não concordei inteiramente com ela" (Chaui, Marilena: 1995, p. 290).

É possível dizer que uma pessoa não tem cultura, ou mesmo, que há pessoas que têm uma cultura superior à de outras, como se a cultura pudesse ser comprada ou adquirida como um produto? Ou ainda: é possível compreender como cultura somente o acesso às obras de artes, aos espetáculos, à leitura?

Sobre a cultura Marcellino, coloca que:

"Do meu ponto de vista, a noção de cultura deve ser entendida em sentido amplo, consistindo, como conceitua a antropóloga Carmem Cinira Macedo (apud VALLE: 1982, p.35), ... num conjunto de modos de fazer, ser, interagir e representar que, produzidos socialmente, envolvem simbolização e, por sua vez, definem o modo pelo qual a vida social se desenvolve. Implica, assim, no reconhecimento de que a atividade humana está vinculada à construção de significados que dão sentido à existência. A análise da cultura, dessa forma, não pode ficar restrita ao 'produto' da atividade humana, mas tem que considerar o "processo dessa produção"   o modo como esse produto é socialmente elaborado" (1998, p. 37).

Para Paulo Freire, a cultura tem o sentido de

"... acrescentamento que o homem faz ao mundo (...) como resultado do seu trabalho. Do seu esforço criador e recriador. O sentido transcendental de suas relações (...) como aquisição sistemática da experiência humana. Como uma incorporação, por isso crítica e criadora e não como uma justaposição de informações prescritas "doadas. " (...) O homem, afinal, no mundo e com o mundo" (Educação para Liberdade, 1983, p. 109).

Estes conceitos nos possibilitam pensar: as vivências de lazer que ocorrem na nossa comunidade produzem conhecimentos? Que conhecimentos são esses? Neste contexto, a escola pode ser considerada um espaço público de produção cultural?

Escola, processo educativo, produção de conhecimento e lazer guardam relações estreitas, sejam concebidos como pares ou de maneira encadeada. Em outras palavras, partes de um todo mais amplo, o plano cultural, sendo portanto fundamental reconhecer as relações existentes entre eles.

Para tanto, é necessário problematizarmos algumas questões em relação à escola e o processo educativo:

"... verifica-se que muitos adjetivos têm sido colocados ao lado do termo educação, para denominar diferentes processos educativos. E aqui é fundamental a distinção entre a educação sistemática, efetuada sobretudo através da Escola, e a assistemática, que compreende os vários processos de transmissão cultural, englobando, dessa forma, toda relação pedagógica, inclusive a que se verifica no lazer. Entendo a relação pedagógica de maneira ampla, tal como foi definida por Gramsci (1979; 1981), que não a limita ao que é denominado pelo autor de "relações especificamente escolásticas'; mas "em toda a sociedade no seu conjunto e em todo o indivíduo com relação aos outros indivíduos, bem como entre dirigentes e dirigidos, entre vanguardas e corpos do exército. Enfim, toda relação hegemônica é necessariamente uma relação pedagógica" (Marcellino: 1998, p. 37-38).

A colocação do autor nos possibilita ampliar a visão do processo educativo, considerando as relações pedagógicas que se dão além dos muros da escola. Assim, focalizamos nossa discussão na questão do lazer e suas implicações nesta discussão.

Inicialmente vejamos a aproximação que podemos fazer das palavras recreação e lazer, na tentativa do resgate de sua característica básica enquanto ação cultural lúdica. Para tanto, apontamos algumas relações entre escola, processo educativo, produção de conhecimento e lazer. Embora a vivência lúdica seja considerada como a essência da Recreação e do Lazer, em nossa realidade são apontadas ênfases diferentes, tornando os significados destas palavras diversificados.

"As palavras Recreação e Lazer, etimologicamente de origem latina, significam, respectivamente, recriar   recreare   e ser lícito, permitido   licere. Em geral, Recreação e Lazer são termos usados, no Brasil, com o mesmo sentido conceitual representando a manifestação de conteúdos culturais lúdicos vivenciados pelas pessoas no seu tempo liberado de obrigações, especialmente do trabalho remunerado. Noutras situações, Recreação e Lazer têm sentidos diferenciados. Lazer é, freqüentemente, usado em estudos e propostas políticas, enquanto que a palavra Recreação é articulada a ações institucionalizadas. A aproximação que faço dos termos Recreação/Lazer aqui, neste texto, objetiva resgatar a essência lúdica destas palavras, mais do que estabelecer uma discussão terminológica formal" (Pinto: sal., p. 85).

Tal como é constituído hoje, como esfera própria da cultura, o fenômeno Recreação/Lazer emergiu da industrialização, o que foi resultado de reivindicações sociais oriundas da necessidade da distribuição do tempo de vida, no qual têm predomínio as relações do mundo do trabalho. O estilo de vida, imposto por essa situação histórica, faz com que as pessoas lutem por momentos onde possam ser elas mesmas, embora esses momentos muitas vezes sejam encarados apenas como recuperação da força de trabalho. Em função disso, quando se tematiza a questão do lazer e sua vivência, enfoca-se o mesmo como algo que não ésério, como distração ou simples entretenimento. Por outro lado, é preciso que comecemos a entender este lazer como possibilidade de busca de uma qualidade de vida justa e humanizada.

"...nesse sentido a Recreação/Lazer deveria representar, sobretudo, um direito universal, legitimado por todos, constituindo-se na oportunidade de vivências culturais lúdicas. Como espaço privilegiado de experiências do jogo lúdico, a Recreação/Lazer possibilita ao sujeito, com liberdade, gratuidade e prazer, apropriar do seu desejo de ser, como também do espaço-tempo e lugar que vive, construindo-se com eles. Uma visão qualitativa como esta não se configura simplesmente dentro de uma perspectiva romântica, mas se articula com projetos utópicos37. Nesses projetos, os sonhos, os desejos humanos são considerados como base da dinâmica histórica, dentro do imaginário cultural que se deseja construir através de um presente concreto possível. A utopia, parte, pois, da essência do ser humano e atua como um dos seus agentes libertadores dos tabus e barreiras que se opõem à sua ação cultural. Expõe seus impossíveis e, assim, mobiliza desejos. Os desejos mobilizam ações que participam das mudanças do mundo. Como me diz Freire em nossas conversas, o ser humano, sendo um ser relacional, aberto, histórico, criador de cultura, muda-se a si mesmo à medida que participa da mudança do mundo. Por isso, é importante o educador tender à utopia e não aos determinismos" 2 (Pinto: s.d., p. 86).

Quando olhamos nossa cultura, observamos que a modernidade volta-se mais para os princípios racionalistas da lógica de produção nos moldes da cultura industrializada capitalista. São organizados e controlados ao mesmo tempo coisas, pessoas, fábricas, escolas, diversões, trabalhos e desejos. O jogo lúdico com o corpo torna-se então alvo de manobras.



"Brincando com as palavras, ao modo freiriano, vejo que este autor fala tanto da criação, que é um ato de liberdade, que é um ato de conquista, que é um ato de utopia, que é um ato de desejar, que demanda um ato de dialogar consigo mesmo, com o outro, com o espaço tempo e com o lugar onde se vive. Nessa interação constrói-se a palavra corpo, expressada por suas linguagens - falada, escrita, gesticulada. Esta aventura é desafiada por um projeto de humanização, fundado no desejo de revolução da lógica como vem sendo construída a nossa cultura, lógica esta que, cada vez mais, aniquila com os desejos dos sujeitos e com seu envolvimento na construção de sua espacialidade e temporalidade. Para superação desta circunstância de opressão pelo "jogo" do ser, ter, poder e saber, Paulo Freire aposta na educação, caminhando pelas trilhas da conscientização e da alegria, mesmo sabendo dos seus limites"38 (Pinto: s.d., p. 86).

Assim, torna-se uma face importante de uma escola que deseja efetivamente problematizar e questionar valores que vivemos intensamente nos dias de hoje, educar para e pelo lazer e falarem prazer dentro e fora dos muros escolares, tanto para professores e estudantes, como para a comunidade, que vive a escola, constrói e é por ela construída.

A indústria cultural atribui cada vez mais um valor utilitário e de mercadoria ao jogo, vinculando a palavra prazer às palavras consumo e produtividade. Desta forma, molda nossos modos de brincar e a própria forma de perceber a realidade cultural, da qual somos parte. O lúdico não tem espaço para manifestar seus códigos de espontaneidade, fluidez, liberdade e criatividade que lhe são inerentes. Esta visão utilitária pressupõe a lógica do mercado, definindo o lúdico pelas fontes de prazer e sonho articuladas pela rede de comunicação de massa e indústria cultural.

'...é importante ainda abordar a ocorrência entre nós sobretudo do antilazer, e não do lazer. (...) É o lazer mercadoria. É o simples entretenimento e diversão, no sentido de distrair, de desviar a atenção. Atividades de consumo exacerbado, que são apresentadas como ilusão de escolha e participação. (...) Assim, por exemplo, o que se constata em todo Brasil é o desaparecimento gradativo de jogos e brinquedos tradicionais, principalmente nos centros urbanos. Vários motivos podem ser apontados como causa de tal situação: o crescimento das cidades, o que acarreta uma redução das áreas livres para o lazer; as mensagens vinculadas pela indústria cultural, retratando realidades massificadas muito diferentes das nossas; os avanços da informática, notadamente no campo dos jogos etc. Mesmo assim, vemos algumas práticas que conseguem resistir, como as pipas, por exemplo.

A criança, enquanto produtora de cultura, necessita de espaço para essa criação. Impossibilitada dessa criação torna-se consumidora, ainda sem repertório suficiente para que esse consumo se dê de forma crítica e criativa.

Baseado em estudos de Otávio IANNI e Florestan FERNANDES, Edmir PERROTI observa a substituição que ocorre do real pelo simbólico. Assim, procura-se compensar a falta de criação cultural da própria criança, por uma produção cultural para a criança que, por melhor que seja, não pode substituí-Ia. Dessa forma, (...) a visão da produção cultural para a criança, enquanto substituição, ajusta-se a uma necessidade: a necessidade do sistema econômico em se reproduzir, ainda que seja à custa da morte do lúdico, do prazer, da criação" (Marcellino: 1995).

Algumas pesquisas realizadas na periferia das grandes cidades concluem que grande número de crianças cresce sem sequer conseguir entender a dimensão das férias nas suas vidas. Para elas a palavra "férias" não tem significado. Para os pais dessas crianças, que muitas vezes não têm com quem e onde deixá-las, as "férias" acabam se constituindo num "pesadelo".

Em termos de impacto, os casos mais dramáticos são os das crianças que estão tomando o seu primeiro contato com o mundo da obrigação, via escola. Algumas experiências que procuram abrandar esse impacto contribuem para demonstrar a sua existência. São semanas reservadas somente para os primeiros anos, praticamente dedicadas ao convívio e à "recreação". O gosto amargo do retorno das férias para o trabalho ou para escola deveria motivar alguns questionamentos de, pelo menos, duas ordens:

1) A carga de expectativa lançada sobre um período específico de tempo, como único refúgio onde se busca o prazer (as férias);

2) A ausência de prazer no cotidiano da escola e do trabalho (Marcellino: 1996).



A comunidade e a participação na escola;

a escola frente à questão da participação 39

PARO, Vitor Henrique

A participação democrática na escola pública sofre também os efeitos dos condicionantes ideológicos aí presentes. Por condicionantes ideológicos da participação, estou entendendo todas as concepções e crenças sedimentadas historicamente na personalidade de cada pessoa, que movem suas práticas e comportamentos no relacionamento com os outros. Assim, se estamos interessados na participação da comunidade na escola, é preciso levarem conta a dimensão em que o modo de pensar e agir das pessoas que aí atuam facilita/incentiva ou dificulta/impede a participação dos usuários. Para isso, é importante que se considere tanto a visão da escola a respeito de comunidade quanto sua postura diante da própria participação popular. No que concerne ao primeiro aspecto, acredito que os elementos apresentados nos capítulos precedentes (especialmente nos itens "A visão sobre os usuários da escola” Capítulo II e "Os alunos” Capítulo III), sejam suficientes para se ter uma idéia aproximada da maneira negativa como a comunidade é, em geral, vista pelos que atuam no interior da "Celso Helvens". Do Plano Escolar aos depoimentos de professores, direção e demais funcionários, com raras exceções, o que se observa é a opinião generalizada de que os pais e responsáveis pelos alunos são pessoas padecendo das mais diversas carências (econômica, cultural, afetiva), com baixa escolaridade, sem interesse pelo desempenho dos filhos na escola e em boa parte agressivos para com o pessoal escolar. De forma semelhante, os alunos, além de carentes nos vários aspectos (alimentar, afetivo e cultural), são vistos em sua maioria como agressivos, desinteressados pelo ensino e "bagunceiros".

Essa visão negativa a respeito dos pais e alunos das escolas públicas pertencentes às camadas populares parece não ser exclusiva das pessoas que trabalham na EEPG "Celso Helvens", estando, em vez disso, disseminada em nossas escolas públicas de modo geral. Este aspecto é de extrema relevância pois tal concepção acaba se refletindo no tratamento dispensado aos usuários no cotidiano da escola. No relacionamento com pais e outros elementos da comunidade, querem reuniões, querem contatos individuais, a postura é de paternalismo ou de imposição pura e simples, ou ainda a de quem está "aturando" as pessoas, por condescendência ou por falta de opção. De um modo ou de outro, prevalece à impressão de que os usuários, por sua condição econômica e cultural, precisam ser tutelados, como se lhes faltasse algo para serem considerados cidadãos por inteiro. Esse comportamento se reproduz também no processo pedagógico em sala de aula, onde a criança é encarada "não como sujeito da aprendizagem e como elemento fundamental para a realização da educação, mas como obstáculo que impede que esta se realize". (Paro, 1992, p. 45) Assim, não parece difícil deduzir a implicação dessa postura para a participação da comunidade nas decisões escolares. Uma escola perpassada pelo autoritarismo em suas relações cotidianas muito dificilmente permitirá que a comunidade aí se faça presente para participar autonomamente de relações democráticas. No dizer de Mári, "Da maneira como a escola trabalha, é pra afastar mesmo o pai. Quer dizer, é uma coisa horrível a reunião de pais. Dificilmente você vê, assim, um aluno ser elogiado. Na verdade, o pai é chamado e eles tremem assim... porque é pra malhar, é pra dizer que não consegue aprender, não consegue estudar... "Será que não dá pra senhora encaminhar aí para alguém?..."



Diante dessa visão depreciativa da comunidade, muitos usuários se sentem diminuídos em seu autoconceito, o que os afasta da escola para não verem seu amorpróprio constantemente ferido. Outros conseguem perceber o preconceito com que são tratados, o que pode contribuir também para afastá los quando eles sentem que não há condições de diálogo com a escola. Dª Helena, ao falar sobre a visão que o pessoal da escola tem da comunidade, que inibe a participação desta na escola, demonstra ter consciência desse preconceito e o critica, dizendo que "você não pode chegar ali e ser uma pessoa estranha; você tem que ser amiga daquelas crianças [faveladas] também".

Uma segunda importante dimensão dos condicionantes ideológicos da participação presentes no interior da escola diz respeito à própria concepção de participação que têm as pessoas que aí trabalham. Esse aspecto éde particular importância pois se trata de saber a que as pessoas estão se referindo quando se dizem a favor ou contra a participação, merecendo que se detenha nele mais demoradamente, já que o tema não foi explicitamente examinado nas considerações feitas até aqui. Minha conversa com a diretora parece bastante ilustrativa dos problemas que essa questão envolve. Embora Maria Alice se dissesse favorável à participação coletiva, constatei que sua escola, como outra qualquer, não inclui nada além do que o previsto nas normas e nas expectativas oficiais. À pergunta "Como se dá a participação na escola?", a diretora responde que as coisas vão andando normalmente e que, de repente, surge um grupo ou pessoa que pretende fazer alguma coisa diferente. Percebe se que não há programa ou algo preparado intencionalmente para propiciar a participação. Diz que professores e funcionários valorizam a participação (pelo menos do modo como ela está mostrando entender até aqui: realização de evento tipo festa, baile, concurso de pipa); mas os alunos ela acha que valorizam "somente da boca pra fora".Às vezes, eles se dispõem a fazer alguma coisa, ficam entusiasmados no início, mas em seguida desistem por motivos variados, porque brigam entre si ou porque querem deixar para depois. O que a fala de Maria Alice parece dar a entender é que ela permite a participação, quando há iniciativa dos professores, por exemplo, mas esta participação não se refere à partilha nas decisões. O que ela parece entender como passível de participação coletiva é a realização de eventos que não estão no cronograma da escola. Quando isso acontece, diz ela que sua atitude inicial é perguntar "quem coordena". Parece haver aí a preocupação de saber quem fica com a responsabilidade da coisa, o que pode ter muito a ver com aquela preocupação do "gerente" escolar, responsável último pela Lei e pela Ordem na escola, que "não pode" perder o controle das atividades; por isso, quer saber quem presta conta a ele, chefe. Continuando a falar sobre a "participação" na escola, relata que há iniciativas espontâneas por parte dos alunos, visando a fazer, por exemplo, campanha de limpeza na escola, porque acham que os banheiros estão sujos. Mas parece que mesmo isso a incomoda porque, segundo ela, quando querem fazer alguma coisa, uma festa, um baile, por exemplo, eles vão à diretora muito mais para receberem seu aval, já que não admitem um "não" de modo nenhum. A minha pergunta acerca do tipo de participação que ela esperaria dos pais em termos de tomada de decisões na escola, Maria Alice responde imediatamente: "Bom, eu esperaria, pelo menos, que eles assumissem a vida escolar dos filhos deles, que eles não estão assumindo pelo menos nesta escola." Observe se que, até aqui, embora a pergunta se referisse a decisões, a diretora nem cogita outra participação que não seja em termos de execução. Na seqüência, perguntei: "Mas, iria só até aí? O que você reservaria para os pais em termos de participação na gestão da escola?" Resposta:

"Hum. Sim, já entendi o que você quer dizer. É, eu acho que eles poderiam gerenciar e seria uma maravilha porque daí eu não ficaria com drama de consciência, cada vez que chega uma verba, quê que eu vou gastar, tá. Eu acho que eles poderiam dizer aonde a gente poderia empregar esse dinheiro, tá. Em quê, o quê que eu compro, não compro, atendo o quê, o quê vai primeiro, o quê que não vai. Então. isso aí, se eles gerenciassem taria ótimo; a parte de aplicação, né, do pouco dinheiro que chega na escola. Outra coisa: atividade com a comunidade; o que eles gostariam que fosse feito: festas? bazares? O que mais? competições aqui dentro, jogos? se reunir aqui? fazer encontros? discutir filmes? não sei."

À pergunta sobre a hipótese de a comunidade se co responsabilizar pela escola, Maria Alice responde:

"Ah! Mas eu acho que isso seria excelente... É difícil. É muito difícil. É difícil porque você tem que explicar até o bê-a-bá prá pessoa poder começar entender. Por parte da gente, do diretor, é muito estafante. Eu sinto isso no Conselho. O Conselho tem que elaborar uma sinopse de calendário, mas ele desconhece toda essa parte legal. Eu é que tenho que passar essa parte legal pra ele. Por isso que eu sou membro nato, porque senão eu nem membro nato seria. Então, o abacaxizão fica sempre com a gente, procê explicar pra um pai aqueles macetes dessas resoluções toda contraditórias que saem."

Ela acredita que há escolas que têm feito muito no sentido da participação da comunidade nas decisões da escola, (...). Diz que há diretores que "são dessa linha", mas ela não tem conseguido e as pessoas, às vezes, brincam, dizendo que ela é conservadora. "Não sei. Acho que sou." Reputa esse "conservadorismo" a sua formação. Sente que há escolas cujos diretores conseguem conviver com "essa posição" mais progressista, dando um espaço muito grande para os pais. Sente se que ela mesma se questiona muito sobre sua posição conservadora. Mas percebe se também que ela se sente incapaz de mudar seu modo de ser. Então, Maria Alice afirma que costuma perguntar a si mesma:

"Será que é porque essa pessoa milita politicamente e já tem um certo traquejo, aprendeu a passar por cima de pormenores? O que será que é?' Então, eu sinto que essas escolas tão dando um espaço muito grande pra pai. Não é que tá dando mais espaço... O pessoal tá mais ativo... Só que, também, é uma baderna, hein. Assim... Éum rolo, que eu não sei se saberia conviver com isso (...) eu não sei o que que eu faria depois com isso daí. Talvez eu não esteja preparada pra dar toda essa abertura, né."

De todo o depoimento de Maria Alice, esta última parte parece bem ilustrativa de um bom número de diretores de escola que se sentem incomodados em meio ao confronto de idéias e ações velhas e novas a respeito da gestão escolar. Mas sua fala toca também em outras questões. Uma delas se refere à ausência quase total de qualquer previsão de rotinas ou eventos que ensejem a participação da comunidade na escola. Como a própria instituição escolar, da forma como vimos anteriormente, não possui mecanismos institucionais que, por si, conduzam efetivamente a um processo de participação coletiva em seu interior, a inexistência dessa previsão por parte da direção ou dos educadores escolares fecha mais uma porta que poderia levar à implementação, na escola, de um trabalho cooperativo. Parece vir bem a propósito dessa questão o comentário de Marlene, assistente social do Posto de Assistência Médica de Vila Dora, no sentido de que sua experiência com profissionais de saúde e de educação tem mostrado que a visão desses profissionais   professores, diretores, médicos   não valoriza práticas que pressuponham o envolvimento do sujeito na solução de seus problemas. Certamente, essa visão não se limita a esses profissionais, numa sociedade em que a participação não é vista como elemento também constituinte da forma de vida social, mas, no máximo, como elemento marginal à atividade básica que é o trabalho individualizado. A mesma Marlene critica o não envolvimento do pessoal escolar como uma das razões para o não envolvimento na comunidade:

"Olha, pro envolvimento da população, anteriormente a esse envolvimento, eu acho que tem que ter o envolvimento da diretoria e dos professores. Porque, dependendo como eles concebem, né, essa participação, esse envolvimento da população, como eles entendem a realidade dessa população, dependendo disso, é que eles vão conseguir cativar essa população pra um trabalho conjunto. O que eu sinto (...) a diretoria, os professores não tão muito envolvidos, são alguns só (...) Então, precisaria haver um reposicionamento dos profissionais, um repensa mento..."


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